domingo, 6 de agosto de 2023

'Bukelismo', o futuro?

Chama a atenção o fenômeno Nayib Bukele, atual presidente de El Salvador, que conseguiu o prodígio de pôr fim ao reinado das gangues que aterrorizavam o país com sua política de encarceramento massivo em mega prisões que mandou construir. Como é sabido que o crime descontrolado tem sido o principal tormento da maioria dos países latino-americanos desde pelo menos duas gerações, não espanta que o chamado 'bukelismo' tenda a se espalhar pelos vizinhos, conforme apontado por este artigo da Folha de São Paulo.

Mas a 'bukelização' é o futuro, ou uma moda passageira? Uma resposta definitiva ao desafio da luta contra o crime, ou a nova cara do populismo de direita, na opinião das autoras do artigo?

Antes de prosseguir a análise, é preciso lembrar que Nayib Bukele não é apenas o idealizador de uma nova estratégia de combate às gangues, mas também de um novo estilo de presidente, "descolado", a ponto de ter recebido o duvidoso título de "ditador mais legal do mundo" - algo bem inusitado para quem está acostumado à feição típica do extremista de direita. Certo ou errado, Bukele desfruta de um índice de 90% de aprovação da parte da população, que finalmente vê os índices de criminalidade desabarem. Mas há quem desaprove a arbitrariedade com que milhares estão sendo encarcerados, e suspeita-se de que muitos são inocentes. É o que dizem.

Sem ter mais conhecimento do que se passa em El Salvador, passo direto para a pergunta que interessa: o Brasil também deve se 'bukelizar'?

É fato que o fenômeno da criminalidade, na época atual, não é mais a mesma coisa que havia no tempo em que nosso sistema judiciário foi erigido. Hoje é algo infinitamente mais organizado, armado e disseminado; os métodos antigos não funcionam mais, as prisões não mais neutralizam os criminosos, mas tornam-se quartéis-generais e criadouros de criminosos. Não obstante, um persistente bloqueio mental tem impedido os comentaristas de enxergar o óbvio desta situação, e continua-se a repetir receitas ultrapassadas, como penas alternativas e melhorias na educação. Esse argumento podia fazer sentido 80 anos atrás, quando boa parte dos jovens não tinham acesso à escola, cresciam analfabetos e viravam ladrões de galinha. Hoje a grande maioria dos delinquentes já passou por escolas, mas abandonou-a ao constatar que a carreira criminosa era mais promissora, ou pior ainda, não abandonou-a porque a têm como um espaço dominado, onde podem vender drogas e cooptar seus colegas. Contribui também para este bloqueio mental um cacoete ideológico, a leitura de Luta de Classes do fenômeno da criminalidade, bastante presente no imaginário dos militantes de esquerda, conforme pode ser visto em produções culturais como o filme Bacurau.

E a direita nacional? Aparentemente apóia a solução de Bukele. O ex-presidente Jair Bolsonaro já se manifestou favorável ao encarceramento massivo, e sobre a superlotação dos presídios, comentou: "prisão é que nem coração de mãe, sempre cabe mais um". Sim, caber, cabe. Mas faltou alguém dizer-lhe que prisões superlotadas invariavelmente terminam controladas pelas facções criminosas. Esse comentário mostra que Bolsonaro, na verdade, não é um bukelista, ou se pretende sê-lo, não o entende. O sucesso dos métodos de Bukele em El Salvador está condicionado à construção dos mega presídios, onde os detentos são efetivamente controlados pelos guardas e não se transformam em quartéis-generais das gangues, aqui chamadas de facções. Bolsonaro mostrou que ainda está imbuído da mentalidade do tempo dos militares, do Esquadrão da Morte e do "bandido bom é bandido morto", premissa simplória que ignora a psicologia do delinquente: o bandido em geral não teme a morte, pois a vê desde cedo, sabe que não vai viver muito, e por este motivo procura aproveitar a vida com destemor. O que o bandido de fato teme é a cana dura: ao invés de morrer, ter uma longa vida em um lugar onde não há grana, nem bebida, nem droga, nem mulher, nem nada daquilo que o motivou a enveredar pelo crime. O temor é tanto, que diante da perspectiva de um regime carcerário mais rigoroso, chegam a ter reações suicidas, como aquela ocorrida em 2006, que resultou em centenas de mortes e execuções.

Portanto, vejo isso como uma premissa sine qua non: o aumento da população carcerária é a única solução. Mais bandidos na prisão, menos bandidos nas ruas, simples assim. Apenas a prisão inibe o crime, não só por neutralizar o autor do crime enquanto este permanece encarcerado, mas também, e mais importante, por seu efeito de dissuasão: aquele garoto que estava pensando em entrar para uma quadrilha, ao ver o colega metido na cadeia e lá permanecendo longo tempo, vai pensar duas vezes. Evidentemente, não falta quem seja contra. Ouve-se muito: "o que inibe o crime não é o rigor da pena, mas a certeza da punição". Óbvio sofisma: tanto o rigor da pena quanto a certeza da punição inibem o crime, mas um não exclui o outro. Contudo, se há certeza da punição, mas a pena é branda, o bandido pode simplesmente colocar os pesos na balança, e concluir que cometer o crime compensa no fim das contas.

Desde que nosso Código Penal foi promulgado nos anos quarenta, todas as reformas feitas foram no sentido de torná-lo mais brando, e não mais rigoroso - multiplicaram-se as fórmulas de relaxamento do regime fechado, os benefícios a réus primários e menores de idade, as "saidinhas". Ao mesmo tempo em que esses abrandamentos se sucediam, o crime só fazia aumentar. Conhecendo as condições deploráveis de nossas prisões, não é difícil concluir que a brandura de nossa legislação não tem nenhum propósito humanista, mas é apenas um subterfúgio para aliviar a superlotação das cadeias: construir mais prisão custa dinheiro, abrir as portas da prisão e jogar os bandidos na rua sai de graça. É evidente que a reforma de nosso Código Penal, aumentando as penas, só pode ser feita se forem construídos mega presídios, tal como os de El Salvador. Mas qual político está disposto a subir ao palanque e prometer construir mais cadeia, ao invés de mais postos de saúde? Talvez os níveis da criminalidade aqui precisem subir a um ponto comparável ao de El Salvador.

No entanto, estou convicto de que em algum momento isso terá que acontecer. O risco, sem dúvida, é algum mandatário populista aproveitar-se para incrementar seu poder pessoal, interferindo na autonomia dos demais poderes da república, tal como fez Nayib Bukele. Mas El Salvador tem uma longa tradição caudilhista. Para haver sucesso, a reforma, aqui, terá que ser feita em moldes estritamente técnicos. Um bukelismo sem um Bukele, é o que eu espero.


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