Essa é uma pergunta que tem pairado no ar desde que Bolsonaro iniciou sua campanha para a presidência, em um clima de desalento no país. A psicologia explica facilmente esse desejo de idealizar um passado para fugir a um presente desastroso. Mas o tempo passa e o presidente não cessa de proclamar sua admiração pelo ciclo de generais ditadores que governaram o país de 1964 a 1985, embora seu governo nada tenha do desenvolvimentismo nacional-estatista que marcou aquele período. Foi de fato uma época de rápido crescimento econômico, mas também caracterizada pelo surgimento e agravamento de problemas que perseguiriam o país por décadas, como a inflação e o endividamento externo, e tudo se esboroou nos anos 80, a década perdida.
Com os tempos do "milagre econômico" já saídos do imaginário popular, a idealização daquele período entre as camadas populares se deve sobretudo à criminalidade menor - segundo se acredita, os militares "davam duro" e os criminosos não se criavam. É preciso examinar essa assertiva com a isenção de quem viveu aqueles anos. A criminalidade era de fato bem menor. Mas vinha em ascensão. De fato, o crime entra na lista dos problemas que se agravaram naquele período para explodir nas décadas seguintes. Os militares "davam duro", mas não contra criminosos comuns. A segurança pública não era considerada questão de segurança nacional, e ficou a cargo das secretarias de segurança estaduais e suas polícias militares - é certo que as polícias militares ficaram sob a égide do exército, mas esse arranjo tinha em mente colocá-las como auxiliares das forças armadas na luta contra os subversivos, e não colocar o exército como auxiliar das polícias militares na luta contra a bandidagem. De resto, o combate ao crime permaneceu uma exclusividade das polícias estaduais, que fizeram-no com aquele primarismo e incompetência típicos dos períodos autoritários, quando oficiais estão isentos de repreensão a seus atos. Não admira que o crime tenha explodido, embora algumas causas só tenham surgido após a saída dos militares do governo.
Mas os governos militares, em perspectiva, foram benéficos, ou ao menos necessários ao país naquele momento histórico?
A resposta deve ser buscada na História. A justificativa à intervenção dos militares na política remete a um suposto "poder moderador" que caberia ao exército exercer em momentos cruciais da vida do país - enquanto os militares estivessem a postos para interferir, o país estaria livre de impasses sangrentos e guerras civis. A figura de um poder moderador já existiu na primeira constituição do país, exercido pelo monarca, que aliás foi derrubado pelos militares supostamente desejosos de assumir tal atribuição. Nas primeiras décadas da república, na época do tenentismo, os militares ganharam uma aura de vanguardistas dispostos a golpear as estruturas arcaicas do poder das oligarquias, e conduzir o país à modernidade, se necessário pela força. Essa ideia de um "projeto de país" sob o comando de um governo central forte, mais tarde realizada por Getúlio Vargas, fazia parte das aspirações nacionais naquele período marcado pelo poder nas mãos de "coronéis do sertão", figuras emblemáticas do país arcaico que deveria ser superado, que impunham seus interesses provinciais ou meramente pessoais aos interesses do país urbano, comandando estados que eram quase países independentes - deve ser lembrado que a polícia do estado de São Paulo, até os anos 30, dispunha até de força aérea. Evidente que não se tratava de uma polícia de verdade, mas de um exército disfarçado.
Ao exército nacional, então, caberia o papel de colocar ordem no país e fazer valer os genuínos interesses da nação. Tudo a ver com os ideais do positivismo que haviam embalado a formação de mais de uma geração de alunos das escolas militares, os quais propugnavam como governo ideal uma "ditadura republicana" conduzida por homens superiores, genuínos patriotas que exerceriam o poder de forma "racional e científica", sem estarem ligados às demandas de políticos profissionais. Mas os tenentes dispersaram-se em ideologias que variavam do fascismo ao comunismo, e o poder ficou a cargo de um ditador civil, Getúlio Vargas.
Já após a segunda guerra, um novo alento foi dado à ideia de que os militares deveriam interferir na política: a guerra fria e a necessária luta contra a subversão comunista. Essas ideias foram disseminadas sobretudo através da Escola Superior de Guerra, estabelecida naquele período. Mas no modelo ideológico da guerra fria, tratava-se do combate de um mundo "ocidental, democrático e capitalista" contra o totalitarismo soviético, e nesse quadro não se justificava a supressão da democracia. Como compromisso, então, foi estabelecida a teoria: uma vez que o país estava ainda em um estágio primitivo de desenvolvimento, o regime democrático, ou "estado de direito", deveria ser suspenso temporariamente enquanto um governo de plenos poderes tomava as medidas necessárias para derrotar a subversão e conduzir o país ao desenvolvimento econômico e social, que uma vez atingido, permitiria ao país retornar ao regime democrático e igualar-se aos demais do bloco ocidental.
Mais uma vez cabe à História verificar a veracidade da assertiva. Entre os países hoje desenvolvidos do mundo ocidental, não se encontra um único exemplo de algum que tivesse no passado um período de ditadura militar que o tenha trazido ao desenvolvimento econômico e social - ao contrário, a manutenção do regime democrático em momentos de tensão social foi decisiva para garantir um canal aos contentores da política, e assim impedir que passassem ao enfrentamento armado. Do mesmo modo, a manutenção da ortodoxia econômica foi decisiva para o desenvolvimento, bem diverso do dirigismo estatal que caracterizou o período militar por aqui. Exemplos de países hoje desenvolvidos e democráticos que tiveram no passado um período de ditadura militar só são encontráveis no oriente - por exemplo, o Japão dos anos 30. Mas esse período de domínio militar não levou o Japão ao desenvolvimento, mas ao pior desastre de sua história, ao entra na guerra. E deve ser lembrado que no século anterior, quando a Era Meiji conduziu o Japão à modernidade e à revolução industrial, tal só foi possível após a supressão do feudalismo militarizado dos xoguns.
A ideia de uma intervenção militar redentora no país não se sustenta. Talvez porque os militares, no fim das contas, não conseguem governar o país sem o apoio das mesmas elites políticas tradicionais. E foi precisamente esta a principal herança do regime de 1964: para criar uma fachada de legalidade democrática, consoante o modelo da guerra fria de luta da democracia contra o comunismo, o sistema político eleitoral foi falseado para beneficiar chefes políticos do interior em detrimento das capitais e dos estados mais desenvolvidos, produzindo assim uma geração de políticos que pareciam saídos da República Velha - de onde vieram personagens como um José Sarney e um Collor de Melo? A diferença é que a República Velha tinha uma elite política bem mais ilustrada.
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