Uma ocorrência menor, mas que chamou-me a atenção recentemente, foi o incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, por parte de ativistas contrários a homenagens a vultos históricos implicados no escravagismo e no extermínio de povos indígenas. Não é um ato isolado: trata-se do eco de um movimento que vem ganhando força em várias partes do mundo, onde se veem estátuas de antigos traficantes de escravos sendo derrubadas.
O ato, classificado por alguns de vandalismo, foi perpetrado por um grupo que tem como divisa "Revolução periférica - a favela vai descer e não vai ser carnaval" conforme faixa colocada em frente ao monumento em chamas. Pessoalmente duvido que algum morador de favela esteja preocupado com Borba Gato, ou mesmo saiba quem é, mas o dístico não me surpreende. Apenas confirma o fenômeno da mutação da militância de esquerda no país desde a década de setenta, época da derrocada da luta armada que não teve o apoio dos trabalhadores, e desde então os militantes vem trocando a porta das fábricas pelas periferias, os operários pelos marginais, desajustados e inconformistas, esperançosos de que os habitantes das favelas vão fazer a revolução que os trabalhadores não quiseram fazer. Só isso já dá um certo ar farsesco ao movimento. Mas achei interessante este vídeo, onde a dona do canal argumenta que o ato não foi mero vandalismo nem uma patética tentativa de apagar a História, mas uma necessária ressignificação da figura do bandeirante, que deve ser apresentado como um escravizador genocida, e não como um herói.
Sem novidade. Os bandeirantes já sofreram antes uma ressignificação, esta no século passado, quando foram transformados em heróis, responsáveis por desbravar e conquistar os territórios que hoje habitamos. É desta época que datam suas estátuas e quadros que ornam os museus. Mas em seu tempo, eles não ganharam nenhuma estátua nem pintura, jamais foram retratados em vida. Mal vistos pelas autoridades, eram considerados fora-da-lei porque invadiam território índio e espanhol, e capturavam índios quando a escravização de indígenas já estava ilegalizada. Isto não impedia que as autoridades recorressem a seus serviços como sertanistas e mercenários na luta contra tribos hostis e quilombolas, mas estavam muito longe de serem considerados heróis. Assim como sua figura passava longe das representações pictóricas por que os conhecemos hoje - alguns comentaristas os descreveram como "bárbaros, que mal falavam o português e se expressavam mais nas línguas dos índios". Nada glamuroso.
Mas o país independente precisava de mitos fundadores, e os bandeirantes prestaram-se a este papel. Agora este mito está sendo desconstruído, e os bandeirantes apresentados como cruéis escravizadores e matadores de índios. Sabe-se também que saqueavam as tropas que levavam as riquezas extraídas do império espanhol - ou seja, bandoleiros. E a menina do vídeo acrescenta: estupradores de mulheres índias. Com certeza faziam essas coisas todas, mas o real impacto histórico de cada uma deve ser corretamente mensurado, e aí começam as mistificações. O vídeo lamentavelmente repete uma lenda que muitos até hoje acreditam: que os brasileiros mestiços de índio e europeu, chamados caboclos ou mamelucos, foram produto de índias estupradas por bandeirantes.
Estupros sem dúvida ocorreram, mas deve ser lembrado que o propósito do estupro não é produzir descendentes, e quando produz, em geral eles não são cuidados. A maioria das tribos praticava o infanticídio (algumas o praticam até hoje) e não permitiam o nascimento de nenhuma criança indesejada. Afirmar que os milhões e milhões de brasileiros caboclos são o produto de um estupro cometido em algum momento do passado, em termos históricos e antropológicos, é táo primário quanto defender a tese de que os franceses atuais são o produto de mulheres gaulesas estupradas por legionários romanos, e que os escoceses surgiram de mulheres bretãs estupradas por vikings. Mas afinal, toda ressignificação traz necessariamente um rastro de lenda, pois ressignificar significa, estritamente, impingir um significado. No caso, um significado do interesse do momento histórico do presente.
E a verdade histórica, onde fica? Sabe-se que a grande massa de caboclos, na verdade foi produto anterior à era dos bandeirantes. Sua gestação ocorreu na época dos primeiros colonos, quando quase não havia mulheres entre os povoadores, e os colonos tinham que casar-se com mulheres indígenas a fim de obter descendentes e alianças com as tribos, o que era indispensável naquela fase inicial da colonização. Não havia nenhum estupro aí, nem podia haver, se quisessem mesmo o apoio das tribos amigas. Mas foi a partir de então que nasceu a lenda do português colono que saía a emprenhar nativas e a largar os filhos por aí. Pode ter contribuído para esta lenda o costume peculiar dos índios, pelo qual os filhos só eram cuidados pelos pais em idade tenra, e depois passavam a ser criados pela tribo inteira, coletivamente.
Assim nasceu o povo brasileiro - certo ou errado, feio ou bonito, é graças ao que os bandeirantes fizeram que existimos hoje. Podemos achar aquilo tudo um crime inominável, e assim o expressaram muitos comentaristas do vídeo. Mas que indivíduos com sobrenomes Costa, Mota, Reis, Vianna acreditem-se porta-vozes de povos originários, me parece um tanto falso, para não dizer hipócrita. Somos todos cúmplices de um genocídio? É certo que ninguém mais ouve falar das etnias indígenas que se defrontaram com os bandeirantes. Como também ninguém mais ouve falar de gauleses, bretões ou vikings, e no entanto ninguém afirma que esses povos foram vítimas de um genocídio. Esses povos perderam sua especificidade, misturaram-se com outros povos e deram origem à população européia atual. O mesmo aconteceu com as antigas tribos do tempo dos bandeirantes.
Incendiar a estátua de Borba Gato tem um significado simbólico, sem dúvida, mas não reescreve a História. Apenas a reinterpreta. A empostação dos bandeirantes como heróis já é coisa ultrapassada, mas a meu ver, mais importante do que ressignificar a História, é conhecê-la com exatidão.
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