Uns dizem que ele já estava morto e não sabia. Outros dizem que ele é imortal. O fato é que desde já algum tempo, afastado da presidência por motivos de saúde, Fidel já não comandava os destinos do país que chefiou por 47 anos. É o de menos: Fidel pertence àquela categoria de homens públicos cuja relevância do que representava para os outros tornou irrelevante aquilo que ele efetivamente era. Fidel foi um ídolo, não um homem de carne e osso, tal como um John Lennon, que como pessoa era péssimo em todos os sentidos, mau marido, mau pai, grosso e mal educado, mas isso obviamente não importa.
Para a esquerda, foi quase um deus. O David que venceu o Golias Americano. O gênio que transformou um país miserável e devastado pela exploração e pela injustiça em um exemplo de equidade, com trabalho, comida e saúde para todos, capaz até para exportar médicos. Para a direita, foi quase um demônio. O tirano que colocou em fuga quase um terço da população de seu país, reduziu os restantes à pobreza e governou sem convocar eleições por quase meio século. Para os jornalistas mexeriqueiros, foi um indivíduo enigmático, mulherengo, com uma vida privada cheia de episódios obscuros. Devemos deixar que apenas estes últimos se encarreguem de decifrar o "verdadeiro" Fidel?
Mas um ídolo não se prende à pessoa física nem ao local geográfico. Mesmo sem nunca haver comandado guerrilha no Brasil, Fidel governou o imaginário de boa parte da juventude brasileira, muitos dos quais, hoje grisalhos, ainda o admiram. Não que ainda tenham a pretensão de imitar o exemplo cubano, mas Fidel foi uma lembrança terna que embalou os devaneios de toda uma geração, e foi uma compensação para as sucessivas derrotas experimentadas desde 1964. Mas se a morte, que chega para todos, heróis ou covardes, grandes ou medíocres, nada mais é, como se diz, um encontro entre o deve e o haver, cumpre aproveitar esse momento para ao menos tentar fazer um julgamento histórico de Fidel Castro.
Se muitos não o chamam de tirano, ao menos todos concordam que foi um ditador, mas é preciso reconhecer que é um enorme erro de avaliação coloca-lo no mesmo patamar que os tiranos comunistas genocidas da estirpe de um Stálin ou um Mao Tsé-Tung. Fidel modestamente fuzilou uns tantos, aqueles mataram milhões, a maioria de fome, como consequência de desastrosas política agrícolas impostas sob a égide de um poder absoluto. Não, Fidel não foi um monstro. Mas garimpando os talentos que ele efetivamente possuía, e que não são um exagero de seus admiradores, cita-se que Fidel era capaz de discursar de improviso por cinco horas seguidas. Imenso carisma. Mas fora o carisma não sobra quase nada além de um talentoso criador de ilusões. Com a queda da ex-URSS e o fim da mesada que sustentava a economia cubana, o mundo pôde perceber o imenso engodo que era a Cuba imaginada pelos revolucionários sonhadores.
O mito da Cuba que erradicou a miséria e o analfabetismo, que tem excelente saúde pública e índice de mortalidade infantil inferior ao dos EUA, coisa que muita gente acredita ainda hoje, mesmo os que não são admiradores de Fidel, foi uma mistura de wishful thinking com paciente manipulação de informações. Na verdade, o mito foi construído em duas mãos: a primeira, exagerando as realizações da revolução; a segunda, exagerando as carências da Cuba pré-castrista.
A Cuba de 1958 não era um inferno sobre a terra, o país possuía indicadores acima da média da América Latina. O índice de alfabetização naquele ano era de 80%, superior ao que tínhamos no Brasil na mesma época. Passar de 80% para 100% em 40 anos não me parece uma façanha extraordinária. A educação em Cuba, na época, era a terceira da América Latina, só inferior à da Argentina e do Uruguai. Mesma posição que ocupa hoje.
Da excelência da saúde pública cubana, o que há de verdade é um número enorme de médicos por habitante, mais que o dobro do índice da Dinamarca e muito superior ao considerado ideal pela Organização Mundial de Saúde. Mas os remédios que eles receitam nunca estão nas prateleiras. E esses médicos, na realidade, se destinam à exportação, a fim de angariar fundos para o regime. Quanto ao baixíssimo índice de mortalidade infantil de Cuba, inferior até ao dos EUA, é uma realidade, mas raramente se fala do altíssimo índice de abortos em Cuba, um dos maiores do mundo. A coisa funciona da seguinte maneira: se um nascimento apresenta alguma possibilidade de ter problemas, o feto é abortado. Assim se constrói a estatística reconhecida pelas organizações internacionais e apresentada como propaganda do regime.
Se a figura mítica do ídolo Fidel não vai morrer tão cedo, a Cuba sonhada pelos revolucionários românticos já morreu faz tempo. Sob a chefia de líderes menos carismáticos e mais pragmáticos, por mera questão de sobrevivência vai aderindo ao capitalismo seguindo o modelo chinês: toda liberdade ao capital, nenhuma ao indivíduo. Quando ele próprio ainda era um revolucionário sonhador, Fidel disse a seus julgadores: a História me absolverá. Não sei se a História absolverá Fidel, mas espero ao menos que, gradualmente livre das opiniões passionais de admiradores e detratores, a História por fim reduza Fidel a sua correta dimensão.
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