O tempo está bom para falar de reis. O bicentenário da independência e o falecimento da rainha Elizabeth da Inglaterra puxam o assunto. Hoje vou abordar dois personagens tão importantes quanto injustiçados de nossa História: dom João VI e Pedro I.
O rei dom João é apresentado como um glutão bonachão e medroso, e seu filho, o futuro primeiro imperador do Brasil, como um rapagão mulherengo, grosseiro e ignorante a ponto de ser considerado quase um semi-analfabeto. Tanto um quanto o outro isentos de qualidades de estadista.
Mas primeiro de tudo faltou colocá-los em seu devido contexto histórico. O parvo João moveu-se em um verdadeiro olho de um furacão, tendo reinado em um dos períodos mais conturbados e de mais súbitas mudanças de toda a História Universal. De príncipe a rei, sem ter sido educado para tal, pois não era o herdeiro. Da Europa para o Brasil. De absolutista a constitucional. Do Brasil colônia a país independente. Passou por todas essas transições e permaneceu no poder, enquanto outros reis muito mais poderosos e melhor preparados eram depostos e exilados. E mais não se diga, inserido em um ambiente doméstico tão inóspido quanto o ambiente político.
Segundo de tudo, é preciso desmitificar a suposta fuga de João, que dizem, escafedeu-se deixando o seu povo a ver navios, daí ter surgido essa antiga expressão, pois a população de Lisboa ficou vendo os navios do rei sua comitiva ao longe enquanto as tropas de Napoleão chegavam. Mas é preciso dizer e repetir: João não fugiu. Tivesse fugido, seria apenas mais um rei no exílio. Mas continuou reinando, pois junto com ele, foi transportada toda a máquina governamental, incluindo o funcionalismo, os arquivos, o tesouro, a biblioteca que está aqui até hoje, e até uma tipografia completa. Uma operação de logistica complicadíssima para a época, mais ainda por ter sido planejada em total sigilo, que nunca antes fora executada, nem jamais o seria depois. Dom João VI foi o primeiro e o último monarca a visitar suas colônias na América - hoje isso pode parecer estranho, mas na época não se justificava de modo algum um rei meter-se em um navio para uma viagem arriscada e desconfortável, que tomaria mais de três meses tanto para a ida quanto para a volta, perfazendo bem um ano de ausência na metrópole.
A transferência do reino para outro continente foi uma façanha extraordinária e única, que já bastaria para tornar João admirável. Mas ele continuou a ser considerado um governante fracote e pusilânime, que sempre postergava decisões, supostamente por medo de tomá-las. Mas de postergação em postergação, o rei sobreviveu a todas as crises políticas e impasses militares daquea época conturbada, deu um grande impulso ao Brasil, que deixou de ser colônia, e ainda foi bem recebido de volta a Portugal, a terra de onde supostamente havia fugido correndo. Parece-me bem falso que João não tivesse qualidades de estadista.
Já dom Pedro é lembrado por haver tido dezenas de amantes e filhos naturais, bem como por seus modos grosseiros e sua boca cheia de palavrões. Não deixa de ser verdade. Mas se esquece que tal libertinagem era a regra para todos os reis e nobres da época. Uma espécie de compensação: sabia-se que reis e nobres tinham que sacrificar sua vida privada em prol de interesses políticos, com casamentos arranjados, mas ao mesmo tempo eram homens poderosos e acostumados a ter seus prazeres satsfeitos. Então lhes era concedida uma tolerância para casos extraconjugais que não se extendia à burguesia e ao povo.
É verdade também que o rapaz Pedro preferia expressar-se em linguagem coloquial, e por vezes conduzia-se como um rude homem do povo. Mas também é verdade que os arquivos da Biblioteca Nacional guardam muitos documentos bem escritos pelo próprio punho do imperador, em linguagem adequada. Não, Pedro não era um ignorante semi-analfabeto como muitos imaginam; ele teve, sim, uma educação de príncipe. Também é absurdo afirmar que não tinha qualidades de estadista um homem que aos 24 anos já havia feito a independência de um país que era quase um continente inteiro, e antes dos 36 anos já havia conduzido e vencido uma guerra em Portugal contra o usurpador do trono de sua filha, deixando tanto o Brasil quanto Portugal com regimes constitucionais, em uma época em que a monarquia absoluta estava em alta após as guerras napoleônicas. Pedro agiu bem e agiu mal, mas sobretudo, agiu sempre, quando poderia ter simplesmente se retirado para os bastidores e ali levado uma sossegada vida de pândega e fudelança.
Não vejo outra razão para o pouco caso com que são tratados esses personagens tão importantes de nossa História, senão como um sinal de profunda falta de autoestima. Antes que os outros zombem de nós, nós mesmos nos zombamos.
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