Veio em boa hora o livro de Bruno Garschagen, Pare de Acreditar no Governo. O autor procura decifrar um paradoxo que tem desde muito desafiado o meu raciocínio: por que o povo brasileiro, com toda a razão, não confia nos políticos, mas segue idolatrando o Estado, como se o Estado não fosse constituído pelos mesmos políticos em quem não confia. A leitura acrescentou-me dados novos e fez-me rever certos conceitos que eu havia formulado em artigos anteriores publicados aqui.
Um dos conceitos que revi foi a antiga máxima de que, no Brasil, o Estado chegou antes do povo. De acordo com essa explicação, a administração colonial aqui estabeleceu prontamente um organismo burocrático destinado a governar, enquanto os governados propriamente ditos - a sociedade civil - só veio a se formar gradualmente e de forma precária, de sorte que obter uma colocação na máquina pública ou o favor de um alto funcionário tornou-se ao longo das gerações a fórmula mais segura para se vencer na vida. Não foi exatamente assim. O Estado chegou, sim, antes da sociedade civil, mas é preciso lembrar que esse Estado estabeleceu-se em uma terra imensa e desconhecida, e por conseguinte, tinha alcance bem limitado por aqueles vastos sertões escassamente povoados, onde quem efetivamente mandava eram os potentados locais ou quem quer tivesse homens armados sob seu comando. Os proprietários de sesmarias estavam cientes de que a manutenção de seus domínios dependia sobretudo deles próprios, pelo uso da força, e não de um rei longínquo ou de uma administração colonial incipiente. Portanto, se o Estado tendo se formado antes da sociedade civil é uma explicação para a atual idolatria dos brasileiros pelo Estado, não se trata de uma explicação completa. Falta algo.
A obra de Garschagen pacientemente reconstitui toda a construção ideológica que estabeleceu, desde séculos, o senso comum de que o Estado seria o portador da luz, ou da ordem e progresso, necessária para conduzir o país à civilização. Foi essa construção ideológica que efetivamente originou a obsessão nacional pelo Estado. É bem demonstrado como a primeira tentativa de "modernização", levada a cabo pelo marquês de Pombal, utilizou o ideário iluminista para justificar o crescimento do Estado em detrimento da sociedade civil. Convencido de que o atraso de Portugal originava-se do obscurantismo dos religiosos que controlavam a educação e eram refratários aos avanços científicos que se verificavam no norte da Europa, Pombal radicalizou: não só tirou o ensino das mãos dos jesuítas, como expulsou-os de Portugal e do Brasil. O corolário dessa medida foi a encampação do ensino pelo Estado. Não é preciso ressaltar que o indivíduo que estuda em uma escola patrocinada pelo Estado não demora a sonhar em trabalhar para aquele mesmo Estado, ou do Estado se servir para vencer na vida.
A manobra não deu certo. Portugal perdeu a tradição intelectual dos jesuítas que era inclusive admirada na Europa, sem conseguir alcançar a excelência científica de ingleses e franceses. O erro de Pombal foi não perceber que o cientificismo que ele admirava em outros países vinha no bojo de transformações econômicas e sociais que ele não quis ou não pôde implementar em Portugal. Tentou impor essas transformações de cima para baixo, e tudo o que é feito de cima para baixo traz como consequência inevitável o fortalecimento da máquina do Estado, encarregada de emular aquilo que não vem espontaneamente. Como bem expôs Garschagen:
Se o projeto científico foi fracassado, o projeto político iluminista foi vitorioso. Pombal deixou um profundo e nefasto legado, e herdeiros (...) o pombalismo foi o casamento do iluminismo francês com o mercantilismo e o patrimonialismo, que passaram a coabitar e a se retroalimentar em benefício das elites políticas e empresariais ligadas ao governo.
Nas academias brasileiras inauguradas no molde pombalino após a chegada de Dom João VI, floresceu outra filosofia cuja tentativa de implementação em terras tupiniquins trouxe como consequência o fortalecimento do Estado: o positivismo de Auguste Comte. Mas antes disso, os efeitos nefastos do estatismo já podiam ser sentidos na rejeição de nossas elites e do próprio imperador Pedro II à figura de Irineu Evangelista, Barão de Mauá, um dos raros empreendedores privados de sucesso que o país produziu na época. Era visto como um arrivista ambicioso que devia ser mantido com rédea curta. Consagrava-se assim a máxima, até hoje repetida, de que quando o empresário ganha, o país perde. A história do Banco do Brasil, nascido estatal, falido após a partida de Dom João VI, refundado por Mauá e novamente tomado pelo Estado, tornou-se um lamentável enredo muitas vezes repetido na história de nossas empresas, estatizadas quando prósperas, privatizadas quando falidas.
A influência do positivismo entre os proclamadores da república de 1889 é suficientemente conhecida, mas o legado deixado por esta doutrina no desenrolar da história republicana até os dias de hoje é menos comentado. Garschagen puxou o fio da meada. O positivismo foi a primeira doutrina de engenharia social da História, propugnando a construção do "novo homem", que assim reformado, por sua vez reformaria as estruturas políticas e sociais. Coerente com esta premissa, o positivismo priorizava a educação como instrumento para a pretendida transformação da sociedade, e nesse ponto confundiam-se as mensagens doutrinárias com a ciência propriamente dita. Mas Garschagen mostrou que não foi bem esse o caminho escolhido pelos primeiros adeptos declarados do positivismo a chegar ao poder no Brasil, todos no Rio Grande do Sul. O mais notório deles foi Borges de Medeiros, cinco vezes governador estadual. Ao invés de priorizar a educação, ele preferiu aumentar o tamanho do Estado, convencido de que o Estado, composto por indivíduos virtuosos e esclarecidos, cumpriria um papel de tutela sobre todo o restante da sociedade. A ideia era essa.
Borges de Medeiros, diga-se de passagem, não foi um hipócrita - ao contrário, era tão austero que sequer admitia a aquisição de um carro oficial para o governador - mas tudo o que conseguiu foi cercar-se de funcionários subservientes e projetar para o futuro a miragem de um Estado benfazejo e redentor. Teria muitos seguidores - o mais conhecido deles foi Getúlio Vargas, também gaúcho. Não há dúvida de que Vargas foi o patrono-mor do estatismo no Brasil, no que é reconhecido até por seus adversários. Afinal, no cenário do país rural da República Velha, com o Estado estilhaçado e repartido entre miríades de coronéis do sertão que governavam o Estado como governavam seus clãs familiares, é difícil negar que uma figura assim não seria imprescendível para modernizar e esboçar um projeto de país. Logo no início da Era Vargas, verificou-se o aumento do número de funcionários públicos, seguido pela criação de empresas estatais, seja pela encampação de empresas privadas existentes ou pela fundação de novas empresas por parte do Estado. Mas Vargas foi além: também procurou interferir na cultura, definindo o que seria uma genuína cultura brasileira, e foi o pioneiro na cooptação pelo Estado de intelectuais e artistas. Garschagen aponta bem como à medida em que as referências ao positivismo desaparecem dos discursos de Vargas, o ideário positivista materializa-se em suas realizações, em particular a proposta Comtiana de "incorporar o proletariado à civilização ocidental". Foi com esse espírito que Vargas criou sua legislação trabalhista, copiada da Carta Del Lavoro de Mussolini. Consoante com a peculiar implementação do positivismo em terras brasileiras, a incorporação do proletariado não se faria com progressos na educação ou no setor privado da economia, mas com o crescimento do papel do Estado - e desde então ficou gravada na mente do zé-povo que o Estado é o aliado, e o patrão é o inimigo. Quanto mais Estado, supostamente mais ele será defendido da sanha dos patrões.
O estatismo de Vargas foi sucedido pelo de Kubitchek, e mais tarde, pelo dos militares, que se opunham a esses dois primeiros mas nada tinham contra o estatismo - ao contrário, foi durante o período militar que o capitalismo de estado, denominado nacional-desenvolvimentismo, foi levado ao auge nos anos setenta, bem como ao esgotamento nos anos oitenta. Durante pelo menos 50 anos tal modelo foi hegemônico no Brasil, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitchek, Castelo Branco). Bem ou mal alavancou o crescimento econômico e deu partida em nossa industrialização. Mas não sem cobrar seu preço. O Estado não produz riqueza, e precisa ser sustentado pela sociedade por intermédio de impostos. Um Estado que se agiganta necessariamente suga a poupança do país, endivida-se, e se não consegue fechar suas contas, tem a prerrogativa de emitir moeda a fim de forçar os cidadãos a cobrir seus deficits com a perda de seu poder aquisitivo. Em um país onde o Estado é o principal ator econômico, dezenas de empresas privadas dependem exclusivamente de contratos com o Estado para sobreviver, e obviamente farão tudo para conseguir tais contratos. Assim sendo, um coro de duas palavras acompanhou o nacional-desenvolvimentismo desde o seu nascimento - inflação e corrupção - tal como uma maldição, aumentando de tom ao longo dos anos até chegar aos dias atuais.
O colapso do nacional-estatismo nos anos oitenta levou pela primeira vez alguns políticos a convencerem-se de que o Estado tinha que ser encolhido. O primeiro a levantar a bola foi o atrapalhado Fernando Collor, ironicamente um representante do que nossas elites patrimonialistas tinham de mais atrasado. Não deu certo, mas alguma coisa tinha que necessariamente ser feita, e veio Fernando Henrique Cardoso, eleito por um partido social-democrata que jamais havia brandido o discurso do liberalismo. Pela primeira vez em nossa História, o Estado refluiu. Despesas foram cortadas e empresas foram privatizadas, permitindo o controle da inflação. É verdade que os processos de privatização foram cheios de irregularidades e frequentemente financiados pelo BNDES - o próprio Estado paga para livrar-se de suas empresas - mas certo ou errado, os objetivos foram atingidos. Apesar do óbvio sucesso, nem o PSDB nem o presidente assumiram publicamente sua postura anti-estatista, exceto por um arroubo de Fernando Henrique, quando declarou sua intenção de por fim à Era Vargas, afirmação que foi recebida como uma blasfêmia por toda a sociedade brasileira, e valeu a FHC o epíteto de "neoliberal", do qual ele não mais se livraria. Seu próprio partido procuraria livrar-se de seu legado, o que ficou patente na imagem de Alkmin no último debate da campanha de 2006, quando ele compareceu com um bottom da Caixa Econômica Federal. Hoje em dia, não há personagem mais odiado pela esquerda brasileira do que Fernando Henrique, muito embora tenha sido ele quem mais preparou o terreno para a chegada desta mesma esquerda ao poder em 2002. Conhecendo-se a idolatria dos brasileiros pelo Estado, não é difícil entender essa contradição: na visão de seus detratores, FHC não foi somente um mau presidente, mas também um sacrílego.
Com a vitória do PT em 2002, chegou ao fim o hiato de Fernando Henrique: o Estado voltou a ser reverenciado, e voltou a crescer, produzindo nos brasileiros uma sensação de retorno à razão. Aumentou o número de funcionários públicos, bem como o número de empresas estatais. Afirmou-se que o governo Lula exercitava uma espécie de getulismo tardio, o que é em grande medida verdadeiro, mas foi no governo Dilma que se iniciou efetivamente o desmonte da era FHC e o retorno ao nacional-desenvolvimentismo, com o BNDES emitindo moeda sem lastro para empresta-la a juros subsidiados para o séquito de empresários amigos-do-rei, tal como nos bons tempos do "milagre" dos militares. A consequência inevitável tem sido a reprodução do mesmo cenário que caracterizou o esgotamento deste modelo no final dos anos oitenta, a conhecida combinação de crescimento baixo com inflação alta - entretanto, até o momento, poucos tem culpado o inchaço do Estado por esta situação - ao contrário, continuam pedindo mais Estado. Nada surpreendente. Como foi demonstrado na obra de Garschagen, o povo segue amando o Estado porque a idolatria ao Estado foi uma construção ideológica, e não um senso comum estabelecido pela experiência prática - se assim fosse, a desilusão dos brasileiros com os políticos muito coerentemente se traduziria na desilusão com a capacidade do Estado de resolver nossos problemas. A bem dizer, foram várias construções ideológicas que se emendaram uma na outra, cronologicamente: primeiro o iluminismo de Pombal, depois o positivismo de Comte, e por fim o casamento perfeito do anti-capitalismo do PT com o pré-capitalismo de nossas elites patrimonialistas, dando origem a um Estado inchado e perdulário que satisfaz a ambos.
Sendo uma construção ideológica, o Estado, na mente dos brasileiros, permanece como uma abstração pairando acima da realidade decepcionante de nossos políticos que se sucedem no governo perpetuando invariavelmente os mesmos vícios, independente do partido. Não importa: os políticos são maus, mas o Estado tem que ser bom. Não sabemos resolver nossos próprios problemas, alguém tem que resolvê-los por nós. Poucos compreendem o que o Estado é na verdade: mero gestor de uma receita de impostos, assim como o síndico de seu prédio é o gestor de uma receita de taxas condominiais. Penso que nossa vida não vai melhorar enquanto não tivermos nossos governantes na mesma conta em que temos o síndico de nosso prédio.
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