quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Vendo o Chico passar

É de todo lamentável o bate-boca acontecido no Leblon entre Chico Buarque e um grupo de anti-petistas, incidente que tem repercutido amplamente nas redes sociais e suscitado furiosos comentários contra e a favor. Mas também é um sinal dos tempos, e um blog que trata de História não pode deixar de comentar um episódio que marca a transição entre o passado e o presente.

Chico Buarque é indiscutivelmente um dos melhores e mais populares compositores brasileiros, senão o melhor de todos. É lembrado sobretudo por suas instigantes canções de protesto no tempo da ditadura. Mas há um outro aspecto também advindo daquela época pelo qual Chico é lembrado hoje: como um expoente da chamada esquerda festiva, aquela que pregava o socialismo para os outros e os confortos do capitalismo para si.

Essa estirpe teve muitos outros representantes além do Chico, como o ex-jogador Sócrates e o arquiteto Oscar Niemeyer. Outros pertenceram a ela e depois a renegaram, como Paulo Francis. Geralmente intelectuais e artistas, invariavelmente bem sucedidos financeiramente, bons de copo e bem relacionados, a turma costumava reunir-se para beber whisky no Antonio´s, que ironicamente ficava no Leblon, mesmo bairro onde Chico foi insultado esta semana. Durante muitos anos a óbvia hipocrisia dos esquerdas festivos foi tolerada e até vista com certa graça - afinal, não deixava de ser um achincalhe à ditadura, e a turma com certeza não fazia isso sem risco pessoal. É verdade que pessoas como Chico Buarque e Oscar Niemeyer por certo imaginavam que em um hipotético Brasil comunista, eles teriam algum alto cargo público, de modo que seu padrão pessoal de vida não seria alterado, ao contrário do restante da população. Mas na época ninguém parava para pensar nisso.

Hoje, porém, o pessoal não perdoa mais. O encanto quebrou. Uma coisa era ver Chico indo para Cuba quando nenhum brasileiro podia fazê-lo sem grave risco, arrostando todas as possíveis represálias do governo contra suas obras e apresentações; outra coisa é ver Chico hoje indo para uma Cuba que é sabidamente fracassada e pobre, sem risco nenhum e ainda recebendo rapapés, e longe de ter a hostilidade do governo, ainda é brindado com generosas verbas e subsídios. O Leblon do Antonio´s passou. E tal como a banda, Chico também passou: nada que desmereça sua obra, mas ela pertence ao passado. Desde o fim da ditadura, sua inspiração parece haver secado. Isso me lembra uma peça encenada creio que no início dos anos setenta: um certo dramaturgo decadente que fizera muito sucesso em uma época de forte censura e perseguição política, subitamente desaprende a escrever após o país haver entrado em uma democracia. Buscando ter de volta a inspiração, ele contrata atores para desfilar vestidos de policiais, censores para censurar seus textos... se alguém se lembrar do nome da peça, me diga.

Saber disto tudo não me deixa feliz - afinal, também eu compartilhei a inocência daqueles tempos - mas não me escapa uma certa sensação de desforra: a esquerda finalmente conseguiu o que queria. O pessoal não tinha como objetivo convencer-nos de que éramos uma sociedade perversa e dividida em classes? Pois fizeram-no. Os moradores do Leblon afinal vestiram a carapuça e estão comportando-se como a elite arrogante que foi dito que eles são, longe das ilusões de que um trago no Antonio´s podia convertê-los em genuínos porta-vozes do proletariado...

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