Termina 2015, um ano que decididamente não legou nada de bom. A imagem que me vem logo à mente é o rio de lama do desastre de Mariana, que serve de metáfora para outros rios de lama que correram este ano tão ruim. Sem ser protagonista dos acontecimentos, eu como tantos outros permaneci imerso nas redes sociais, blog's e forum's da internet, locais onde reverberam os ecos dos acontecimentos - é a única maneira que tenho de participar deles.
Uma coisa que eu já havia notado desde sempre, mas que realçou-se de maneira extraordinária durante este ano em que a popularidade do governo caiu quase a zero, é o imenso abismo entre o eco dos forum's e o eco das ruas. Os primeiros são frequentados em sua maioria por uma turma que mostra notável uniformidade ideológica em suas visões do país e da política. Essa turma defende o governo petista com unhas e dentes, enquanto todas as estatísticas mostram que o apoio a Dilma Rousseff não passa de 7% na ruas, embora tais opinantes populares não tenham uma argumentação uniforme ou bem articulada para justificar sua posição. Ao mesmo tempo observo o crescimento de uma corrente direitista nos forum's, ainda minoritária, que opõe-se ao governo com um discurso ideológico razoavelmente bem articulado, mas que tampouco é endossado nas ruas. A única coisa que fica claro nisso tudo é que os frequentadores dos forum's não são o povo.
Não me espanta que haja grande diferença de nível intelectual entre os opinantes dos forum's e os populares nas ruas. Tampouco me espanta que haja grande oscilação nos índices de aprovação do governo, pois o povo em sua maioria não segue ditames ideológicos que sedimentem um compromisso permanente, mas apenas julga conforme as benesses que recebe ou deixa de receber - também José Sarney em seu tempo já passou de 80% para 8% de aprovação. O que me espanta é que os forum's não sirvam nem como caixa de ressonância da opinião das ruas - como se vivessem em universos diferentes. Essa turma de petistas, eu já os encontrei nos forum's quando comecei a frequentá-los. Impressiona-me a quantidade deles, e com certeza já existiam muito antes da invenção da internet, veiculando suas opiniões em círculos mais restritos. De início pareciam-me um tanto utópicos e até admirava-me a sua independência intelectual - invariavelmente críticos ao governo, proclamavam-se anarquistas, chamavam Lula de Judas Barbudo, reclamavam que aquele governo não cumpria nada do que eles sonhavam, tudo em meio a críticas hiperbólicas e sugestões absurdas - enfim, o retrato perfeito daquilo que no meu tempo se chamava porra-louca.
Mas de um momento para outro, começaram a mudar. Na medida mesmo em que os bons tempos de Lula ficavam para trás e se iniciavam os anos claudicantes de Dilma, as críticas ao governo começaram a rarear e os forum's passaram cada vez mais a ecoar a propaganda oficial petista, com frequência reproduzindo na íntegra artigos publicados em páginas de revistas de esquerda. Alguma coisa estava acontecendo, sem dúvida. Eu não estava mais diante de divertidos porra-loucas, mas de indivíduos alinhados inflexivelmente com o partido governista, com certeza tendo motivos particulares para tal. O discurso partidarizado substituiu o ideológico: não se falava mais de esquerda e direita, em termos subjetivos, mas de PT e PSDB, sendo este segundo atacado como se fosse o que há de mais à direita no espectro político brasileiro. Confesso que senti saudades dos tempos ingênuos. Embora eu nunca houvesse simpatizado com este pessoal, não pude deixar de ficar chocados ao ver os ex-anarquistas defendendo o aumento de impostos, a impunidade de grandes empreiteiros e o velho capitalismo de compadres.
De onde surgiu, afinal, essa turma? Como explicar a mutação que vem ocorrendo?
Pesquisando aqui e acolá, cheguei a algumas conclusões. Essa numerosa fauna que habita os forum's e redes sociais são nada mais que aquilo que foi batizado por Otto Maria Carpeaux como o proletariado intelectual. Uma rápida pesquisa sobre o assunto pode ser encontrada aqui, mas vou resumir eu mesmo: o proletariado intelectual é uma espécie de exército de reserva de profissionais universitários, indivíduos que têm como objetivo trabalhar para o Estado, mas não encontram colocação. A expansão desse grupo está intimamente ligada à expansão da máquina administrativa bem como do próprio Estado, e obedece a um objetivo específico, embora não evidenciado: além de mão-de-obra para o funcionalismo, formar uma claque de militantes virtuais, ou de cabos eleitorais que trabalham de graça. Isso ocorre porque tais indivíduos, sentindo-se frustrados em seus anseios de entrar para o Estado, passam a sonhar em assenhorar-se deste Estado e moldá-lo conforme seus desejos. Formam, portanto, uma classe de insatisfeitos que está sempre a veicular uma mensagem revolucionária que corresponda aos projetos daqueles que efetivamente controlam o Estado e os instigam a este fim. A fórmula é sempre a mesma: expansão do funcionalismo, seguida de expansão do número de universidades, mas não de cursos voltados às necessidades do mercado, e sim de cursos voltados à necessidade do Estado - com vagas sempre em número superior àquelas que o funcionalismo pode oferecer.
Assim é formada aquela massa de bacharéis semi-letrados e falastrões, gente bem conhecida por qualquer um que tenha frequentado uma faculdade brasileira nas últimas décadas, a ponto de fazerem parte do folclore universitário: quem nunca esbarrou com aquele garoto ou moça que passava os dias no diretório falando de política enquanto sonhava passar em um concurso público, para o qual poucos efetivamente passarão?
Acredito que os tais 7% que ainda apoiam Dilma sejam compostos essencialmente por este proletariado intelectual, minoria absoluta no país real, maioria absoluta no país virtual formado pelas redes sociais, forum's e blog's onde reverberam suas ideias, sempre lamentando que a mídia corporativa não concorde com eles. Minoria sim, mas não deixam de constituir uma massa, no sentido de que são amorfos, não possuem uma estrutura definida com cabeça e membros. E convém lembrar que todas as massas têm um grau de imprevisibilidade, mesmo as mais passivas. Às vezes algumas ondas percorrem as massas sem que saibamos bem de onde vem, ou para onde vão. Foi o que eu observei esse ano com o dito proletariado intelectual que tão bem conheço nos forum's que frequento: os debates rapidamente perderam o tom generalista e tornaram-se partidarizados, basicamente PT x PSDB. Máscaras caíram, o que antes era dito com subterfúgios passou a ser escancarado. Palavrões voaram contra Joaquim Barbosa, contra Sérgio Moro, até contra veteranos petistas. Fiquei surpreso. Mas antes de tudo, a que atribuir essa mudança?
Penso que à evolução política e econômica do país nos últimos 12 anos. Os dois primeiros mandatos de Lula permitiram uma enorme expansão da máquina pública, fazendo com que a massa dos proletários intelectuais passasse dos sonhos ao cheiro do poder já lhes atingindo as narinas. Alguns efetivamente arrumaram algum cargo, e muito outros viram ex-colegas tornando-se poderosos e ricos de uma hora para a outra. As discussões teóricas cederam lugar ao planejamento frio, a zombaria aos adversários cedeu lugar ao discurso de ódio, os escrúpulos cederam lugar definitivamente ao pragmatismo.
No primeiro mandato de Dilma, a guinada em direção ao nacional-estatismo aguçou ainda mais o apetite dessa turma. Mas o dinheiro acabou e a excitação foi substituída pela perplexidade. Ainda sem querer admitir que o sonho acabou e que nunca ganharão a almejada posição de dinheiro e poder, os militantes virtuais agitam os forum's com seus impropérios, ao mesmo tempo em que nas ruas impera a mais profunda reprovação ao governo. Como eu disse antes, as massas às vezes são percorridas por ondas que não se sabe bem de onde vem, nem aonde irão rebentar. Tal como o dique de Mariana que cedeu, a massa de proletários intelectuais tem sido acumulada silenciosamente desde muito tempo. Quando o dique ceder, aonde irá parar?
O ano de 2015, para mim, será sempre lembrado como o ano dos diques que cederam.
Pedro Admiro Muito seu trabalho , suas opniões são consistentes e eu concordo com elas
ResponderExcluirValeu a força.
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