Diante do desolador panorama político da atualidade, a tentação é voltar o olhos para o passado, buscando se não uma explicação para o presente, ao menos o conforto de rememorar uma época em que o grande embate se fazia entre personagens como Juscelino Kubitchek e Carlos Lacerda, ao invés de Dilma Rousseff e Eduardo Cunha. Um certo artigo publicado no Jornal GGN sobre JK chamou-me a atenção.
O artigo recorda a difícil eleição e o conturbado governo de Juscelino, perturbado no início por uma rebelião de militares da aeronáutica e até o final pela furiosa oposição de Lacerda. Apesar de tais percalços, os anos JK são hoje recordados como uma época radiosa, e o autor dá a sua versão para explicar: Juscelino preocupou-se em criar um clima de confiança que permitisse a colaboração de todos em prol de seu projeto político, e com este fim evitou confronto com seus adversários, anistiou revoltosos e não puniu corruptos.
Pareceu-me mais um subterfúgio para justificar a corrupção petista: o certo é deixar roubar, como fez Juscelino, que o país progredirá e todos serão felizes. Mas dá para pensar. Tirando a imensa diferença na estatura de seus protagonistas, há alguma semelhança entre os anos JK e a época presente? Eu penso que sim. Seja-se contra ou a favor, é preciso admitir que Juscelino Kubitchek foi um daqueles personagens cuja influência ultrapassa as gerações e molda os costumes políticos. Ele e Vargas foram os dois pilares do nacional-desenvolvimentismo, modelo econômico que marcou o país no século 20, dos anos 30 aos anos 80, tendo em Vargas sua vertente "nacionalista", estatizante, e em JK sua vertente "entreguista", aberta ao capital estrangeiro. Além disso, Juscelino pertence àquela galeria de personagens que são muito criticados em sua época, mas que depois de mortos ganham uma dimensão que não tiveram em vida. Hoje Juscelino é o Pelé dos presidentes, e uma vez transformada a História em romance, assume o papel do galã-mocinho, enquanto o papel de vilão cabe a Carlos Lacerda.
É claro que no mundo real as coisas são mais complicadas, e nem Juscelino foi santo, nem Lacerda foi demônio, ambos foram personagens de uma época específica que não podem ser julgados em separado do contexto desta época. É fora de dúvida, contudo, que Juscelino foi o último presidente que teve um projeto bem delineado e genuíno entusiasmo para realiza-lo. Mesmo seus adversários reconhecem a honestidade de suas intenções e sua generosidade natural. Juscelino foi tudo isso, sim. Mas também foi ingênuo. Ele fez o país progredir "50 anos em 5", mas pagou a conta com dinheiro de banco imobiliário - ou seja, fez o povo pagar a conta por intermédio da inflação. Como se sabe, a crise sobrou para seus sucessores e foi decisiva para o enfraquecimento e posterior queda dos dois governos que vieram em seguida, de Jânio Quadros e Goulart. Outro erro enorme foi a anistia dada aos revoltosos, que minou a disciplina nas forças armadas, e o resultado foi o que se viu. Desnecessário lembrar que os perdoados não perdoaram JK, que foi cassado e humilhado.
Tanto o país quanto o próprio JK pagaram um alto preço pela euforia dos 50 anos em 5. A par de suas portentosas realizações, Juscelino deixou duas heranças nefastas para o país, uma econômica e outra política, que chegaram até os dias de hoje e à crise atual.
A má herança econômica foi a crença, até hoje endossada por muita gente, de que "um pouquinho de inflação" é essencial para o desenvolvimento. Mas produzir inflação nada mais é do que criar um imposto invisível sem passar pelo parlamento, de modo a obrigar o povo a cobrir os rombos das conta do governo com a perda de eu poder aquisitivo. A ingenuidade de JK a respeito foi bem apontada por Roberto Campos, então ministro: em seu livro de memórias, ele citou uma conversa que teve com o presidente, quando ele afirmou ser contra emitir dinheiro para aumentar o número de funcionários, mas a favor quando se tratava de promover o desenvolvimento. Como se a cédula que sai da prensa da Casa da Moeda estivesse ciente de servir ou não ao desenvolvimento do país, comentou o velho Bobby Fields...
A má herança política foi a crença, também até hoje endossada por muita gente, de que os crimes não devem ser apurados a fim de se preservar um clima político "bom", que permita ao governo tocar seu projeto. Assim, se há corrupção, é preciso deixar roubar, pois processar os corruptos vai prejudicar os negócios. Se há revoltas, é preciso anistiar os revoltosos, pois processa-los irá endurecer a oposição e prejudicar a governabilidade. É uma crença messiânica em um futuro radioso que precisa ser alcançado a todo custo, pois uma vez alcançado, todos os crimes do passado supostamente se tornarão pecadilhos sem importância...
JK jamais foi igualado, mas fez escola. Todo jogador de futebol quer ser Pelé, e todo político quer ser JK. As duas heranças nefastas moldaram a opinião de milhões de personalidades, influentes ou não, e em toda parte há gente fazendo hercúleos esforços retóricos para vender a ideia de que o governo, para ser tão benéfico quanto foi o governo JK, precisa abandonar a austeridade fiscal e deixar roubar, pois inflação e corrupção são necessárias ao desenvolvimento. Mas não haverá outro JK, apenas imitadores medíocres, até que o país se convença de que construir prisão pode ser mais urgente do que construir viaduto, e que moldar o caráter é mais importante do que moldar a infraestrutura física.
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