Terminando a minha resenha do Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes, de Paulo Schmidt, chego João Goulart. O autor não diz sobre ele muito mais do que já sabemos: Goulart foi um desastrado playboy, mais bem sucedido entre as mulheres e em seus negócios pessoais do que na política. Jamais teve um projeto bem delineado, e sua atuação limitou-se quase que só aos palanques, empolgando a multidão mas nulo nos gabinetes, na verdade mais deixando-se levar do que conduzindo a multidão.
Ficou na memória a imagem algo melancólica de um presidente jovem e idealista, que não soube lidar com as forças que o cercaram. Seu fracasso foi mais do que o fracasso de um projeto político, mas também o malogro de toda uma geração empolgada e ingênua, que sonhava e caiu das nuvens. Evoca a saudade de um tempo que nunca foi, mas poderia ter sido, e por isso mesmo pode ser imaginado conforme a vontade do freguês. Retornando à pessoa real de João Goulart, fica a pergunta: como indivíduo tão despreparado pôde ser ungido por Getúlio Vargas como seu sucessor? Não haveria melhores? O autor sugere que tudo aconteceu na segunda metade dos anos 40, quando Goulart começou a frequentar Vargas, então retirado em sua estância. Na ocasião Vargas estava deprimido por haver perdido seu filho mais novo, e Goulart havia perdido o pai, então, da carência de um e de outro, surgiu uma relação pai-filho. Parece-me explicação muito simplista, mas eu não consigo imaginar outra melhor.
Os generais-presidentes
Chegando aos presidentes do ciclo militar, o autor junta todos em um só capítulo, por não haver especificidades na biografia pessoal dos generais-presidentes além dos passos comuns da carreira militar. É verdade, mas é preciso denotar que houve, sim, características distintas entre um governo e outro. Não existiu apenas um governo militar, mas vários. Castelo Branco chegou ao poder em um golpe longamente tramado pela UDN e pelos oficiais que a cercavam, mas que ao contrário das expectativas, não conduziu ao poder a cúpula udenista, cujos líderes mais proeminentes como Carlos Lacerda foram cassados e os demais atirados na vala comum da ARENA. Castelo era um presidente já totalmente esvaziado de poder quando entregou o cargo a Costa e Silva, de quem não gostava. Antes mesmo da doença que o imobilizou, Costa e Silva já era um zumbi que não mais conseguia valer sua vontade. O que houve de fato a partir de 1964 não foi apenas um golpe, mas vários golpes dentro do golpe, que substituíram os antigos oficiais egressos do tenentismo e aliados aos udenistas por um outro grupo, gestado na ESG sob os ventos da guerra fria, este totalmente avesso à política partidária e de fato constituído por tecnocratas, que acreditavam que um país deve ser administrado de forma vertical e hierarquizada tal como uma grande empresa.
É nesse ponto que chegamos à figura enigmática de Emílio Médici, a própria síntese do período, por seu governo haver ocorrido bem no meio daqueles anos turbulentos e por haver encarnado em grau máximo o espírito da época: a repressão e o desenvolvimento. Foram os anos do "milagre brasileiro", mas paradoxalmente, ou não, foram também os anos de repressão mais intensa, muito embora o próprio Médici desfrutasse de boa aceitação popular em razão do bom momento da economia. Por que figura aparentemente tão central do regime foi também tão apagada, a ponto de sumir da vida pública após o fim de seu governo e não ter feito sucessores com seu perfil?
A explicação que encontro reside na própria personalidade de Médici, cujo perfil não era o de um líder político, mas de um burocrata autoritário: a ditadura servia-o na medida em que permitia-o fazer obras conforme a sua vontade, sem pedir permissão a ninguém e sem ouvir críticas de ninguém. No tocante à repressão, Médici era ao mesmo tempo favorável e indiferente a ela: todos os que o interpelaram na época, coisa que só podia ser feita no interior de gabinetes e narrada posteriormente, ouviram dele uma justificativa insolente das violências que eram cometidas, mas o próprio Médici não tocava no assunto por iniciativa própria. Estão ausentes de seus discursos exortações e bravatas a respeito da luta anti-subversiva, lembro-me bem, era como se nada daquilo estivesse acontecendo. Médici não tinha cara de mau, parecia um avô daqueles que gostam de jogar bola com os netinhos...
No aspecto econômico, entretanto, o período militar não divergiu do modelo nacional-estatista de Vargas e Kubitschek, ,também oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitscheck, Castelo). De fato, foi nesse período que o modelo nacional-estatista seria levado ao auge nos anos setenta e ao esgotamento nos anos oitenta. O pior legado dos militares, contudo, foi no aspecto político, com a liquidação das antigas cúpulas partidárias e sua substituição por políticos provincianos, reeditando as piores práticas da República Velha, que valorizava o interior atrasado em detrimento dos centros urbanos. O resultado foi o abastardamento de nossa classe politica, que prossegue até hoje.
João Baptista Figueiredo é hoje lembrado somente por seus cavalos e pela franqueza rude de suas declarações. Pediu para ser esquecido, e foi atendido.
José Sarney foi o perfeito retrato do abastardamento da classe política a que me referi, resultado da liquidação de todas as vanguardas durante o período militar, as de esquerda por certo, mas ironicamente também as de direita: acredito que nem o mais pessimista dos analista acreditaria, em 1964, que 20 anos depois a nova edição de Adhemar de Barros seria um Paulo Maluf, que Jânio Quadros deixaria saudades e que alguém como José Sarney seria um dia presidente. Um perfeito "coronel" do sertão, espécie de museu, Sarney, entretanto, surpreenderia: a desordem econômica na época era de tal monta que até esse coronelão pôde fazer pose de populista com seu Plano Cruzado e com a moratória da dívida externa, antigas reivindicações da esquerda, que ele fez o favor à nação de demonstrar que não prestavam. Ironia máxima, a única experiência genuinamente socialista da república brasileira aconteceu durante o seu governo, com o congelamento de preços, os fiscais do Sarney e a apreensão de bois no pasto, como uma ópera bufa.
De tanto em tanto, na política brasileira, surge um corpo estranho, que tem uma carreira meteórica, chega à presidência e em seguida desaparece tão rápido quanto surgiu. Foi o caso de Fernando Collor de Mello. O exemplo mais notável dessa estirpe foi Jânio Quadros, mas Collor esteve mais para um Jango de direita do que para um Jânio renascido. Tal como Jango, era jovem, rico, mulherengo e confundia imprudência com audácia. Oriundo do mais atrasado dos rincões da politica brasileira, emergiu com um discurso modernizante. Os resultados, contudo, foram desastrosos, e como é o destino dos corpos estranhos, foi expelido pelo organismo. Mas alguma coisa ficou. Aquela sua declaração de que os carros brasileiros "eram umas carroças" soa hoje como aquela palavra que quebra o encanto e faz despertar do sono, no caso, o sono do esgotado nacional-estatismo.
Itamar Franco é hoje mais lembrado por haver aparecido na foto com aquela modelo sem calcinha, e no entanto, fez um governo discreto mas sensato. Fernando Henrique Cardoso é hoje o mais vituperado dos ex-presidentes, mas vindo de quem vem, isso é um sinal de que ele saiu melhor do que a encomenda. Diga-se o que disser, para o bem ou para o mal, foi FHC o construtor do Brasil do século 21. Tal como Vargas, ele pertence àquela categoria de personagens que faz a transição entre duas eras distintas, no casa de FHC, justamente a transição entre a Era Vargas e a modernidade, transição esta que, infelizmente, não foi de todo concluída. FHC foi o herege máximo da política brasileira: encolheu o Estado, abriu a economia, privatizou estatais. Com isso fez o país sair do atoleiro da
estagflação onde estava desde os anos 80, e entregou de bandeja a seu sucessor um país com as contas equilibradas. Nada disso, é claro, ocorreu sem percalços: FHC valorizou em excesso o método fácil da âncora cambial, também apreciado pelos argentinos, que dá resultados rápidos a curto prazo mas é extremamente arriscado a longo prazo. Todos sabemos o que aconteceu com a Argentina na virada do ano 2000, quando a corda da âncora cambial finalmente arrebentou, e parecia que o mesmo aconteceria no Brasil. Mas em 1999 FHC desatrelou o câmbio, provocando uma recessão na economia que desgastou o seu prestígio, mas impediu a explosão inflacionária. Agindo assim, inviabilizou a eleição de seu sucessor e deu os frutos para serem colhidos por Lula. Houvesse seguido o caminho argentino, FHC teria eleito Serra como seu sucessor, mas no colo dele teria deixado uma bomba prestes a explodir. É possível que se seguisse uma convulsão social tal como na Argentina, Serra seria forçado a renunciar e o PT chegaria ao poder com muito mais força do que chegou em 2002. Mas FHC não fez isso.
De Lula e Dilma não falarei, pois tenho falado sobre eles todos os dias, e ainda não pertencem ao passado.