Terminei de ler o Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes, de Paulo Schmidt. O autor repete algumas informações já bem sabidas e destaca alguns pontos obscuros que podem ser uma chave para quem quer entender a personalidade complexa de tais personagens, alternando críticas contundentes com observações bem humoradas. Como certeza foi um livro gostoso de ler, mas que deixa alguma tristeza. Continuando minha resenha, vou abordar os presidentes um a um.
Getúlio Vargas
Até hoje muito controverso, sempre desperta paixões, isso porque ele não pertence de todo ao passado - sob certos aspectos, a Era Vargas continua até hoje. Mas o autor não faz mais que sua obrigação ao reconhecer que Vargas pertence àquela categoria de personagens que fazem a História caminhar, passando de uma etapa a outra. Bem ou mal, certo ou errado, Vargas foi o fundador do Brasil moderno, urbano, industrial, que rompeu com o passado colonial de mero exportador de café. Um homem que tinha um projeto e cumpriu-o até o fim. Vale destacar sua personalidade forte e sua honradez pessoal, atributos que ficam ainda mais valorizados quando se recorda seu contexto familiar desfavorável - seus truculentos irmãos agiam como pistoleiros e ele tinha tudo para ter sido mais um filho de coronel do sertão.
Não discordo desses atributos. Mas a mitificação da figura de Vargas decorre de uma circunstância que acomete outros personagens considerados mártires, como Salvador Allende do Chile: quase toda a ideia que hoje se faz dele origina-se de seu último dia de vida. Ficou na memória coletiva o Vargas heroico que dá sua vida pelo povo e não transige de seus ideais. Os demais dias de sua vida, porém, mostram um homem muito mais complexo e contraditório, que já foi inimigo dos que hoje o enaltecem, que já foi amigo dos que hoje o condenam, que traiu e foi traído, que sofreu violências e cometeu violências. Ele era indiscutivelmente um ditador, cria do positivismo gaúcho que rendeu outros caudilhos menos brilhantes. Fez sua obra tal como um trator que passa abrindo caminho à sua frente e joga para os lados, indistintamente, tudo o que for obstáculo, formando um monturo que mistura coisas que não deveriam ser misturadas. Foi o caso da UDN, seu inimigo figadal. Esse partido reacionário reunia remanescentes da velha república oligárquica demolida por Vargas, mas também democratas sinceros que haviam sofrido toda sorte de perseguição durante o Estado Novo. O notório golpismo da UDN foi, em grande medida, uma reação ao golpismo que o próprio Vargas sempre exercitou em sua trajetória. Se podemos extrair daí uma lição, é a de que nenhuma ditadura, nem mesmo uma "boa" ditadura, consegue fazer uma obra perene: em algum momento do futuro está marcado um ajuste de contas.
Gaspar Dutra
Não é necessário dizer muito mais do que a brilhante definição do autor: Dutra foi o mais coerente de todos os presidentes, pois tinha cara de tolo, fama de tolo, agia como tolo e era tolo. Típico peão de tabuleiro, fez a ponte entre Vargas e Vargas; quando tentou ter algum protagonismo, em 1964, foi rapidamente descartado. Medíocre em quase todos os aspectos, é hoje mais lembrado pela Via Dutra, mas deveria ser lembrado também por sua desastrosa política econômica, que torrou em bobagens o saldo da balança comercial que veio da guerra, e pelo fracasso do Plano Salte.
Juscelino Kubitschek
O autor foi bastante elogioso com esse que é hoje lembrado como "o Pelé dos presidentes", o homem que governou um país com altíssimo astral, que anistiou seus inimigos, que fez o país progredir 50 anos em 5 sob a mais plena democracia. Não discordo de nada disso. Mas os aspectos negativos de seu governo são indissociáveis dos aspectos positivos, pois são, de fato, a outra face destes.
Dentro do modelo nacional-estatista que predominou no Brasil dos anos 30 aos 80, Kubitschek foi o necessário contraponto de Vargas: de fato, esse modelo teve duas vertentes, uma nacionalista e estatizante, outra "entreguista" e aberta ao capital estrangeiro. Vargas foi o representante máximo da primeira vertente, e Kubitschek o da segunda. O nacional-estatismo, foi, assim, tocado a duas mãos. Mas onde foi que o presidente tão bem intencionado errou?
O autor não diz explicitamente, mas tropeça na resposta. Em determinado trecho ele manifesta surpresa e admiração por haver Juscelino conseguido fazer tudo o que fez dentro de um regime plenamente democrático. Mas de certa forma, ainda que inconscientemente, Juscelino recorreu a poderes ditatoriais quando instituiu a emissão de moeda como meio de financiar seus projetos extraordinariamente custosos: esse artifício nada mais é do que confiscar o dinheiro da população sem a necessidade de criar um novo imposto. Os rombos das contas do governo são pagos com a perda do poder aquisitivo do povo. Ora, a constituição proíbe a criação de novos impostos sem a devida aprovação do legislativo, bem como que salários sejam abaixados; quem recorre a esse expediente está sendo arbitrário, tanto que não admira que ele tenha sido repetido, principalmente, durante o governo ditatorial que veio em seguida.
Tal como o aprendiz de feiticeiro, Juscelino começou a mágica, mas não soube para-la. Cumpriu seus projetos, mas deixou o país em uma perigosa espiral inflacionária que pavimentaria o caminho para a queda dos dois presidentes que vieram em seguida. O próprio Juscelino abriu as portas para a ditadura ao apoiar a candidatura de Castello Branco, julgando que assim obteria apoio para ser o próximo presidente em 1965. Pagou caro, e o país também.
Jânio Quadros
O presidente de mais complexa personalidade merece, de fato, uma análise cuidadosa. Funcional ou disfuncional, tudo nele é singular. Não se parece com nada que tenha vindo antes ou que veio depois. Não era de família rica, nem tinha ligações com pessoas importantes; surpreende ter sido o primeiro líder político brasileiro a chegar ao topo valendo-se única e exclusivamente de seu carisma pessoal. Como ele conseguia isso, trata-se de mistério ainda não decifrado, pois parece incompreensível que ele tenha catalisado o apoio das massas populares, não falando o mesmo linguajar dessas massas como fazem os demagogos até hoje, mas usando uma linguagem rebuscada e erudita que parecia mais apropriada às elites, e de fato tão castiça que só podia ser compreendida mesmo por estudiosos do idioma. Talvez as massas tenham se deixado hipnotizar justamente por não compreenderem suas palavras, mas por identificarem-nas como o sinal da autoridade de um líder messiânico.
Pouco sociável e de difícil trato pessoal, tendo-se incompatibilizado até com membros de sua própria família, Jânio tinha extraordinária empatia com a multidão. Muito se especulará ainda sobre o que ele poderia ter feito com tão extraordinário dom, mas os comentários a seu respeito sempre serão muito mais sobre o que poderia ter sido do que sobre o que foi. Como jogador temerário, no momento mais crucial de sua carreira, Jânio apostou todas as suas fichas. E perdeu.
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