sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Em busca do Jesus Histórico

Todo final de ano, época de natal, é a mesma coisa: são exibidos na TV paga várias séries e documentários especulando sobre o "verdadeiro Jesus", ou o Jesus histórico. Confrontam informações da bíblia com as de historiadores antigos e da arqueologia, são em geral interessantes mas pecam pelo excesso de imaginação, deixando mais perguntas que respostas. Não sou nenhum especialista em teologia, mas tenho algumas opiniões a respeito.

O primeiro ponto que me chama a atenção é: como personagem de tal importância não foi citado por nenhum cronista contemporâneo? Josephus citou Herodes, Pilatus e João Batista, mas não disse uma palavra sobre Jesus, que só começa a aparecer em textos escritos mais de cem anos depois. A explicação que encontro é que Jesus era analfabeto, pois não existe amostra de sua escrita. Essa premissa é compatível com a origem humilde do messias. Por este motivo, suas ideias se propagaram inicialmente apenas por via oral, com lentidão. Seus ensinamentos não foram escritos pelo próprio, mas por discípulos conhecidos como evangelistas, sendo de todo justo que se levantem dúvidas quanto a sua autenticidade; de fato, há várias versões dos ditos evangelhos, algumas bem divergentes, mas a Igreja adotou como autênticos quatro textos que correspondem mais ou menos um ao outro. Os demais são considerados apócrifos. Alguns têm todo jeito de narrativa folclórica, como aquelas passagens da infância de Jesus fazendo mágicas para os amigos e atazanando seus pais, mas outros são bem instigantes. A discussão é longa e vou parar por aqui.

Outro ponto que me chama a atenção é a diferença da pregação de Jesus comparada com a dos demais profetas do Antigo Testamento. Todos aqueles tinham o foco no coletivo, dirigiam-se ao povo, censuravam os costumes do povo e anunciavam castigos para o povo inteiro. Jesus falava ao público, mas sua mensagem se dirigia ao indivíduo. Diversas passagens dos evangelhos mostram colóquios individuais entre Jesus e um interlocutor, geralmente uma mulher. Aparentemente, Jesus não foi influenciado por aqueles profetas antigos, então de que fonte bebeu? Houve época que estava na moda apontar Jesus como um membro dos essênios, a seita mais exotérica do judaísmo; há de fato pontos em comum, mas um estudo mais detalhado da doutrina dos essênios desmente essa assertiva. Outros comentaristas vão além e fazem um paralelo com o budismo. Faz algum sentido: de fato, o desapego aos bens materiais não era ideia muito em voga no Oriente Médio até então, mas é preciso muito esforço para imaginar Jesus viajando à Índia e à China para adquirir seus conhecimentos. Teria Jesus desenvolvido sua doutrina inteiramente sozinho? Alguns afirmam que ele foi discípulo de João Batista, mas nada se pode provar.

Mas inevitável mesmo, e recorrentes, são as especulações em torno de um Jesus "libertador", ou seja, revolucionário. Jesus censurava os ricos e exaltava os pobres. Um socialista? Jesus afirmou que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Disse, aquele que tem duas capas, dê uma aos pobres. Quanto a mim, não tenho dúvida nenhuma: se Jesus fosse mesmo um socialista, teria aceito a sugestão de satanás no deserto, de transformar pedras em pães (para distribuir aos pobres, é claro, mas também pegar para si, que ninguém é de ferro, né?) bem como a sugestão de adorar satanás prostrado para em troca ter o poder sobre todos os reinos da terra (para governar em favor dos pobres, é claro). Havia um discípulo em particular que pensava dessa maneira. Uma ocasião em que uma pecadora arrependida banhou os pés de Jesus com um perfume caríssimo, ele se indignou e declarou que melhor seria vender aquele perfume e distribuir o dinheiro aos pobres. Resposta de Jesus? Pobres, sempre os tereis convosco. O nome do discípulo? Judas Iscariotis. Que bem pode ser considerado o patrono da Teologia da Libertação, bem como da mais atual Teologia da Prosperidade...

A concepção de um Jesus "socialista" revela uma compreensão incompleta de sua doutrina. Jesus pregava o desapego aos bens materiais como premissa necessária para se obter a elevação espiritual. Portanto, o conselho de vender os bens e distribuir aos pobres tinha o propósito de beneficiar o doador dos bens, e não o receptor, pois de resto Jesus sempre esteve ciente de que mesmo se todos distribuíssem seus bens aos pobres, não bastaria para erradicar a pobreza do mundo - pobres, sempre os tereis convosco. Que Jesus não era um revolucionário, disso também estava ciente Pilatus, que hoje se sabe, era adepto da repressão violenta aos oponentes do domínio romano, e dispunha de um ótimo serviço de informações. Por isso sabia que Jesus não se opunha a Roma, e até declarava ser válido pagar impostos a César; era anátema para a elite farisaica, não para os romanos. No máximo, um desordeiro, caso para umas chicotadas, que Pilatus prontamente mandou aplicar, mas um governante romano deve preservar a Paz Romana, e por este motivo Pilatus cedeu aos sacerdotes e mandou crucificar Jesus.

Tenha sido quem foi o Jesus histórico, é fato que o cristianismo, religião surgida no oriente, foi indispensável para o estabelecimento da civilização ocidental como a conhecemos.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Qual vai ser a reencarnação do PMDB?

Falar das próximas eleições é falar de História?

Sim, desde que se conheça a gênese dos partidos políticos. Quem conhece, não se espanta com certos fenômenos, pois é tudo dejà vu. Certos partidos políticos são a reencarnação de outros partidos do passado. É o caso do PMDB, que não lança candidato próprio faz 30 anos, mas está no poder desde sempre. O PMDB, como se sabe, é a reencarnação da velha ARENA implodida quando da eleição de Tancredo Neves, a qual, por sua vez foi a reencarnação do velho PSD, que por sua vez foi a reencarnação de velhos partidos da república velha. Em comum, todos esses partidos têm a ausência de ideais autônomos e o oportunismo de fazer conchavos que atendam a interesses provincianos, corporativos ou meramente pessoais de seus integrantes. Parece desprezível, mas são precisamente esses conchavos que permitem o que se chama a governabilidade. Em outras palavras, significam que o partido que está nominalmente no poder pode governar de fato, posto que assim se cria uma teia de compromissos que mantém colaborativas ou pelo menos quietas em seu canto todas as forças capazes de influir na política. Alguns presidentes, como JK, foram especialmente habilidosos em tecer essa teia, outros nem tanto, mas todos dependeram da existência de um partido que aglutinasse aqueles que não tinham ideais, apenas interesses.

Esse partido precisa existir, pois sem ele as peças do jogo político não se movem. É o chão da política, por assim dizer. É sujo? Sim, mas ser sujo é da natureza de todo chão, assim como é da natureza do chão sustentar o que se constrói sobre ele. E devemos admitir, o PMDB tem executado bem essa função nos últimos trinta anos. Sem fazer alarde, sustentou o bipartidarismo PSDB & PT que sucedeu ao colapso do nacional-estatismo autoritário e bem ou mal tem feito o país funcionar desde o Plano Real. Mas nada é para sempre, e como dizem os alemães, tudo tem um fim, exceto a salsicha, que tem dois. Revendo o passado, todos os partidos que correspondem às reencarnações passadas do PMDB um dia implodiram. E observando o quadro atual, com a crise, os escândalos e as prisões de seus principais dirigentes, a mim não fica dúvida: o PMDB acabou. Pode até estar nominalmente no poder, mas tem o presidente com menor índice de aprovação da história, sem a mínima possibilidade de fazer seu sucessor. Pode até ser majoritário no legislativo, mas não tem mais lideranças capazes de mobilizar seus próprios deputados a votar em projetos do governo, se é que estes ainda existem.

Sem o PMDB para formar o chão, o quadro eleitoral torna-se instável, e aparecem os arrivistas, outra tendência atávica de nossa política, já abordada por mim em outros artigos. Conhecemos bem as consequências a longo prazo desses arrivistas no poder, mesmo que tenham nele permanecido por pouco tempo. É improvável que o bipartidarismo PSDB & PT vá continuar, mesmo porque tampouco PSDB e PT são os mesmos. Fica a indagação: quem será a reencarnação do PMDB, que irá proporcionar uma nova era de estabilidade política?

Um candidato a este papel  é o PSDB, um abortado partido social-democrata que se tornou liberal por força da circunstâncias, que até ontem fez par com o PT, um abortado partido bolivariano que se tornou social-democrata por forças das circunstâncias. O PSDB bem poderia descer mais um degrau e tornar-se conservador, reencarnando o PMDB. Mas retornando ao exemplo da História, convém lembrar que a encarnação passada da velha ARENA não foi a UDN, partido opositor aguerrido, e sim o PSD, partido de conchavos. E nos últimos anos, mais precisamente desde a primeira eleição de Lula, o PSDB tem sido mais uma UDN renascida, posto que foi única oposição declarada ao governo petista, mesmo que nem de longe tão ferina quanto a dita cuja. Para quem foi UDN, parece tarde para ser PSD. Sem renovação em suas lideranças, o PSDB periga cair na irrelevância e deixar o campo livre para o PT, que está bastante abalado, mas ainda tem Lula na liderança das intenções de voto. Mas como será um futuro governo do PT sem o PMDB para lhe garantir a tão necessária governabilidade? Periga fazer o caminho oposto, e de social-democrata passar a bolivariano, isso se tiver força. Se não tiver, suprema ironia, periga do próprio PT tornar-se a reencarnação do atual PMDB, devidamente amansado e sanitizado, tornado viveiro de políticos profissionais.

O ano que vem dará as respostas.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Revendo os Guias Politicamente Incorretos

Já está na TV paga uma série mostrando reportagens sobre os conhecidos Guias Politicamente Incorretos, apresentada entre outros por Leandro Narloch, autor da maioria deles. Eu li todos, e saudei o seu surgimento como enfim um rompimento com os esquematismos ideológicos que vem dominando o ensino de História desde o quarto final do século passado. A popularidade dos guias bem mostra que o público estava cansado das repetições de sempre: que os índios foram sempre vítimas, que o Brasil promoveu um genocídio no Paraguai a mando dos imperialistas britânicos, que nossos heróis foram uns canalhas etc. Mas desde o primeiro ficou na minha cabeça uma advertência levantada por Narloch: não seriam esses guias tão politicamente enviesados quanto os textos que eles combatem?

São, sim, politicamente enviesados como o próprio autor deixou implícito ao admitir que seu propósito era mostrar como é fácil exibir uma versão tendenciosa dos fatos históricos. E convém lembrar, Leandro Narloch não é um historiador, mas um jornalista. Ele não foi às fontes originais obter informações novas, apenas exibiu informações já sabidas mas que vinham sendo sistematicamente omitidas pelos cultores do politicamente correto, a fim de apresentar uma nova versão. Falsear a História é fácil porque não é preciso mentir, basta omitir. Enfatizar aqui e minimizar ali. Mas já é tempo de se fazer uma revisão dos guias politicamente incorretos. Controvérsias não faltam, mas vou me ater aos aspectos que considero mais triunfantes dos guias.

O primeiro deles, sem dúvida, foi acabar com a imagem romântica que se tinha dos índios, vistos como um povo pacífico que vivia em comunhão com a natureza, procurando conservar a floresta que os colonizadores destruíram. Para começar, os índios não são um povo, mas vários povos, que não falavam as mesmas línguas nem eram exatamente amigos uns dos outros. Recentes descobertas arqueológicas, já comentadas aqui por mim, revelam que havia grandes aldeias no feitio de cidades, roçados e pomares em diversas regiões. Então, quinhentos anos atrás não devia haver muito mais floresta nativa do que há hoje. É claro que os índios também destruíam a floresta. Não foi devidamente explicado porque essas grandes aldeias desapareceram, mas a arqueologia também revelou que diversas culturas tiveram períodos de expansão e declínio antes da chegada dos portugueses, certamente o resultado de guerras e condições naturais adversas. Os índios não precisavam dos colonos para exterminar os índios, sabiam fazê-lo eles próprios. O que não deve causar surpresa, pois nunca foram vítimas patéticas, mas povos com interesses próprios, que como todos os outros, também jogaram o Jogo da Civilização. Às vezes ganharam, outras vezes perderam.
Bem oportuno foi o desmentido da versão da Guerra do Paraguai lançada pela conhecida obra de JJ Chiavenatto: Guerra do Paraguai, Genocídio Americano, que vinha sendo adotada como versão oficial nas escolas, e contava a história de uma guerra onde Brasil e Argentina foram fantoches dos imperialistas britânicos, interessados em liquidar o Paraguai, que supostamente dispunha de um modelo desenvolvimentista independente das grandes potências. Na verdade, essa versão já havia sido derrocada pela excelente obra Maldita Guerra, de Francisco Doratioto, essa sim completa e com sólida base documental e metodológica. Os ingleses não tinham interesse em destruir o Paraguai, e no início do conflito, quem tinha relações cortadas com o Império Britânico era o Brasil, consequência da Questão Christie. Ao contrário, os ingleses tinham aceito a encomenda de navios de primeira linha por parte do Paraguai, que acabaram não sendo entregues porque a guerra eclodiu antes. Ficou mostrado que Chiavenatto queria fazer um paralelo entre o Brasil, o Paraguai e a Inglaterra do século 19 com o Brasil, Cuba e os EUA do século 20, sendo os EUA o modelo da potência imperialista que foi a Inglaterra, o Brasil o modelo do estado subalterno aos imperialistas, e o Paraguai de López uma espécie de Cuba onde toda a população era alfabetizada, não havia propriedade privada e todos trabalhavam para o Estado. Não era bem assim. No Paraguai da época, as terras pertenciam ao Estado, mas o Estado pertencia aos lopistas.

Foi também oportuna a revisão do retrato estabelecido de alguns heróis nacionais. Não que o propósito fosse denegri-los, a intenção era mostrar como certas versões originadas de boatos ou pura ficção acabaram se tornando verdade de tão repetidas, ou por serem sedutoras. Todos conhecem o artista Aleijadinho, que sofria de grave enfermidade que lhe fez cair os dedos das mãos, e executava suas obras com as ferramentas amarradas ao que sobrou de seus membros. O que muitos não sabem é que quase todas as informações que se tem sobre ele provem de um livreto escrito décadas após sua morte, e as fontes do autor são desconhecidas.

As escassas provas materiais da existência de Aleijadinho, além das obras atribuídas a ele, são recibos assinados pelo artista, o que prova que ele tinha dedos nas mãos que lhe permitiam, ao menos, segurar uma pena. A lenda de que ele trabalhava com as ferramentas atadas às mãos doentes sempre me despertou certa desconfiança. Ainda que fosse possível atar as ferramentas ao que lhe sobrara das mãos, ele por certo não suportaria a dor de manusea-las. Convém lembrar, as madeiras nobres utilizadas em estatutária são bastante duras, e entalhá-las é tarefa desgastante até para quem é sadio. A realidade deve ter sido menos fantástica. Lembrou o autor dos guias, a arte barroca é um trabalho essencialmente coletivo, e lembro eu, o artista apelidado de aleijadinho era bem conceituado, e é plausível supor que dispunha de um ateliê com bom número de auxiliares, e ao final da vida, já doente, ele se limitasse a supervisionar os trabalhos.

Parabenizo o autor pela coragem de mexer com um dos heróis mais unânimes de nossa história, o inventor Santos Dumont. Mais uma vez, o propósito não era denegri-lo, apenas chamar a atenção para um mal entendido que vem desde o início do século passado: não foi ele o inventor do avião. Os irmãos Wright voaram primeiro.

A polêmica é antiga, mas desde algum tempo eu já havia dado ganho de causa os americanos. Não vou entrar aqui no mérito de questões técnicas do voo, como o uso ou não de uma catapulta para fazer decolar. Chamo a atenção para um aspecto mais óbvio: foi a configuração da aeronave dos irmãos Wright que prevaleceu. E essa configuração era totalmente diferente daquela do 14-bis.
Quase todo mundo (eu inclusive) quando vê uma foto do 14-bis imagina-o voando com a hélice na frente e o leme atrás. Mas era o contrário. A hélice ficava atrás, junto com o piloto e as asas, e o leme (ou profundor) ficava na frente. Essa configuração, batizada de canard (pato, em francês) é totalmente estranha nos dias atuais, e por um bom motivo: nunca foi encontrada uma solução de estabilidade para ela. Quando tentava fazer curvas, o 14-bis facilmente perdia a sustentação, e acabou destruído em um acidente. Santos Dumont construiu outra aeronave, batizada número 15, com uma configuração semelhante à do 14-bis, que acabou destruída em um acidente também muito semelhante. Desde então a configuração canard nunca mais foi usada por nenhum construtor de aviões, nem mesmo pelo próprio Santos Dumont. Já a aeronave dos irmãos Wright lembra em tudo um avião atual: motores montados sobre as asas, piloto na frente, leme e profundor atrás. Todos os aviões atuais utilizam esta configuração.

Fora do Brasil, Santos Dumont nunca foi considerado o inventor do avião. Na realidade, ele levava mais fé em balões dirigíveis, no que aliás não estava de todo errado, pois até o acidente com o Hindenburg, os dirigíveis foram os mais utilizados em viagens transoceânicas. Isso fica implícito até no nome que deu a seu invento, 14-bis, denotando que no projeto original a aeronave seria apenas um complemento a seu balão número 14. Só depois de muita insistência de amigos ele decidiu dar meios a sua aeronave para decolar por conta própria. A pessoa de Santos Dumont é fascinante e paradoxalmente pouca conhecida de brasileiros. Eu recomendo a leitura de Asas da Loucura, escrita por um americano. O inventor foi, acima de tudo, um excêntrico. Não almejava ganhar dinheiro, mas trabalhava apenas por prazer, e conforme sua inspiração, podia tanto fazer inventos úteis quanto bizarrices estilo Professor Pardal. Foi um grande homem, mas não foi o inventor do avião.

Também nesse quesito de figura histórica construída por obras literárias ao invés de fatos, eu poderia citar Dona Beja, que todos conhecem, mas poucos sabem que a história que é contada em novelas baseia-se em um romance escrito muito depois de sua morte. A personagem existiu, mas quase tudo que se diz sobre ela é lendário. O mesmo acontece com Xica da Silva. O caso é que há heróis que surgem para satisfazer uma demanda do público, e personagens históricos são escalados para este papel. Os guias citam também Lampião, até hoje herói popular, mas que na realidade foi um bandido cruel, amigo de vários coronéis do sertão e que não tinha nenhum apreço pelo zé-povinho.

Os guias são tendenciosos e possuem falhas, mas a discussão suscitada por eles é sempre bem vinda.

domingo, 19 de novembro de 2017

Multiculturalismo: o Brasil e a Catalunha

Causou curiosidade e certa perplexidade por aqui a notícia da declaração da independência da Catalunha. Não que tenhamos, é óbvio, alguma coisa a ver com o ocorrido, que de resto não teve efeitos práticos, mas foi muito significativo no contexto presente de rejeição ao globalismo, sendo eventos recentes o Brexit e a eleição de Trump. Faz pensar. No senso comum sul-americano, a Europa é um continente de estados-nação estabelecidos e estáveis, onde termos como Catalunha, Galícia, Beira, Gales, Silésia, Tirol, Valônia possuem apenas um significado geográfico e histórico, e causa surpresa saber que algumas dessas regiões se veem como países independentes. Isso parece contraditório: movimentos separatistas seriam mais plausíveis em países como o nosso, muito mais recentes e instáveis, com muito maior diversidade regional, e menos densidade populacional com regiões isoladas. Por que não é assim?

É uma oportunidade de rever a História. Globalismo e multiculturalismo são daqueles conceitos que de tão usados na época atual, acabaram banalizados: todos os repetem, mas poucos sabem defini-los. Diz-se que o Brasil é um país multicultural, e fundamenta-se essa assertiva em nossa diversidade étnica e cultural. Mas é preciso discernir até onde vai de fato essa nossa suposta diversidade.

A primeira coisa que precisa ser dita é que a nossa diversidade étnica é, no atacado, uma diversidade racial. Não é a mesma coisa. Uma etnia significa um povo que tem identidade própria, língua e história próprias. Computam-se no Brasil cerca de 400 línguas diferentes faladas por grupos nativos isolados, mas o número total de nativos brasileiros não chega a 1% da população total do país. O restante exibe apenas a nossa conhecida diversidade racial, com pouca diferença cultural, exceto algumas idiossincrasias de região para região. É significativo que apesar de todo o isolamento regional e do analfabetismo que cem anos atrás chegava a 80% da população, o português brasileiro não se fracionou em dialetos mutuamente ininteligíveis.

Bem diferente é o quadro na Europa, onde regiões relativamente pequenas e com alta densidade populacional exibem conjuntos de grupos étnicos antigos, que preservam sua língua ancestral, embora todos falem a língua oficial do país, e são muito ciosos de sua identidade. Isso acontece porque esses povos, séculos atrás, eram de fato independentes. Diferente da evolução histórica do Brasil, onde nossa diversidade étnica foi lançada em um caldeirão de mistura, que sempre girando não permitiu  a fixação de grupos muito distintos. Para começar, os povoadores aqui estabelecidos raramente dispuseram de alguma autonomia política que os permitisse preservar língua e práticas ancestrais, e em muitas ocasiões, foram abertamente proibidos de fazê-lo. Nosso multiculturalismo é basicamente uma mistura muito indistinta, onde se percebe aqui e ali vestígios do passado.

O que não impede que muitos usem a retórica para amplificar nossa diversidade, muitas vezes com propósitos inconfessáveis ligados ao globalismo. O exemplo mais marcante é a exigência de que os brasileiros de pele escura se identifiquem como "afro-brasileiros", como se tivessem alguma ligação menos que remota com a África de origem. Mas há exemplos mais maliciosos, como a construção ideológica de "nações indígenas" que supostamente deveriam ter autonomia, tal como tem a Catalunha e o País Basco na Espanha. Já foi amplamente denunciado que essas nações são, na verdade, constituídas de reminiscências de várias tribos sem relação entre si, e obviamente incapazes de autogoverno, ficariam sob a tutela internacional, como querem os globalistas. Há também exemplos mais caseiros, como os que veem as favelas das grandes cidades como enclaves étnicos tal como existem na Europa, e clamam que as comunidades ali residentes teriam uma cultura própria que deveria ser respeitada. É nesse contexto que o baile funk é considerado "resistência cultural" do povo da periferia, esquecido de que se trata de uma importação dos guetos norte-americanos, sem raízes em nossa cultura popular.

A separação da Catalunha (ou da Escócia, da Valônia ou do que seja) é fenômeno restrito à Europa. Por aqui, movimentos separatistas, como os que querem um sul independente ou uma amazônia pertencente aos povos indígenas têm um aspecto caricato. Felizmente.

domingo, 12 de novembro de 2017

Brasil x Argentina: eu sou você amanhã?

Chamamos aos argentinos de "los hermanos" com um pingo de ironia. O paralelismo entre os acontecimentos no Brasil e na Argentina é um fenômeno histórico curioso, e por vezes embaraçoso. Certos ciclos por que um país atravessa parecem se repetir no outro, como se fosse uma imitação. Foi assim com o peronismo, que aqui se chamou getulismo. Mais tarde o casal Nestor e Cristina Kirshner seria mimetizado pelo "casal" Lula e Dilma, e quando tanto os primeiros quanto os segundos saíram do governo, pode-se afirmar que Michel Temer é o nosso Macri. Essa última comparação torna-se instigante agora que parece que Macri está obtendo uma recuperação econômica consistente e obtendo apoio popular para seu projeto, em substituição ao nacional-populismo, então Temer devia fazer o mesmo aqui.

Mas até onde são procedentes esses paralelos?

Não gostamos de ser considerados imitadores dos argentinos, que não sem motivo nos chamam de macaquitos. A rivalidade entre brasileiros e argentinos é evidente, mas também folclórica, pois é uma rivalidade pueril, muito canalizada para as disputas futebolísticas. É outra coisa quando a rivalidade surge em decorrência de um passado de guerras e confrontos. Sabemos que, no fundo, não somos muito diferentes um do outro. Mas até onde vai essa semelhança, afinal?

A comparação entre Perón e Vargas, eu considero uma simplificação grosseira. Há um paralelismo óbvio quanto ao contexto histórico, político e econômico em que ambos surgiram: fim do domínio das oligarquias rurais, urbanização, transição de uma economia agrária para industrial, centralismo e dirigismo, influências do fascismo europeu e do comunismo. Mas quanto ao estilo pessoal, não há muito em comum além de ambos terem sido autoritários. Perón foi um populista assumido que se apoiava em uma rede de sindicatos atrelados ao governo. Vargas foi acusado de ser um populista e de querer montar uma "república sindicalista" nos moldes peronistas. Décadas depois, a comparação parece estar mais calcada naquilo que Vargas foi acusado de ser, do que naquilo que ele efetivamente foi.

Na economia, também há paralelismo. Nos anos oitenta, o plano austral lá e o plano cruzado aqui, ambos fracassados e terminados em hiperinflação. Depois o Plano Cavallo lá e o Plano Real aqui, bem sucedidos inicialmente. Depois a comparação diverge. O Plano Cavallo terminou em crise, e a inflação voltou sob os Kirshner, ao passo que aqui o Plano Real, bem ou mal, sobreviveu e foi mantido pelo governo que sucedeu seu criador (ou pelo menos, esse governo não conseguiu se livrar dele).

A volta do nacional-populismo no início do século 21 também se enquadra em um contexto político e econômico similar por que ambos os países passaram: o esgotamento do ciclo dito neoliberal, que acabou com a inflação; o saudosismo do estado grande, o boom das commodities que permitiu medidas de alcance social. Mas há uma diferença importante: na Argentina, a herança do peronismo foi encampada por um partido político sólido e unido, enquanto que aqui os partidos trabalhistas se fragmentaram e vários se proclamam herdeiros do varguismo. Os Kirshner, na Argentina, adotaram medidas discricionárias que o PT nunca teve força para adotar aqui. Por outro lado, a queda do kirshnerismo se deu por uma eleição regular, enquanto aqui a queda do petismo se deu por impedimento da presidente.

Mas voltando à pergunta feita de início, Temer vai repetir o sucesso que Macri está tendo no momento atual, fazendo seu sucessor dentro de um projeto consistente e oposto ao nacional-estatismo? Primeiro de tudo é preciso lembrar que Temer é um herdeiro do governo anterior, do qual foi vice-presidente. Nunca foi eleito, nem tem uma base parlamentar sólida. As ideias estão no ar, mas falta um líder que as concatene. Se teremos um Macri brasileiro, este só vai surgir na eleição de 2018. Ou então teremos que escolher entre Lula e Bolsonaro.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Nova Luz Sobre o Brasil Pré-cabralino

Terminei de ler o livro 1499 O Brasil Antes de Cabral, de Reinaldo José Lopes. Em estilo jornalístico, leitura leve e até divertida, própria para o grande público, a obra dá conta de recentes descobertas que vem mostrar que os nativos brasileiros não eram tão primitivos nem tão parados no tempo quanto se estabeleceu no senso comum e foi endossado por professores nas escolas - ao contrário, nossos índios moravam em aldeias do tamanho de cidades, cercadas de muros e interligadas por estradas, praticavam uma agricultura evoluída e tinham redes de comércio. O livro deixa muitas revelações e algumas indagações.

A ideia de índios "diferentes", na verdade, não é tão estranha assim do público. Todos conhecem o nome do rio Amazonas, tirado da lendária tribo de mulheres guerreiras da antiguidade clássica, e segundo consta, chamado assim porque um explorador espanhol narrou haver sofrido ataque de mulheres guerreiras na região. O nome pegou, mas as tais mulheres nunca foram vistas novamente. Afirmou-se que o explorador teria tomado por mulheres homens com cabelos longos, comuns nas tribos da região. Mas outros exploradores menos imaginosos fizeram narrativas bem mais minuciosas, contudo igualmente inacreditáveis. Falaram de aldeias tão grandes que podiam ser avistadas por horas enquanto os barcos desciam o rio, ligadas por estradas largas e planas, paliçadas, roçados e muito mais.

Tal como as mulheres guerreiras, ninguém nunca mais viu tal coisa, e essas narrativas passaram ao terreno das lendas, até que recentes descobertas arqueológicas apontaram vestígios das tais aldeias gigantes e seus planos urbanísticos. Muito antes o povo da região já se referia à "terra preta dos índios", herança de antigos roçados sustentados por fertilizantes naturais. Também eram conhecidos certos "pomares naturais" na floresta, com grande concentração de uma única espécie de árvore, que dificilmente poderiam ter surgido por obra do acaso.

De fato, a pré-história brasileira é muito pouco conhecida e certos conceitos estabelecidos já sofreram reviravolta no passado, a começar pelo própria antiguidade do povoamento da América. O autor contou a história de Luzia, nome dado a um crânio feminino de características africanas e melanésias encontrado em Minas Gerais, e posteriormente datado de 15 mil anos. As características do crânio deram origem a especulações de que os primeiros habitantes dessas terras não teriam sido siberianos que atravessaram o estreito de Behring como sempre se supôs, mas habitantes do Pacífico sul que teriam de alguma forma cruzado os mares. A discussão continua aberta, mas a mim parece que a explicação é mais simples: todas as raças humanas se originaram da África, há cerca de cinquenta mil anos, e só lentamente adquiriram as características atuais à medida em que as populações migravam e se adaptavam ao clima das regiões onde se estabeleciam. Então, é possível que os siberianos de 15 mil anos atrás não fossem muito diferentes dos atuais africanos.

As revelações do autor tocam certos pontos sensíveis de nosso sentimento identitário. Ao longo de nossa história, a herança indígena tem sido alternadamente desprezada e exaltada. Há um sentimento de inferioridade em relação ao colono europeu, e mesmo às outras etnias nativas da América, bem mais evoluídas. Outros, porém, têm usado o índio brasileiro para moldar mitos fundadores que estabeleçam uma afinidade do brasileiro com sua terra ancestral, e nesse afã o índio é romantizado. Exemplos não faltam. Para uns, o índio é corajoso e varonil; para outros, é uma vítima patética, massacrado e exterminado pelo colonizador. Nesse ponto, e obra de Reinaldo Lopes é oportuna para mostrar que o índio verdadeiro não é uma coisa nem outra, mas assim como faz muitas revelações, também deixa algumas indagações.

A principal delas é: se os índios que habitavam o interior do país há apenas 500 anos atrás eram tão evoluídos, por que poucos séculos depois só restavam vestígios de suas enormes aldeias?
Sabe-se que muitas tribos do litoral foram dizimadas e expulsas pelo colonizador. Mas não há relatos de bandeirantes travando combates com exércitos de tribos populosas que habitavam verdadeiras cidades no interior de Goiás e Mato Grosso. Quando eles chegaram a essa região, os povos que encontraram habitavam pequenas aldeias e não eram mais evoluídos que os do litoral. Seja lá o que foi que aconteceu, foi antes deste momento. O autor não chega a dar uma explicação completa, e acaba levantando mais indagações. Começa por apontar uma dificuldade comum dos povos nativos da América: o conhecido Princípio de Ana Karênina, popularizado por Jared Diamond.

O princípio refere-se às dificuldades encontradas pelos domesticadores de animais e plantas, nos primórdios da Revolução Agrícola. Escreveu Tolstói em seu romance, todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz, é infeliz a seu modo. Fazendo uma analogia, Jared Diamond lembra que todas as espécies domesticáveis se parecem, posto que compartilham um conjunto mínimo de características em comum, mas cada espécie indomesticável apresenta uma não-conformidade distinta: o animal pode ter um temperamento indócil, não se reproduzir em cativeiro, ser difícil de alimentar, ser territorialista e não tolerar viver em confinamento. Nesse quesito, o desfavor do continente americano em comparação aos outros continentes é evidente. Aqui se domesticou a mandioca e o pato-bravo. A gravura de Debret que ilustra a capa do livro mostra o que parece ser um cachorro-vinagre, espécie da fauna brasileira, mas além disso muito pouco foi domesticado pelos nativos brasileiros. Mesmo na América andina, muito mais evoluída, poucas espécies foram domesticadas. Além do milho e da batata, de animais apenas a lhama, a alpaca e o porquinho-da-índia foram domesticados. Faltaram sobretudo grandes mamíferos, que além de fonte de alimento pudessem servir como animais de carga. Por aí não se admira que os maias, tão evoluídos, não conhecessem a roda (ou melhor, conheciam-na, mas só a utilizavam em brinquedos).

Por que tanto desfavor? O autor lembra que até Darwin, quando passou por aqui, espantou-se da pobreza do continente em termos de animais de grande porte, em comparação com a África equatorial, que tem um panorama físico semelhante. O naturalista, que na ocasião coletava fósseis, também admirou-se da variedade e do porte dos mamíferos que aqui viveram até o fim da última Era Glacial, com tatus do tamanho de um boi e preguiças do tamanho de um elefante.

Por que todos desapareceram? Houve extinção em massa também no norte, desapareceram mastodontes e rinocerontes da Europa, mas para a felicidade nossa sobraram os ancestrais dos atuais bois e cavalos. Aqui nem os cavalos sobraram, embora a espécie, ironicamente, tenha se originado da América. Não há ainda uma explicação, mas sabe-se que os primitivos habitantes do continente tiveram pouco papel nessa extinção, pois quando chegaram aqui há dez ou quinze mil anos atrás, a mega-fauna já estava quase toda extinta (diferente da Austrália, povoada desde 40 mil anos atrás, onde os nativos tiveram um papel importante ao exterminar a mega-fauna local).

O autor aventa outra hipótese para explicar a desaparição das grandes aldeias do Brasil central: o que chamou de um telefone-sem-fio das doenças transmissíveis. É bem conhecido o efeito das doenças trazidas pelo colonizador sobre os nativos que tiveram contato com eles, produzindo epidemias que dizimaram aldeias inteiras. Mas esse contágio pode ter acontecido também longe das vistas dos colonos, pois os índios possuíam estradas e rotas comerciais por onde circulavam os infectados. Então, quando os bandeirantes chegaram ao país central, já encontraram as grandes aldeias exterminadas. É uma hipótese, mas não se pode provar nem que sim nem que não. Mas o autor também citou evidências arqueológicas de que o povoamento da Ilha de Marajó (uma das áreas mais evoluídas da região amazônica, célebre por sua cerâmica) apresentou vários períodos de crescimento e declínio, e isso antes de 1500 e da chegada dos colonos e suas doenças infecciosas. Penso eu, é provável que as instabilidades e incertezas próprias do limiar da Revolução Agrícola tenham sido as responsáveis pelo declínio das aldeias que um dia foram cidades. Numerosos exemplos de cidades inteiras encontradas por arqueólogos engolidas pela selva são o testemunho de que povos que um dia foram evoluídos, regrediram a um estágio anterior quando alterações no ambiente inviabilizaram o sustento de tais civilizações urbanas.

O livro de Reinaldo Lopes é bem-vindo para substituir crenças equivocadas por evidência científica.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O Fenômeno Bolsonaro

Podemos não simpatizar com determinadas figuras da política, mas chega um ponto que não podemos mais ignorá-las. É o caso de Jair Bolsonaro. Até pouco tempo mais um ítem do panteão folclórico, comparado ao já falecido Enéas Carneiro, agora o candidato com segunda maior intenção de votos. Devemos então encarar seriamente a possibilidade dele ser nosso novo presidente, e analisar possíveis consequências.

É nesse momento que devemos recorrer à História para explicar o presente. Se observarmos bem, é recorrente na nossa política o fenômeno de personagens surgidos do nada com um discurso bombástico, tendo uma carreira meteórica e chegando à presidência bem jovens, só para logo em seguida desaparecerem tão rapidamente quanto surgiram. O exemplo mais emblemático é o de Jânio Quadros. Depois veio Collor de Mello, esse parecendo mais uma caricatura do primeiro. E agora Bolsonaro.

De comum, todos os três brandiram um discurso moralista que em outras circunstâncias seria considerado lugar-comum, mas que na ocasião causou considerável impacto e empolgou muita gente. São por isso considerados protagonistas de uma espécie de "populismo de direita", definição algo preconceituosa porque supõe que o populismo seria exclusivo da esquerda, o que não é verdade. Mas o sucesso que tiveram deixa claro que preencheram um vácuo, atendendo às expectativas de multidões que naquele momento não tinham quem expressasse suas ideias. O rápido desgaste e a queda em seguida também deixa claro que apesar de todas as esperanças que despertaram, seus projetos não eram exequíveis e eles próprios não tinham o mínimo jeito para a coisa, não passavam de corpos estranhos que foram expelidos pelo organismo.

Jair Bolsonaro terá trajetória semelhante? Por enquanto, tudo o que ouvimos dele são frases de efeito, insultos e provocações contra grupos minoritários também barulhentos. Isso chama bastante a atenção, mas não se materializa em um projeto político. Assustou-me sobretudo haver ele declarado em uma entrevista que não entende de economia. O que fará ele se for presidente? É um declarado apologista do regime militar de 1964, mas o modelo econômico nacional-estatista praticado por este regime já está desde muito esgotado, e ironicamente foi encampado pela esquerda petista que Bolsonaro combate.

Todo populista quando chega ao poder encontra-se diante de uma realidade cabal: vai ter que governar. Os discursos que faziam sucesso nos palanques não funcionam nos gabinetes. Penso que haverá duas possibilidades: a primeira, Bolsonaro se tornará uma caricatura de Donald Trump, de tanto em tanto soltando bravatas, e só. Sem uma liderança eficaz, a economia e a política logo se degradarão, ele perderá apoio e será expelido tal como seus antecessores. Na segunda hipótese, ele abandonará o discurso extremista, fará coligações e se tornará uma figura de proa, deixando a tarefa de governar para os outros, já que ele não entende de economia e ao que parece também não tem paciência para a política.

Mas isso só saberemos em 2018.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A Culpa é das Elites

Nas pretensas análises sobre o quadro social e político brasileiro, umas das palavras mais repetidas é "a elite", geralmente sendo depreciada e responsabilizada por todas as mazelas nacionais. O termo pertence àquela classe de palavras que, de tão repetidas, ganham vida própria: desligadas de seu contexto original, dispensam uma definição e são passadas adiante sem exame, até que um dia alguém se lembra de perguntar qual é, afinal, o seu significado, e cada um dá uma versão diferente.

Recentemente deparei-me com um artigo que me chamou a atenção. Intitulava-se "A Elite Brasileira Existe?" Embora pareça uma injunção ociosa, o autor gastou bastante teclado para responde-la, o que deixa claro que a questão despertava-lhe algum incômodo. Perdi o link para a página, mas o artigo dizia mais ou menos assim: a elite brasileira não possui o mesmo orgulho patriótico e o senso de responsabilidade das elites dos outros países. O autor conclui que isso se deve à elite brasileira ser uma elite somente de dinheiro, enquanto as outras elites demonstram brilhantismo em áreas diversas.

Conforme eu já comentei aqui mais de uma vez, no imaginário dos usuais detratores da elite nacional, o que chamam de elite nada mais é do que aquilo que os psicólogos chamam um totem, uma entidade sobrenatural que encarna determinados atributos. Todos sabem como a elite é, mas ninguém sabe dizer exatamente o que a elite é, exceto que seus integrantes são sempre os outros. A pergunta A Elite Brasileira Existe? revela o desconforto do autor com a imaterialidade deste conceito. É mesmo um ato falho, pelo qual o autor reconhece que a elite que ele tanto denigre, na verdade não existe. Um totem, como toda entidade sobrenatural, pode estar em toda parte, mas ao mesmo tempo não está em lugar nenhum, já que é incorpóreo.

É nessas horas que se deve voltar ao significado original das palavras. Elite, nos dicionários, significa o conjunto daqueles indivíduos que mais se destacam em uma área específica. Portanto, não se pode falar de elite como uma categoria pré-definida: há de fato várias elites, desde a elite dos melhores jogadores de futebol que são convocados para a seleção, até a elite dos melhores estudantes que passam para as universidades. E é claro, existe também a elite do dinheiro. Mas o autor lança uma falsa dicotomia ao opor a elite brasileira, que seria apenas de dinheiro, contra a elite dos outros países, que supostamente não seriam do dinheiro. É sabido, porém, que o talento costuma ser bem remunerado, de modo que todo aquele que se destaca em uma determinada área, quase sempre integra também uma elite do dinheiro. É um fenômeno que, em estatística, se chama um atrator. Portanto, ser membro de uma elite do dinheiro não é fator distintivo para a elite nacional nem para a elite de qualquer outro país, é apenas uma coisa normal.

Tampouco faz sentido que exista no Brasil uma elite má coexistindo com um povo bom. Por definição, a elite é sempre acima da média. Uma elite ruim nada mais é do que o sintoma de uma média pior ainda. De fato, lendo o discurso de ódio malhando as elites que ninguém sabe dizer exatamente quem são, fico com a impressão de que o sentimento da maioria dos comentaristas é apenas inveja e despeito.

A culpa é das elites? Ou a culpa é das estrelas? O conceito de culpa embute um julgamento. Mas de quem é a culpa do céu ser azul e do fogo ser amarelo?

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

O Brasil antes do Brasil

Estou lendo um livro bem interessante, 1499 - O Brasil Antes de Cabral, de Reinaldo José Lopes, que dá uma visão dos povos indígenas pré-cabralinos bem mais ampla do que as informações que tínhamos até agora. Mas prefiro chama-lo de O Brasil Antes do Brasil, pois o país, assim conceituado como construção política, diplomática e cultural, passou a existir em 1500 após a chegada dos colonos. Até 1499 o que havia aqui não era o Brasil, mas a região geográfica habitada por povos distintos que não obedeciam a um mesmo governo nem tinham territórios delimitados por fronteiras.

Esses povos, contudo, eram bem mais antigos, numerosos e evoluídos que a imagem veiculada pelos livros de História até agora. Começando por Luzia, nome dado ao esqueleto mais antigo encontrado no país e datado de 12 mil A.C., o autor traça um painel surpreendente: populações sedentárias habitando aldeias do tamanho de cidades modernas, com elementos de urbanismo tais como ruas, praças e amuradas, ligadas por largas estradas e praticando uma agricultura diversificada com várias espécies nativas domesticadas, e inclusive usando fertilizantes naturais - a misteriosa terra preta dos índios. Essas tribos evoluídas ocupavam o centro do território brasileiro em um formato de cruz, da Ilha de Marajó ao sul de Mato Grosso, e do Amazonas ao Piauí.

É sabido que os primeiros exploradores do Amazonas fizeram relatos algo fantasiosos das tribos que encontraram, falando de grandes aldeias mas também de mulheres guerreiras que emprestaram seu nome ao rio, e que nunca mais foram avistadas de novo. Acredita-se que seriam guerreiros de cabelo comprido tomados por mulheres. Mas o fato é que, quando a região foi criteriosamente explorada em épocas mais recentes, nem as mulheres guerreiras nem as portentosas aldeias foram encontradas - elas tiveram que esperar o trabalho de arqueólogos do século 20 para virem à luz.

O trabalho do autor é importante para superar a conceituação simplória que se fazia dos índios brasileiros até agora. Mas fica a pergunta no ar: se eles eram assim tão evoluídos até meros 500 anos atrás, porque desapareceram antes de qualquer contato significativo com o colonizador?

Essa pergunta o autor promete responder nos capítulos finais do livro, que lerei em breve. Mas até lá posso fazer alguma especulações. A impressão que eu tenho é que o estágio da Revolução Agrícola, a passagem de povos caçadores-coletores para povos agricultores, é um processo bem mais complicado e demorado do que parece. Isso porque é uma aposta sem volta: a criação de roçados e pastagens requer a destruição do ambiente natural onde se praticava a caça e a coleta. Trata-se de uma decisão sábia, contanto que dê certo.

Quando funciona, é bem sabido o que acontece: basta o trabalho de uma parcela da população para produzir alimentos para toda a comunidade. Desobrigadas de passar os dias percorrendo florestas à cata de frutas e caça, as pessoas passam a dispor de um enorme tempo vago que utilizam para fazer descobertas que darão origem a setores especializados: surgem os artesãos, os tecelões, os oleiros, os pedreiros, os ferreiros, os curandeiros, os guerreiros. A população cresce e já não pode deslocar-se, tem que ficar próximo de estão as plantações e as criações: surgem as cidades. A sociedade torna-se complexa e desigual, é o que chamamos, latu sensu, de civilização.

Mas e se não der certo? A domesticação da natureza, feita por povos que não possuem qualquer noção do que estão fazendo, pode redundar em vários tipos de catástrofe ecológica. O planeta está repleto de ruínas de templos, pirâmides e imensas cidades de pedra perdidas na floresta, testemunho de civilizações que foram arrojadas, mas que por algum motivo não puderam mais manter aquele modo de vida, tiveram que abandonar suas cidades e retornar a um estágio evolutivo anterior - os maias da América Central são um exemplo. Mas também há exemplos de povos que permaneceram por um tempo indefinido no limiar da revolução agrícola, nem lá nem cá, como os nativos norte-americanos, que tinham plantações de milho mas não podiam ficar o ano inteiro cuidando delas, pois tinham que migrar atrás dos bisões, que eram bem mais importantes para seu modo de vida.

É possível que coisa semelhante tenha ocorrido com as antigas tribos evoluídas daqui. Importante lembrar que a revolução agrícola aumenta a oferta de alimentos em quantidade, mas diminui em diversidade, posto que nem todas as espécies podem ser domesticadas - várias fontes de alimento que até eram relativamente abundantes na natureza têm que ser descartadas. Basicamente, a revolução agrícola só vinga quando há um cereal básico para suprir as necessidades energéticas da população, mais um conjunto mínimo de outros nutrientes para manter a saúde. No Oriente Médio e depois na Europa, esse cereal básico foi o trigo; na Ásia foi o arroz, e na América Central foi o milho. Os demais nutrientes são hortifrútis até hoje encontrados nas feiras livres, mas nenhum deles nativo do Brasil. Qual seria a alimentação básica de nossos índios agricultores?

Aguardo a leitura dos capítulos finais.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

O Populismo, Ontem e Hoje

Um termo que é sempre atual no Brasil, e de fato, em toda a América Latina, é o populismo. Seja qual for a época, este epíteto sempre gruda em determinadas personagens ou facções, e tornou-se tão usual a ponto de ser reconhecido como patrimônio cultural de nossa política, mesmo que tenha inequívoca conotação pejorativa. A onda de governos de esquerda iniciada com a ascensão de Hugo Chavez na Venezuela em 1998 foi chamada de neo-populismo, mas será que o novo populismo é igual ao antigo? A dificuldade em responder a esta pergunta deve-se a esse termo pertencer àquela categoria das palavras cujo sentido muda com o tempo e se enquadra no contexto de cada época e no posicionamento ideológico do interlocutor. A conceituação correta só pode ser obtida por quem se disponha a voltar às origens e acompanhar a evolução do próprio conceito.

Atualmente, "populismo" denota um estilo peculiar de fazer política, no qual um líder carismático se dirige pessoalmente às massas sem a intermediação de instituições, prometendo levá-las ao poder e livrá-las de uma situação de desfavorecimento e opressão. É particularmente associado aos ambientes urbanos e aos operários. No entanto, esse líder é frequentemente apontado como um enganador, e o termo assume uma conotação de demagogia e caudilhismo. Deve ser lembrado que o populismo não possui engajamento ideológico, já que trata-se de um estilo e não de uma corrente política, havendo tanto o populismo de esquerda, mais comum, quanto o de direita. Historicamente o populismo tem sido olhado com desconfiança por tanto por um quanto o outro, taxado de conciliação de classes pelos esquerdistas e de engodo pelos direitistas. Mas não era assim quando o termo foi usado pela primeira vez, no século dezenove.

Os narodniks, ou populistas russos, surgiram entre as décadas de 1860 e 1870. Eram intelectuais militantes, membros das classes médias que cultivavam uma utopia de retorno à vida no campo para ali arregimentar prosélitos e derrubar o governo czarista. Não obtiveram sucesso, pois não houve empatia entre eles e os verdadeiros camponeses, e seriam posteriormente desprezados pelos comunistas como burgueses sonhadores, mas em sua época lançaram conceitos que foram encampados pelos comunistas e alguns perduram até hoje, como a noção de democracia direta e a criação de comunas rurais.

Ainda no final do século dezenove, a designação "populista" seria apropriada pelo People´s Party nos EUA, o qual, inicialmente agregando fazendeiros descontentes, mas depois aproximando-se do movimento trabalhista com forte discurso anti-capitalista, viria a dar a feição urbana e operária que marcaria o populismo a partir do século vinte. Foi com essa feição que o populismo entrou na política latino-americana a partir dos anos trinta, impulsionado pela tríade urbanização, industrialização e necessidade de romper com o patronato rural até então dominante. Desde então o populismo tem sido um fenômeno latino-americano por excelência.

Coisa tão recorrente em nossa História, por certo que devemos conhecê-lo bem e, certo ou errado, aceitá-lo como parte de nossos costumes políticos e objeto das aspirações do povo. Mas o populismo não teve sempre o mesmo significado em todas as épocas. Geralmente de conotação pejorativa, termo usado para desqualificar o adversário nos debates, houve um tempo em que o populismo foi considerado uma etapa necessária para fazer o país saltar do passado ao presente. Esta época áurea ocorreu em meados do século 20, a partir dos anos 30, tempo de intensa urbanização e industrialização nos países latino-americanos, o que enfraqueceu as elites tradicionais e colocou em cena novos atores políticos e econômicos, em especial o nascente proletariado urbano. Foi o tempo em que surgiram os "bons" líderes populistas, que são até hoje os ícones desta corrente: Perón na Argentina, Vargas no Brasil, Lázaro Cárdenas no México, Velasco Ibarra no Equador entre outros. Cada um com suas características próprias, mas tendo em comum o distanciamento das elites agrárias tradicionais, com o fortalecimento de sua autoridade pessoal; a aproximação ao proletariado, com a criação de benefícios e de uma legislação trabalhista; o crescimento da máquina do Estado, cooptando a burguesia nacional; o dirigismo, o nacionalismo, a criação de empresas estatais e a restrição ao capital estrangeiro.

Na época, os que se opunham a esses líderes eram em geral os setores mais reacionários, remanescentes das antigas oligarquias agrárias. Os socialistas viam-nos com suspeita, em razão de sua origem burguesa e de sua postura paternalista que não dava espaço às lideranças operárias genuínas, mas reconheciam que bem ou mal, era um modo de tornar os trabalhadores partícipes da política, algo que nunca havia acontecido até então. Parecia uma coisa boa, ou pelo menos necessária à etapa histórica que o país vivia. Contudo, as ligações desses líderes nacionalistas com setores de esquerda radical tornou-os alvos da desconfiança dos conservadores e dos próprios esquerdistas, que temiam ser cooptados, e a crise resultante levou a alguns desenlaces violentos, com a implantação de ditaduras. A época áurea do populismo foi também uma época de instabilidade e violência.

Ao final do século vinte, com a crise da dívida e a explosão inflacionária na maior parte da América Latina, o modus operanti do populismo parecia uma etapa superada. Uma nova geração de políticos pragmáticos deu início à abertura da economia e ao desmonte do Estado protecionista que se tornara excessivamente oneroso. No Brasil, Fernando Henrique Cardoso com seu Plano Real foi o representante máximo desta corrente, e chegou mesmo a declarar seu projeto de "superar a Era Vargas". Estas palavras, contudo, foram muito mal recebidas e consideradas bravata, mostrando o quanto o populismo varguista ainda estava enraizado no imaginário popular. Apesar dos êxitos obtidos na economia, a nova geração de pragmáticos recuou em seus propósitos, temendo o rótulo de neoliberal, e acabou dando um novo alento ao populismo, paradoxalmente reforçado pela estabilização econômica que eles próprios haviam promovido, mas também impulsionado por uma conjuntura favorável na primeira década do século 21, em particular a alta do preço do petróleo e outras commodities.

O ícone máximo do período foi Hugo Chávez na Venezuela. Na Bolívia Evo Morales, na Argentina o casal Kirshner, no Brasil Lula. Durante algum tempo pôde-se discutir se seria um fenômeno novo ou apenas a reedição do velho populismo latino-americano, mas a curta duração do ciclo, abatido em cheio pela crise do final da década, comprovou a segunda hipótese e deixou claro que o populismo está definitivamente superado e não funciona mais no mundo globalizado do século 21. O populismo ainda viceja em outras partes do mundo, até nos EUA com a eleição de Trump, mas na América Latina é duvidoso que venha renascer ainda outra vez. O desencanto da população parece definitivo. Em sua última aparição, mostrou traços caricatos que sinalizam de maneira inequívoca sua decadência - é a história repetindo-se como farsa. De fato, a carreira do líder populista da atualidade, seja ele de esquerda ou de direita, ou ainda um religioso, assemelha-se cada vez mais à carreira de um animador de programa de auditório, ou de um pastor televisivo. Hugo Chávez, seu representante máximo, não contente em parecer um animador de programa de auditório, criou para si próprio um programa de TV.

Entretanto, não há ainda sinal algum do que virá suceder o populismo.

sábado, 12 de agosto de 2017

A História só vai recomeçar em 2018

Tenho a sensação de que a História parou, e este hiato só vai ter fim em 2018 com a eleição do novo presidente. Com os últimos acontecimentos, não resta dúvida: o país está sem governo, sem projetos, sem perspectivas, um imenso vazio de poder. Michel Temer, que nunca deixou de ser um interino, pode ter escapado por hora, mas tornou-se refém dos congressistas que lhe salvaram o pescoço. É o presidente mais inexpressivo que este país já teve: se um dia sonhou em ser um Itamar, nem um Sarney conseguiu ser...

Com este quadro, é perda de tempo falar do presente, pois a História só vai recomeçar em 2018, com o novo presidente, seja ele qual for. E está se desenhando no horizonte uma volta do PT ao poder, com Lula ou sem Lula, mas de preferência com Lula, o candidato com maior intenção de votos até agora. Mas se o PT vencer, será praticamente uma vitória por WO. Tomo emprestado o termo do futebol, que dá a vitória a uma equipe se o adversário não comparece. Isso em razão da total ausência de qualquer outra opção minimamente atrativa de qualquer outro partido.

Se o PT vencer em 2018, será graças à omissão de seus adversários, e não por haver superado os erros que o levaram a ser tirado do poder em 2016. De fato, nos anos em que o PT esteve no governo, à exceção de tipos como Bolsonaro, ninguém se arriscou a emitir um discurso abertamente anti-petista ou apresentar um projeto diametralmente oposto ao do PT, julgando que esta seria a fórmula certa de perder a eleição. O PMDB desde os anos 90 desistiu de ter candidato próprio e preferiu as composições que lhe garantissem cargos, e apenas cargos. O PSDB, o único rival à altura do PT, ao invés de bater de frente, renegou seu passado e procurou desvencilhar-se da sombra de FHC. É claro que ninguém acreditou nesse mea culpa fajuto, nem ninguém vai querer a cópia se pode ter o original. Agora é tarde para o PSDB criar um candidato que tenha um perfil minimamente alternativo ao projeto petista. Pode apenas relançar os candidatos que já foram derrotados antes e serão derrotados de novo.

Mas o PT tampouco fez um mea culpa que não fosse fajuto. E mais ainda, essa guinada inesperada que o reconduza ao poder pode dar vazão a um clima de euforia e desforra, que vai reforçar a disposição de repetir os mesmos erros que foram cometidos desde o primeiro mandato de Dilma. Militantes imaginosos vão enxergar em um Lula envelhecido e desgastado, um Lula renascido e vingador, que vai finalmente levar a cabo os projetos sonhados desde os velhos tempos, aquele besteirol ideológico que o próprio Lula descartou no lixo em 2002. Aí periga a história se repetir: depois da euforia inicial, a crise se instala, não haverá mais dinheiro para projetos sociais, a popularidade do governo cai e a oposição se enche de moral. E a população, decepcionada e julgando-se mais uma vez traída, pode correr para os braços dos radicais de direita. O PT pode ter uma segunda chance, mas terceira chance é querer demais.

É preciso entender que o hipotético Lula de 2018 não será o mesmo Lula de 2002. Mesmo supondo que a frágil recuperação da economia obtida esse ano persista até o ano que vem, não será o mesmo cenário do primeiro mandato de Lula. Tampouco ele terá a mesma base de apoio que tinha naquela época. Restará a Lula fazer um governo pragmático, se quiser preservar sua biografia.

sábado, 29 de julho de 2017

A História se repete?

Nesse momento de compasso de espera, onde a História parece haver travado, fica a sensação de que estamos presos a um ciclo que se repete. Nos cometários, abundam comparações com episódios ocorridos no passado seguidos da observação: viram? Está acontecendo de novo igualzinho! Anda muito em voga comparar o momento atual com o ano de 1961, quando, conforme é sabido, foi instituído o parlamentarismo para tirar os poderes do recém-empossado João Goulart. Teria sido um "golpe parlamentar" análogo ao que ocorreu em 2016 com o impedimento de Dilma Rousseff. Outros analistas estendem a comparação até o ano de 1954, quando a fórmula para impedir Getúlio Vargas de governar foi levá-lo ao suicídio.

Esta injunção merece análise. Eu acho que a História se repete, sim. Mas não com o mesmo significado. A dinâmica dos fatos pode ser análoga, mas o contexto não. É então que se aplica o conhecido aforismo, a História se passa duas vezes, primeiro como tragédia, depois como farsa. O contexto histórico de agora não é igual ao de 1961. Naquele ano vivia-se o auge da guerra fria, a URSS era superpotência e a revolução cubana estava logo ali. A possibilidade de uma revolução violenta e de guerra civil por aqui não era uma fantasia, era algo palpável e temido pela população. Penso que a única semelhança concreta entre os eventos atuais e os de 1961 é a presença de oportunistas desejosos de tomar o poder, o que não é extraordinária, posto que esses oportunistas existem sempre e em todo o lugar. O ex-presidente Juscelino Kubitschek foi vítima deles, que tentaram impedir sua posse, mas também ele próprio foi um deles, pois deu apoio à derrubada de Goulart achando que assim teria campo livre para chegar à presidência em 1965. Mas a diferença mais crucial, além do clima político da guerra fria, foi o papel das forças armadas, que naquele tempo tinham ficha limpa, já que nunca antes haviam governado o país, e estavam aptas a se tornarem atores políticos. Muitos achavam que o governo militar, devotado ao país e não a partidos ou ideologias, seria ideal para livrar o país da corrupção e da irresponsabilidade dos políticos, levando-o ao desenvolvimento e à paz social.

No momento atual não há ator político para semelhante papel. O que se vê é um grande vazio onde brotam os oportunistas de sempre, aqui e ali algum arrivista radical, como o deputado Jair Bolsonaro, uma caricatura dos militares de 1964, ou o próprio Lula, que à falta de outra opção surge como o candidato com maior intenção de votos. O PT foi retirada do poder, mas simplesmente não se encontrou nada para substituí-lo, talvez porque de anos para cá todos os partidos tenham se dedicado a repetir o discurso petista. A direita brasileira foi liquidada pelos militares, que queriam governar sozinhos, então cassaram os líderes direitistas mais proeminentes e submeteram os restantes à liderança de políticos provincianos na vala comum da antiga ARENA. Não há mais uma direita assumida e intelectualmente relevante no país.

Mas tampouco existe a polarização que existia em 1961. A ojeriza que a direita tem hoje por Lula não pode ser comparada à ojeriza que a direita tinha em 1961 por Jango. Basta lembrar a vasta composição da base aliada dos governos petistas, integrada inclusive por Temer. No contexto de 1961 seria absurdo pensar em arranjo similar, com a UDN compondo-se com o PTB e o PCB. Lula já foi há muito metabolizado pelo organismo político brasileiro. A meu ver, o que esse organismo não consegue digerir não é o Lula ou Dilma, mas sim o PT, que é atualmente o único partido rigidamente organizado e disciplinado em um país onde os políticos agem para si e não para seu partido. Houve um genuíno temor de que a máquina petista enquadrasse a base aliada tal como enquadra seus próprios integrantes, e quando viram a enormidade de dinheiro desviada para a caixa do PT, enriquecendo-o e fortalecendo-o, aí eles se voltaram contra a corrupção...

O que vem em 2018 é uma loteria, pois de onde não há nada, tudo pode surgir. Lula pode até ser eleito, mas é tolice achar que um novo governo seu realizará todos os projetos revolucionários sonhados pela esquerda desde os anos 30. Se Jango não era Vargas, Lula não é Jango nem Vargas, Lula é Lula mesmo. Ele pode até fazer um bom governo, mas não poderá descartar as forças políticas conservadoras do país. Se em 2003, com uma base muito maior, ele não pôde descartá-las, muito menos agora, que sua base é bem menor.

Esperemos 2018 sem exagerar nas comparações com o passado. A História se repete, sim. Mas não com o mesmo significado.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Saudades de Médici

Nesse momento de grande desalento com a política, um fenômeno cada vez mais chama a minha atenção: o revisionismo em relação ao regime de 1964. E não são apenas os radicais de direita que têm levantado essa bandeira: também os esquerdistas têm resgatado supostas virtudes dos militares, como seu nacionalismo e seu projeto de construção de um país soberano. "Os militares odiavam os comunistas e amavam o país", escreveu certo comentarista. Esta postura particularmente me surpreende, pois sempre foi discurso padrão das esquerdas apontar os militares como entreguistas e subservientes às potências estrangeiras. Mas não é de hoje que as semelhanças entre o projeto nacional-estatista dos militares e o nacionalismo varguista têm sido apontadas - estas ficaram evidentes desde a época de Geisel, muito embora apontar isso fosse uma heresia e quem o fizesse arriscava-se a ser taxado de louco.

Sabemos que o saudosismo e a idealização dos tempos antigos é um sintoma comum do desencanto com a situação do presente, mas isso se torna perigoso quando radicais arrivistas podem se aproveitar da situação para chegar ao poder na esteira dessas fantasias. Temos muitos casos ao redor, com desastrosas consequências. O melhor remédio contra isso é separar a realidade do mito: o que foi, afinal, o período em que os militares estiveram no comando na nação? Em primeiro lugar é forçoso reconhecer que a ação dos militares não se limitava à repressão e ao combate à subversão: eles tinham efetivamente um projeto de país de longo prazo, e esse projeto se enquadrava nos moldes do nacional-estatismo lançado nos anos trinta. Iniciado por Vargas e continuado por Kubitchek, foram de fato os militares que levaram este modelo ao apogeu nos anos setenta e ao esgotamento nos anos oitenta, quando não por coincidência também se esgotou o regime de 1964.

Sob o enfoque econômico, portanto, não é difícil conceituar o que foi o regime militar brasileiro. Bem mais complicado é conceituá-lo do ponto de vista político. Eles se diziam democratas, mas pela forma como agiam evidentemente não eram democratas. Mas tampouco eram fascistas. Não havia culto à personalidade, nem organizações de massa, nem partido único, nem rituais exotéricos, nem desfiles embandeirados; os generais-presidentes alternavam-se monotonamente no poder sob um formato republicano fake; os atos discricionários eram catalogados com pudor bacharelesco: houve mais de vinte atos institucionais, embora os mais lembrados sejam o AI-1, o AI-2 e obviamente o AI-5. O regime se eternizava mas não se estabelecia, era mais como um estado-de-sítio prolongado, sem data para terminar mas sempre permeado por discursos que afirmavam ser a situação transitória, que o verdadeiro objetivo do regime era a democracia e que esta logo seria restabelecida. De minha parte, eu achava graça nas aulas de OSPB e Moral e Cívica, onde era enaltecida a democracia, a constituição e tudo o mais que era o exato oposto daquilo que o governo praticava.

Chama a atenção o pudor dos próceres do regime em se assumirem como ditadores. Eles queriam a ditadura, sem dúvida, mas tinham consciência de que ela era moralmente injustificável. É necessário um trabalho de psicólogo para desvendar esse paradoxo. A meu ver ele pode ser explicado pela formação positivista que marcou profundamente os militares brasileiros desde os fins do século 19, com sua descrença pela política parlamentar e sua convicção de que o bom governo deveria ser forte e racional - a "ditadura científica" propugnada pelos teóricos de Comte que os militares de 1964, consciente ou inconscientemente, não importa, tentaram realizar na prática pela instituição de um governo totalitário e tecnocrático. Foi a era dos "superministros", como Delfim e Simonsen, cuja liderança ultrapassava em muito o escopo original de suas pastas, preenchendo o vácuo deixado pela classe política que se retirou de cena. Certo ou errado, os militares acreditavam que esse modelo podia levar o país ao desenvolvimento, e uma vez alcançado esse objetivo, poderiam retornar à democracia e tirar o peso da consciência. Não notavam que esta lógica era autocontraditória: se a ditadura levava efetivamente o país ao desenvolvimento, então a ditadura era uma coisa boa e por que acabar com ela? Se a ditadura não conduzia o país ao desenvolvimento, então o objetivo não seria alcançado e de qualquer modo a ditadura ia durar indefinidamente.

Preso em suas contradições, o modelo esgotou-se nos anos oitenta, e os militares retiraram-se do poder sem deixar herdeiros políticos. Decorridos trinta anos, é tempo suficiente para que a memória seletiva filtre as coisas ruins do passado e a época possa ser idealizada pelas novas gerações descrentes do presente. Novos líderes, que não participaram efetivamente do regime, proclamam-se seus herdeiros. Algumas coisas boas existiram de fato. Havia muito mais otimismo para com o futuro, a economia crescia a altas taxas e havia mais empregos. Havia também menos crime nas ruas. Todos esses aspectos, entretanto, só podem ser entendidos plenamente se vistos sob uma perspectiva histórica, e não apenas à luz da época. Havia mais crescimento econômico e mais empregos, efetivamente. Mas tal como no tempo de Vargas e JK, o modelo econômico era baseado na hipoteca do futuro, ou como se diz, em vender o jantar para comprar o almoço. Isto era feito pelo endividamento externo, ou pelo endividamento interno via emissão de moeda. Ambos geram uma conta a ser paga pelas gerações futuras. E o futuro chegou.

Os impressionantes índices de crescimento econômico escondiam um desastre financeiro, que ficou evidente na chegada dos anos oitenta. Produzindo inflação, o governo cobria seus gastos mediante o confisco do poder aquisitivo dos cidadãos, como se fosse um imposto invisível que não precisava de aprovação do parlamento. Desde Vargas, passando por JK até Médici, foi desta maneira realizado um crescimento com pouca inserção social, já que os ganhos obtidos pelos trabalhadores com a abundância de empregos eram logo anulados pelo surto inflacionário que vinha em seguida. O país se tornou um dos mais desiguais do planeta, posição que mantem até hoje.

Outros saudosistas lembram que no tempo dos militares havia muito menos crime do que hoje. É verdade. Mas também é verdade que o crime vinha em ascenção no período, algo que não foi de todo notado porque as atenções estavam voltadas para a arena política. A segurança pública não era considerada questão de segurança nacional, e foi deixada a cargo das polícias militares estaduais. É certo que as polícias militares foram formalmente colocadas sob a supervisão do exército, mas esse arranjo tinha em mente utilizar as polícias militares como força de apoio no combate à guerrilha, e não utilizar o exército como força de apoio no combate ao crime comum. A segurança pública foi negligenciada e praticada com aquele misto de truculência e incompetência característico dos regimes autoritários, e deu no que deu.

Outro aspecto lembrado do período foi que havia menos corrupção, um dado embaraçoso para os que acham que apenas as ditaduras são corruptas. Mas a explicação é prosaica: não havia campanhas eleitorais custosas na época. Simples assim.

Pode-se ainda passar um bom tempo discutindo prós e contras da época, mas quanto a mim, tenho uma opinião definitiva: o regime de 1964 não pode ser imitado hoje porque lhe faltou uma identidade tangível que possa ser captada e emulada. Não havia textos escritos, ritos, símbolos, pais fundadores, séquito de devotos, milícias, clubes, mesmo seu partido de sustentação o era apenas pro forma. Foi uma ditadura não assumida, ou como definiu Elio Gaspari, uma ditadura envergonhada, que proclamava seu caráter provisório e prometia sair de cena tão logo cumprisse sua missão de levar o país ao desenvolvimento. Um regime sem rosto que hoje pode ser imaginado como se queira.

Espero que não usemos muita imaginação na próxima eleição.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A História acontecendo: a cracolândia

Um fenômeno raro que eu gosto e assistir quando tenho oportunidade são os fatos se interpondo às teses. Isso é ver a História acontecendo em tempo real.

Semana passada houve uma ação na conhecida cracolândia, reduto de consumidores de crack em São Paulo, por iniciativa do prefeito Dória, considerada truculenta e que motivou numerosas críticas. O médico Dráuzio Varella comentou na Folha de São Paulo:

Todo o mundo tem que se convencer que não é possível acabar com a cracolândia. A cracolândia não é causa de nada, é consequência de uma ordem social que deixa à margem da sociedade uma massa de meninos e meninas nas periferias nas cidades brasileiras, sem qualquer oportunidade. Pararam de estudar com 13, 14 anos e acabam indo por este caminho.


Ou seja, o indivíduo vai se drogar cracolândia porque a sociedade não lhe deu oportunidade. Tivesse tido oportunidade, estaria andando pelas ruas muito limpo e direitinho, indo para o trabalho. Será?

Outros comentaristas, como nesse artigo de Aldo Fornazieri, repetiram chavões como "nazismo", "pogrom" e "elite branca", mais uma vez dando uma leitura de luta de classes à ocorrência. Mas na mesma semana dois acontecimentos bem inusitados vieram desmentir essas assertivas. O primeiro foi o encontro, em plena cracolândia, de ninguém menos que o cidadão Andreas von Richthofen, irmão da notória Suzane von Richthofen. Rapaz rico, inteligente, com doutorado em química, foi preso totalmente drogado, transtornado e maltrapilho em meio aos viciados. Outra notícia dá conta de que um certo Carlos Eduardo Albuquerque Maranhão, ex-aluno do conceituado Colégio Santo Inácio, criado no conceituado bairro do Jardim Botânico no Rio de Janeiro, é habitante da cracolândia. O que demonstra de forma cabal que o vício nada tem a ver com a condição social Ambos tiveram todas as oportunidades cuja falta, afirma Dráuzio Varella, é a causa da existência da cracolândia. São exceções? Sim, são. Mas de modo geral, ser rico no Brasil é uma exceção, seja a amostra colhida na cracolância ou em qualquer outro lugar.

Andreas von Richthofen e Carlos Eduardo se tornaram drogados em razão de graves problema psicológicos, no primeiro, quase que certamente, decorrentes da tragédia familiar, e o segundo de causas não conhecidos, mas amigos afirmaram que ele já se drogava desde os tempos do Santo Inácio. Nada a ver com condição social. Os outros drogados pobres provavelmente tiveram um histórico semelhante, e certamente menos recursos para trata-lo. Carlos Eduardo, aliás, faleceu dias depois de haver sido internado. Estaria vivo se houvesse sido internado à força bem antes desta semana?

De qualquer modo, os críticos viram como um grande fracasso a operação montada pelo prefeito Dória. Argumenta o artigo do já citado Aldo Fornazieri:

Na ação espetaculosa do prefeito contra a Cracolândia foram presos 38 traficantes e apreendidas algumas armas. O que consta é que nenhum desses presos é um grande traficante, um chefe do tráfico em São Paulo. Ou seja, os extraordinários gestores de São Paulo estão enxugando gelo.

Mais uma vez se incorre no erro de achar que o crime é como um organismo vivo em que, se cortando a cabeça, todo o resto vem abaixo. Como se os chefes do tráfico não pudessem ser prontamente substituídos. O crime, contudo, só pode ser combatido pela base, e não pelo topo. Cracolândia por cracolândia, esquina a esquina.


domingo, 28 de maio de 2017

Releituras da História: os cangaceiros

Diante as saída do mercado editorial das boas revistas de História que eu acompanhava desde muito - a História Viva, a revista de História da Biblioteca Nacional, e agora não encontro mais a da BBC - tenho comprado a Leituras da História. De qualidade bem sofrível se comparada às anteriores, mas tenho a impressão de que está melhorando. Gostei de uma matéria sobre Lampião e o fenômeno do banditismo rural.

Endossando as condições sociais que fizeram florescer o banditismo no nordeste, contudo a matéria não deixa de atacar certos mitos duradouros que o cangaço suscitou desde então. Vejo aí um bom sinal. A admiração que o bando de Lampião despertava no populacho é bem sabida, e literalmente cantada em verso e prosa no cordel. De fato, os cangaceiros tinham um senso de honorabilidade desconhecido em bandidos comuns, característica do fenômeno denominado banditismo social. O bandido social se acomoda ao quadro social vigente e é aceito pela população, tal como descrito por Eric Hobsbawm. Mas tão antiga e folclórica quanto as façanhas de Lampião são os atos de sadismo e crueldade perpetrados por ele, ressalva que Hobsbawm não deixou de fazer, a despeito de sua evidente simpatia pelos "bandidos sociais". A matéria de Leituras da História endossou o quanto Lampião estava longe de ser um herói: seu bando oprimia humildes trabalhadores e expulsava posseiros das terras dos coronéis aliados do rei do cangaço.

Isso vai na contramão de uma narrativa que tomou corpo desde os anos 60 - a apresentação de Lampião como um rebelde em luta contra as classes dominantes. Fazia parte do espírito a época, com a intelectualidade dominada por pensadores de esquerda, ávidos para criar um herói popular à feição de um Pancho Villa tupiniquim. Não existindo em nossa história personagem similar, o cangaceiro foi reciclado para este papel. Particularmente o cineasta Glauber Rocha foi responsável pela construção do mito. Mas bem observado de uma perspectiva distanciada no tempo, vê-se que não foi um fenômeno isolado: sobretudo desde o fracasso da luta armada, que não teve o apoio dos trabalhadores, os pensadores e produtores culturais de esquerda têm procurado angariar seu novo público entre os marginais, aqueles que Marx denominava o lumpen-proletariado, e com razão considerava imprestáveis como revolucionários, por seu caráter venal. E de fato, por toda a História os burgueses sempre compraram os lumpens por poucos tostões, inclusive para joga-los contra os trabalhadores.

Mas a substituição dos trabalhadores pelos marginais como público revolucionário tornou-se uma obsessão que só agora começa a ceder. Não se pode negar que faz um certo sentido: os bandidos são aguerridos, e quando querem, são até organizados - haja visto as facções criminosas que dominam as favelas. Só tem um problema: eles são capitalistas. Diria mais, hipercapitalistas, a julgar pelo consumismo e exibicionismo típicos dessa gente, e nesse aspecto distanciam-se irremediavelmente das massas tal como são idealizadas pelos intelectuais da esquerda. Enfim, desde o tempo de Lampião, se o zé povinho admirava o bandido, a recíproca não era verdadeira.

As leituras da História servem para dissolver os mitos.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Antecipando o 13 de maio

Todo ano, ao se aproximar o 13 de maio - data em que é celebrada a abolição da escravatura - o assunto volta à baila, como um trauma não superado, ou dizendo em melhor linguagem, uma conta em aberto com o passado. Essa data já teve outros significados no último século e meio. No princípio era associada à pessoa da princesa Isabel e apresentada em tons rosados como uma redenção, uma dádiva concedida por uma princesa bondosa que teria virado em definitivo uma página de nossa História. Modernamente se procura dissociar o evento da figura edulcorada da princesa, e se enfatiza que, ao contrário do que diz a história oficial, a página não foi virada, pois os descendentes dos escravos continuam a sofrer as consequências da escravidão.

Antecipando a discussão e as mistificações de sempre, vou procurar levantar aqui o que realmente foi o período escravocrata e quais efeitos ainda se fazem sentir na época atual. Começando pelo verdadeiro papel da princesa Isabel no evento. É um assunto controverso entre os historiadores. Alguns apontam uma militância discreta mas resoluta da princesa em prol da abolição, outros afirmam que ela apenas não se opôs. Não tenho dados aqui a acrescentar, mas foi consenso entre os donos de escravos que Isabel teve um papel decisivo na queda do gabinete do Barão de Cotegipe, o último ministro escravocrata, e na subida do gabinete João Alfredo, que fez a abolição. A partir daí se verificaria uma adesão maciça dos elementos mais conservadores do império à república, que até então contava com poucos apoiadores, de modo que pode-se concluir que fosse qual fosse a motivação de Isabel, ela sofreu as consequências. Entretanto, a circunstância de haver sido ela quem assinou a lei, no lugar de seu pai, que estava doente na ocasião, serviu bem aos propósitos de quem queria revestir o episódio de tons edulcorados, como se a abolição houvesse sido uma bondade da parte do governo, e não uma decorrência de lutas e mobilização. De fato, Isabel chegou quase a ser transformada em uma santa popular por parte dos ex-escravos agradecidos, o que provocou queixas de velhos militantes da causa abolicionista, que lutaram nas ruas e sem dúvida tiveram um papel bem mais penoso do que meramente por uma assinatura em um documento.

Mas o que não fica muito claro é como foi realmente vivenciada a escravidão no país enquanto esteve vigente, e qual a real dimensão de suas consequências nos dias de hoje. A visão que temos hoje do passado escravocrata deriva mais da literatura e da TV do que dos livros. Afinal, os escravos eram brutalizados ou paternalmente bem tratados? Eram rebeldes, ou eram aquelas criaturas dóceis e devotadas a seus senhores? Existia mesmo aquele ambiente de promiscuidade entre senhores e escravos que se afirma ter sido a origem de nosso povo miscigenado?

Parentes de segunda classe, Bens valiosos, Peças

Citar casos particulares não responde à questão, pois há exemplos de todos. Mas as leituras que fiz sobre o assunto permitem-me identificar, grosso modo, três categorias de escravos daqueles tempos.
Os primeiros chamarei de parentes de segunda classe. Eram escravos domésticos de pequenos senhores, que possuiriam no máximo um ou dois cativos. Dividiam o espaço físico e compartilhavam a rotina da família, tal como parentes e agregados, mas eram obviamente parentes de segunda classe. O que não os impedia de obter certa afeição dos donos da casa e ter algum espaço de manobra para conseguir regalias, eventualmente se envolvendo em intrigas da família. De modo geral bem tratados, mas sem muito futuro, pois ainda que conseguissem a promessa de uma carta de alforria, esta raramente era concedida, paradoxalmente porque seus donos os estimavam tanto, que desejavam deixá-los como herança aos filhos. Esses escravos agregados à família deram a origem a duradouros estereótipos, como o negro infantilizado que brincava com os sinhozinhos, mas também o negro ladino fofoqueiro, nunca confiável. A persistência de tais estereótipos criou a impressão de que essa categoria de escravo era a prevalente, quando na realidade era a menos numerosa, pois ter escravos domésticos não era muito compensador. Muitos acreditam que naqueles tempos ter escravos domésticos era tão comum para as famílias da classe média quanto ter hoje empregados domésticos, mas não era bem assim. As famílias da classe média utilizavam de fato o serviço de escravos, mas esses eram em geral alugados, os "negros de ganho" costumeiramente pertencentes a alguma viúva.
 
A segunda categoria chamarei de Bens Valiosos. Eram os escravos pertencentes a pequenos e médios fazendeiros. Esses habitavam as senzalas e já não compartilhavam o espaço da família. Deles era exigido bastante trabalho e estavam sujeitos a castigos, mas seu alto valor ainda impedia que fossem maltratados em excesso. Eram, de fato, os bens mais preciosos que aqueles pequenos senhores podiam ter, e como tal eram considerados. Mas a relativa proximidade entre eles e a família, combinada com sua condição coisificada, que dispensava qualquer deferência, mesmo as devidas a parentes de segunda classe, dava margem a situações imprevistas e bastante inconvenientes, para eles sem dúvida, mas também para seus senhores. Podiam despertar desejos e preencher carências afetivas da parte dos donos da casa, mas sua posição vulnerável também os tornava alvo de ciúme, ódio, sadismo e taras. Desta categoria originaram-se numerosos relatos macabros que até hoje compõem o folclore relacionado ao tempo da escravidão. O escritor Joaquim Manuel Macedo, mais conhecido como autor de A Moreninha, publicou também um livro hoje pouco conhecido, intitulado As Vítimas Algozes, no qual relata episódios onde escravos souberam virar o jogo e passaram de vítimas a algozes de seus senhores, sempre explorando as fraquezas destes e jogando com o alto valor que eles próprios tinham como propriedade. Merece destaque o caso do escravo envenenador, que quando descoberto, era vendido e então envenenava a família de seus novos senhores, e assim sucessivamente, sem jamais ser punido - uma prática comum na época, pois se um escravo cometia crimes, seu valor caía bastante, então era comum que os senhores ocultassem o ocorrido e o vendessem ao invés de entregá-lo à polícia.

A terceira categoria chamarei, simplesmente, de peças. Eram aqueles que trabalhavam nas grandes fazendas com centenas de escravos, e constituíam o grupo dominante da população cativa, considerando-se o regime de latifúndio vigente. Tinham pouco contato com seus senhores, pois os feitores serviam como intermediários, e eram vistos como peças de produção dentro de uma lógica puramente econômica. Isso significava que deveriam render o máximo antes de serem descartados. Estavam sujeitos a um regime severo de castigos, no entanto aplicados de forma rotineira, pois em sua condição de meros objetos não despertavam sentimento algum da parte de seus senhores e feitores, nem afeição e tampouco ódio. Seu sofrimento derivava mais do trabalho exaustivo do que dos castigos. Dada a riqueza de seus senhores, seu valor contava pouco e eram vistos não apenas como peças, mas como peças descartáveis. Embora tenham formado a categoria mais numerosa, são também a menos conhecida, pois em razão de sua condição estritamente impessoal, suas histórias pessoais raramente eram veiculadas, ao contrário do que acontecia com as duas primeiras categorias.

Mas a escravidão ficou no passado, e esses estereótipos não se aplicam à população atual descendente de escravos, embora permaneçam vivos no imaginário. A discussão seguinte é o efeito que a escravidão teria deixado em nosso quadro social marcado pela desigualdade. Parece algo bastante óbvio, mas toda obviedade esconde um raciocínio indolente. Olhando para os lados, vê-se que esse quadro de pobreza e desigualdade é típico também de nossos vizinhos, inclusive daqueles que tiveram bem menos escravidão do que nós e a aboliram ainda no princípio do século 19. De fato, é típico de todo o terceiro mundo, e quero concluir que suas causas são puramente econômicas e não relacionadas à duração do período escravocrata, algo que, aliás, não pertence apenas ao nosso passado, mas em maior ou menor grau, ao passado comum da humanidade. O tema deveria ser tratado com mais isenção e menos mistificação.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Quando a História trava

Lembrando o chavão nem tão velho assim, que garantia que o Brasil é o país do futuro, chega a ser irônico fazer esta constatação: nossa História travou.

O panorama atual parece garantir que o passado passou. A Era PT teve começo, meio e fim, e não apenas ela, mas todo um modo de fazer política parece estar sendo soterrado por escândalos e investigações. Mas não se divisa o futuro. Não se vê a luz no fim do túnel. Nenhuma nova liderança, nova corrente ou novo partido surge na esquina - nem mesmo aqueles arrivistas que costumam aparecer nos momentos de crise. Um bom exemplo dessa atual incapacidade de andar para a frente é o fato de que o candidato com mais intenções de voto para 2018 é o ex-presidente Lula, apesar da convicção generalizada de que ele já cumpriu o papel que tinha a cumprir na História brasileira. Nesse cenário, foi surpreendente ler esse artigo de Demétrio Magnoli, notório desafeto do PT, clamando para que Sérgio Moro ande devagar e não impeça Lula de concorrer às próximas eleições.

Não corra, Moro: o Brasil precisa da candidatura de Lula

A esquerda que clama pela volta do ex-presidente abdicou do sistema econômico socialista, mas continua seduzida pelo monopólio do poder por um “partido dirigente”. A catástrofe venezuelana não merece uma linha de protesto dos fabricantes de manifestos. O Brasil precisa da candidatura de Lula para derrotar, no debate eleitoral, o conceito de que só merecem repúdio as ditaduras de direita

Surpreendente não pelo conteúdo, mas pela coragem de dizê-lo, pois eu próprio já compartilhava essa opinião desde muito: o país precisa da candidatura de Lula em 2018 para que a nossa História enfim destrave.

Lula converteu-se em representação de um Brasil que se recusa a romper com o passado e de uma esquerda hipnotizada por utopias regressivas de segunda mão


Concordo: Lula não é o futuro, mas é a sombra do passado que paira sobre o presente. Diante da pasmaceira do cenário atual, muitos haverão de sentir saudades dos vibrantes anos de Lula. Sabemos que os bons resultados na época deveram-se a uma conjunção de fatores positivos para nossa economia, embora não se deva negar o mérito de Lula em optar pelo pragmatismo e pela manutenção da macroeconomia herdada do Plano Real, que garantiu a estabilidade e permitiu ao país usufruir dos ventos favoráveis. Reconhece Demétrio, Lula é um pragmático, e não um ideólogo. Mas ao anunciar a Nova Matriz Econômica no meio de seu segundo mandato, armando a bomba que viria a estourar no colo de sua sucessora, Lula confirmou seu compromisso com o passado. Não é necessário denotar aqui os maus resultados que se seguiram, confirmando o anacronismo do ideário nacional-estatista neo-varguista apregoado pela velha guarda do PT, que Lula deveria ter descartado em definitivo enquanto teve o poder. O resultante fracasso da economia explica a queda do governo Dilma com pouca ou quase nenhuma resistência popular.

Se, no entanto, Lula for processado e impedido de disputar as eleições de 2018, a indagação ficará aos olhos de todos: e se Lula fosse o presidente?

Seja quem for que vença as eleições, terá sobre si a sombra de Lula e as especulações daí advindas, que com o tempo se tornarão um mito, tal como aconteceu com a Argentina de Evita Perón, que conforme sabemos, conheceu um período economicamente muito favorável graças aos saldos da balança comercial do tempo da guerra, cujo fim coincidiu com a morte por causas naturais da primeira-dama militante, nascendo daí a obsessão nacional: ressuscitar os bons tempos de Evita e Perón. É a sombra do passado que impede a chegada do futuro, e para que nossa História destrave, é imprescindível, sim, que Lula dispute as eleições de 2018. Derrotado, seu tempo estará definitivamente confinado ao passado. Vitorioso, terá a oportunidade de optar mais uma vez pelo pragmatismo, desvencilhar-se do superado ideário esquerdista e fazer um bom governo. Então seu papel na História estará escrito.

domingo, 2 de abril de 2017

Nem contra, nem a favor, muito pelo contrário

Não me lembro de nunca ter visto o país em uma pasmaceira tão grande quanto agora. O presidente tem o menor índice de aprovação da história, mas não se vê nas ruas gente clamando pela volta de sua antecessora, cujo índice de aprovação não era  muito diferente. Pequenos protestos aqui e ali em meio a um deserto de ideias, não há praticamente nada que estimule a imaginação, nem otimismo, e curiosamente, nem pessimismo. Será a calmaria que antecede as tempestades? Ou o silêncio obsequioso de quem finalmente amadureceu e abandonou suas utopias infantis?

O momento nacional está bem retratado em uma pesquisa com resultados aparentemente contraditórios que descobri nesse artigo do Jornal GGN. A pesquisa foi realizada sobre manifestantes que compareceram em ato realizado na avenida Paulista no último dia 26. Como o ato foi convocado por organizações de direita, as opiniões deveriam ter ido conformes, mas não foi bem assim.
  Sobre o nível de conservadorismo de cada entrevistado, a pesquisa identificou um nicho de 47% que se disse "muito conservador", 34% de "pouco conservador" e 14% de "nada conversador". 
 Quando questionados sobre posicionamento político, 31% se disseram de direita, 17% de centro-direita e 36,3% disseram "nada disso", negando vinculação a qualquer corrente ideológica. A soma dos que responderam de centro-esquerda ou esquerda chegou ao patamar de 10%. 
 À pergunta "Você é a favor da permanência do presidente Temer no governo?", 46,5% disseram que não e 46,9% disseram que sim, enquanto 6,6% não souberam opinar.
 A união inegável entre os manifestantes certamente apareceu nas respostas à pergunta "Você se considera antipetista?". Aqui, quase 85% responderam "muito antipetista", 5% "pouco antipetista" e 9%, "nada antipetista".
Quando a questão foi "Você concorda com a reforma da Previdência?", 74,8% repudiaram a proposta encampada por Temer, ante 19,3% que concordam com a reforma. Outros 5,9% não souberam responder.
Resultados curiosos. Quase todos se afirmaram fervorosamente antipetistas, como já era esperado, mas também não estão animados com o presidente Temer, haja visto que metade é contra a sua permanência no governo, e rechaçam decididamente a reforma da previdência proposta por ele. Quase todos se declararam conservadores, mas a maioria rejeitou o rótulo de direita. Nem lá, nem cá. Quando a pergunta foi sobre a filiação política, o resultado foi estrondoso:

Diante de uma lista de partidos, 11% disseram ter afinidade com o PSDB. O segundo mais votado foi o partido NOVO (6%), seguido de DEM (1,6%). As demais legendas não conquistaram mais de 1% dos votos. A grande maioria, porém, respondeu que não tem afinidade com nenhum partido: 72,9%.
A única certeza produzida é que há um notório descompromisso com todos os partidos e os políticos em geral. O descontentamento é amplo, mas não há ideias no ar, nem salvadores da pátria. Fica a impressão de um imenso vácuo à frente a ser ocupado... por quem?

Penso que vamos ter mesmo que esperar até 2018. Mas com certeza alguém irá ocupar esse vácuo. A natureza odeia o vácuo, e os que tem horror à política são governados pelos que não têm.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Lula em 2018

Por que estudamos História?

Respondo: para que possamos prever o futuro. Só quem conhece os fatos do passado pode fazer ideia dos fatos que acontecerão daqui para a frente. Saber o passado permite entender o presente, e entender o presente permite projeções para o futuro. Só não podemos é cair na conclusão apressada de que o futuro será mera repetição do passado, pois é bem conhecida a máxima citada por Marx, de que a História acontece duas vezes: na primeira como tragédia, e na segunda como farsa. Qualquer indivíduo bem informado já viu e está vendo ainda amostras de tragédias que se repetiram como farsas.

É nesse contexto que devemos encaixar a notícia que tem circulado nas redes sociais, e ainda timidamente nas mídias comerciais: que Lula é o candidato com maior intenção de votos para 2018. É claro que até lá muita coisa pode mudar, sobretudo se a disputa for para o segundo turno, e o próprio Lula corre risco de ser preso e impedido de concorrer à eleição. Mas a questão instigante que se coloca é a seguinte: o novo governo de Lula vai repetir a glória de seu primeiro governo? Lula vai reverter toda a queda que o Partido dos Trabalhadores e a esquerda em geral têm experimentado nos últimos anos?

Primeiro, é preciso reconhecer que os dois primeiros mandatos de Lula foram de fato muito bem sucedidos. Ele soube obter a confiança do eleitorado, bem como do empresariado, e montou uma boa base de sustentação. No plano econômico ele herdou a estabilidade de dez anos de Plano Real e teve pelo frente anos de firme expansão da economia mundial, puxada sobretudo pelo crescimento chinês e consequente boom da commodities. Diferente dos surtos de crescimento anteriores por que o país passou, como aqueles da época de JK ou do "milagre" dos militares, voos de galinha onde os ganhos do trabalhador com a expansão da oferta de emprego eram rapidamente anulados pela inflação que vinha em seguida, o crescimento na Era Lula ocorreu dentro de um quadro de estabilidade econômica, puxado sobretudo por uma grande expansão do crédito, que permitiu ao trabalhador adquirir bens financiados a longo prazo. Essas boas notícias criaram uma mística em torno da figura de Lula.

Entretanto, se Lula soube surfar a onda que se ergueu à sua frente, foi também ele o responsável por plantar as sementes da queda que viria em seguida, primeiro por ressuscitar a esgotada fórmula do nacional-estatismo na Nova Matriz Econômica, lançada já na metade de seu segundo mandato, segundo por indicar a desastrada Dilma Rousseff como sua sucessora, ciente de que ela faria tudo para implementar as malfadadas diretrizes da Nova Matriz Econômica, que trouxeram o país para a crise atual e pavimentaram o caminho para a queda do governo petista. O PT, na realidade, começou a ruir ainda no governo de Lula, na época do mensalão, mas o próprio Lula permaneceu incólume, negou auxílio aos camaradas e pareceu até satisfeito de ver que a queda do PT deixava-o livre e desimpedido na liderança. O pedestal de Lula só começaria a rachar bem mais tarde, quando caiu na mira da Lava-Jato.

O fato de Lula haver se recusado a disputar as eleições em 2014 sugere que ele estava ciente de que sua fórmula tinha mesmo validade temporária e que já havia se esgotado. Só tarde demais ele arrependeu-se de haver indicado Dilma Rousseff. Agora, já envelhecido e desgastado por denúncias, ele anuncia sua disposição de concorrer em 2018. O que pretende Lula, afinal? Reverter todos os erros cometidos desde o final de seu segundo mandato e lançar o país em nova era de crescimento e inclusão social? Ou meramente colocar-se a salvo da Operação Lava-Jato?

Isso ainda não sabemos, mas é fato que as condições políticas e econômicas de 2002 não existem mais em 2017. A base aliada de Lula deixou de existir, e a economia exige medidas de austeridade, medidas impopulares. Lula em 2018 será um refém de partidos que têm ampla maioria no congresso, ou irá conseguir uma espetacular virada de jogo? O Lula de 2018 será uma caricatura do Lula de 2002, a História se repetindo como farsa?

Mesmo conhecendo o passado, é difícil prever o futuro. As injunções geram mais perguntas do que respostas.