sexta-feira, 15 de setembro de 2017

O Brasil antes do Brasil

Estou lendo um livro bem interessante, 1499 - O Brasil Antes de Cabral, de Reinaldo José Lopes, que dá uma visão dos povos indígenas pré-cabralinos bem mais ampla do que as informações que tínhamos até agora. Mas prefiro chama-lo de O Brasil Antes do Brasil, pois o país, assim conceituado como construção política, diplomática e cultural, passou a existir em 1500 após a chegada dos colonos. Até 1499 o que havia aqui não era o Brasil, mas a região geográfica habitada por povos distintos que não obedeciam a um mesmo governo nem tinham territórios delimitados por fronteiras.

Esses povos, contudo, eram bem mais antigos, numerosos e evoluídos que a imagem veiculada pelos livros de História até agora. Começando por Luzia, nome dado ao esqueleto mais antigo encontrado no país e datado de 12 mil A.C., o autor traça um painel surpreendente: populações sedentárias habitando aldeias do tamanho de cidades modernas, com elementos de urbanismo tais como ruas, praças e amuradas, ligadas por largas estradas e praticando uma agricultura diversificada com várias espécies nativas domesticadas, e inclusive usando fertilizantes naturais - a misteriosa terra preta dos índios. Essas tribos evoluídas ocupavam o centro do território brasileiro em um formato de cruz, da Ilha de Marajó ao sul de Mato Grosso, e do Amazonas ao Piauí.

É sabido que os primeiros exploradores do Amazonas fizeram relatos algo fantasiosos das tribos que encontraram, falando de grandes aldeias mas também de mulheres guerreiras que emprestaram seu nome ao rio, e que nunca mais foram avistadas de novo. Acredita-se que seriam guerreiros de cabelo comprido tomados por mulheres. Mas o fato é que, quando a região foi criteriosamente explorada em épocas mais recentes, nem as mulheres guerreiras nem as portentosas aldeias foram encontradas - elas tiveram que esperar o trabalho de arqueólogos do século 20 para virem à luz.

O trabalho do autor é importante para superar a conceituação simplória que se fazia dos índios brasileiros até agora. Mas fica a pergunta no ar: se eles eram assim tão evoluídos até meros 500 anos atrás, porque desapareceram antes de qualquer contato significativo com o colonizador?

Essa pergunta o autor promete responder nos capítulos finais do livro, que lerei em breve. Mas até lá posso fazer alguma especulações. A impressão que eu tenho é que o estágio da Revolução Agrícola, a passagem de povos caçadores-coletores para povos agricultores, é um processo bem mais complicado e demorado do que parece. Isso porque é uma aposta sem volta: a criação de roçados e pastagens requer a destruição do ambiente natural onde se praticava a caça e a coleta. Trata-se de uma decisão sábia, contanto que dê certo.

Quando funciona, é bem sabido o que acontece: basta o trabalho de uma parcela da população para produzir alimentos para toda a comunidade. Desobrigadas de passar os dias percorrendo florestas à cata de frutas e caça, as pessoas passam a dispor de um enorme tempo vago que utilizam para fazer descobertas que darão origem a setores especializados: surgem os artesãos, os tecelões, os oleiros, os pedreiros, os ferreiros, os curandeiros, os guerreiros. A população cresce e já não pode deslocar-se, tem que ficar próximo de estão as plantações e as criações: surgem as cidades. A sociedade torna-se complexa e desigual, é o que chamamos, latu sensu, de civilização.

Mas e se não der certo? A domesticação da natureza, feita por povos que não possuem qualquer noção do que estão fazendo, pode redundar em vários tipos de catástrofe ecológica. O planeta está repleto de ruínas de templos, pirâmides e imensas cidades de pedra perdidas na floresta, testemunho de civilizações que foram arrojadas, mas que por algum motivo não puderam mais manter aquele modo de vida, tiveram que abandonar suas cidades e retornar a um estágio evolutivo anterior - os maias da América Central são um exemplo. Mas também há exemplos de povos que permaneceram por um tempo indefinido no limiar da revolução agrícola, nem lá nem cá, como os nativos norte-americanos, que tinham plantações de milho mas não podiam ficar o ano inteiro cuidando delas, pois tinham que migrar atrás dos bisões, que eram bem mais importantes para seu modo de vida.

É possível que coisa semelhante tenha ocorrido com as antigas tribos evoluídas daqui. Importante lembrar que a revolução agrícola aumenta a oferta de alimentos em quantidade, mas diminui em diversidade, posto que nem todas as espécies podem ser domesticadas - várias fontes de alimento que até eram relativamente abundantes na natureza têm que ser descartadas. Basicamente, a revolução agrícola só vinga quando há um cereal básico para suprir as necessidades energéticas da população, mais um conjunto mínimo de outros nutrientes para manter a saúde. No Oriente Médio e depois na Europa, esse cereal básico foi o trigo; na Ásia foi o arroz, e na América Central foi o milho. Os demais nutrientes são hortifrútis até hoje encontrados nas feiras livres, mas nenhum deles nativo do Brasil. Qual seria a alimentação básica de nossos índios agricultores?

Aguardo a leitura dos capítulos finais.

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