domingo, 14 de setembro de 2014

A Cara dos Presidentes Está Mudando

Claramente, o perfil dos presidentes brasileiros está mudando. Ou ao menos o rosto deles. Nunca antes havíamos tido um presidente operário, e em 2002 Lula elegeu-se. Verdade que só trabalhou como operário uns quarenta anos atrás, mas como não assumiu nenhuma outra profissão definida depois disto, operário sendo, operário ficou. Também nunca antes havíamos tido uma presidente mulher, até que em 2010 Dilma Rousseff elegeu-se. E agora o próximo pleito será disputado por duas mulheres, sendo que a segunda também foi seringueira e analfabeta até os 16 anos - outro fato inédito.

Mudaram os presidentes ou mudaram os políticos? Mudaram os políticos ou mudou o Brasil?
Mudar tudo muda, é claro, mas certas coisas permanecem iguais, como a pouca competência e a escassa honestidade de nossa classe política. Bem, se é indiscutível que nossos presidentes agora estão ficando mais com a cara do povo, podemos concluir que a corrupção não é exclusividade das elites, como outrora foi senso comum. Mas será que no tempo em que nossos presidentes tinham cara de cavalheiros, eles eram mais honestos? Essa mudança toda, afinal de contas, está sendo para melhor ou para pior?

É um julgamento que só pode ser feito pelo senso comum, mas a impressão geral é que os políticos já foram pessoas mais distintas no passado. Alguns afirmaram isso textualmente. No distante ano de 1900 foi publicado um livro chamado Porque Me Ufano de Meu País, de autoria do dramaturgo e ensaísta Afonso Celso de Assis, o conde Afonso Celso, obra hoje citada como exemplo acabado de patriotismo desvairado e otimismo discutível. Entre vários motivos que o autor citou como sendo razão de orgulho para o brasileiro, estava o caráter dos homens públicos nacionais: "Os homens de Estado costumam deixar o poder mais pobres do que nele entraram (...) Casos de venalidade enumeram-se raríssimos, geralmente profligados (...) Quase todos os políticos brasileiros legam a miséria a suas famílias. Qual o que já se locupletasse à custa do benefício público?" Com certeza, nenhum comentarista sério acredita que os homens públicos do tempo de Afonso Celso fossem tão corretos assim. Mas uma coisa não se pode negar: se naquele ano de 1900 um escritor pôde escrever essas palavras sem temer um estrepitoso ridículo, era porque a percepção de corrupção era muito menor do que hoje.

Não é sem uma certa melancolia que constatamos isso. Se não podemos medir com rigor a probidade dos políticos de antanho, há um outro aspecto que não admite dúvidas: eles eram mais letrados. Consultando-se a biografia de personagens que habitavam o mundo da política cinquenta ou cem anos atrás, encontramos com facilidade poliglotas, autores de livros, ensaístas, poetas e romancistas. é certo que nem todos eram um Ruy Barbosa ou um José de Alencar, mas ao menos um José Sarney era lugar-comum. Sarney, inclusive, é o último exemplar desta estirpe, por certo que não é nenhum escritor de primeira linha, mas no cenário atual está a anos-luz de tantos analfabetos que pululam pelo congresso.

Afinal, se os políticos estão ficando mais com a cara do povo, isso significa que eles estão ficando mais iletrados e desonestos?

Para responder a essa pergunta, é necessário contrapor o perfil do político tradicional com o novo. O político tradicional, sem dúvida que nunca foi um exemplo de probidade administrativa, vide os Malufs, os Sarneys, os ACM, os Jader Barbalhos, os Collors e por aí afora. Mas esses indivíduos, sem exceção, vinham de famílias ricas, geralmente com várias gerações de políticos, e por mais que pusessem a mão no dinheiro público, a maior parte de seus rendimentos sempre veio de seu patrimônio pessoal. Já os novos políticos geralmente vieram de famílias pobres, e a possibilidade de ganhar dinheiro foi justamente o motivo original que os levou a tentar a carreira política. São ratos magros, em suma. Entram pobres, saem ricos. Sem patrimônio ou tradição, utilizam-se do populismo para empolgar as massas, inclusive invocando sua condição de homens do povo. Eu tenho observado um paralelo cada vez maior entre as carreiras do político, do animador de programa de auditório e do pastor de igreja vigarista: começam a vida pobres, terminam ricos e valem-se do ilusionismo para cativar seu público específico. Notei isso pela primeira vez quando estava perto de uma TV ligada mostrando o programa Sílvio Santos. Em determinado momento surgiu na tela o rosto de Dilma Rousseff fazendo um discurso enaltecendo o novo programa do governo denominado Brasil Carinhoso. Levei alguns segundos para perceber que estava vendo a imagem da presidente da república. Explico: é que a maneira como ela falava e o linguajar que ela usava se harmonizavam de tal maneira com a apresentação de um programa de auditório, que distraidamente julguei que se tratava de algum novo quadro ou concurso do Sílvio Santos.

Senor Abravanel não conseguiu ser presidente da república. Mas o Brasil vai aos poucos se transformando em um imenso auditório.

sábado, 13 de setembro de 2014

Não queria comentar, mas...

Quando ocorreu esse episódio da torcedora que chamou um jogador de macaco, não dei nenhuma importância. Não sou racista, e há muito não acompanho mais futebol. Não pensei que seria matéria para comentar em meu blog, mas diante da repercussão do caso, cujo último desdobramento foi um incêndio criminoso na casa da moça, concluí que estava diante de um fenômeno que valia, sim, a atenção geral.

Em primeiro lugar, é claro que chamar alguém de macaco é uma grosseria, além de óbvio racismo. Mas todos estão cansados de saber que torcedores em um estádio desde priscas eras sempre gritaram todo o tipo de grosseria. Nos tempos em que eu frequentava estádios, era comum ouvir-se o coro chamando o juiz de FDP sempre que ele marcava algo que prejudicava nosso time - e no entanto, jamais ouvi falar de alguma mãe de árbitro de futebol que algum dia houvesse entrado com uma ação por calúnia contra algum torcedor!

Parece-me evidente que as palavras ditas em estádio durante uma partida não devem ser julgadas da mesma maneira como se fossem ditas em outro local e em outras circunstâncias. A impressão geral foi que a reação contra a infratora foi desproporcionalmente severa. O que isso significa? Estaremos ficando mais civilizados e intolerantes com agressões de qualquer natureza? Se for verdade, isso é bom: o racismo é repulsivo, e deve, sim, ser reprimido. Mas o fato é que a reação enérgica contra o racismo convive sem problemas com uma ampla indiferença quanto a episódios muito mais violentos e imorais que ocorrem todos os dias. Daí que eu conclua que estamos diante de outro fenômeno: a instrumentalização dos ressentimentos humanos.

É sabido que grupos diversos de indivíduos considerados oprimidos por alguma razão têm se unido e organizado de forma espontânea, a fim de defender-se e expor suas reivindicações. Não há nada de errado ou estranho quanto a isso. Mas de uns tempos para cá, essa organização tem sido cada vez mais instrumentalizada por ONG´s e por partidos políticos - são os "movimentos sociais" da autodenominada sociedade civil organizada. De um lado, isso é bom para os movimentos, pois provê de verbas e de publicidade àqueles que antes dependiam apenas de si próprios. Mas de outro lado, transforma esses movimentos em um mero público ao dispor das ONG´s e partidos que os financiam. A reação desproporcional contra o procedimento da torcedora, portanto, não é prova de que estamos ficando menos racistas, e sim prova de que os grupos que combatem o racismo estão ficando mais fortes, uma vez que os movimentos negros, tal como tantos outros - gays, sem terra, sem teto, índios, etc. - têm sido cooptados por partidos e ONG´s, e como tal, têm ganho respaldo cada vez maior dos poderes públicos. Mas conforme afirmei, esse ganho de poder corresponde a uma crescente instrumentalização dos ditos movimentos - eles devem servir a quem os banca, certo? Aí o futuro é incerto. A criatura vai se voltar contra o criador? O criador vai suprimir a criatura quando não mais necessitar dela?

O futuro o dirá.

sábado, 30 de agosto de 2014

O Fenômeno Marina

Um mês atrás, eu nem sabia que Marina Silva era candidata a vice na chapa terceira colocada nas pesquisas. Agora, como todos os brasileiros, estou diante do maior fenômeno eleitoral dos últimos tempos, mais notável ainda por haver sido produto de circunstâncias fortuitas, um acidente de avião, sem nenhuma articulação por trás ou trabalho prévio de marqueteiros. Quanto a mim, não tenho maiores simpatias por Marina, como não tenho pelos outros candidatos, mas como comentarista sinto-me obrigado a pelo menos tentar decifrar o fenômeno.

Como é possível que um candidato com tanto potencial fosse originalmente lançado apenas como vice, em uma chapa sem chance sequer de passar ao segundo turno? Vivo Eduardo Campos, sua candidatura era um cadáver; morto o candidato, sua candidatura ressuscita no corpo de Marina. A explicação que eu encontro é a falta de base partidária de Marina, que tampouco possui base nas massas, em razão de sua falta de carisma. Mais difícil de explicar é de onde vieram tantas intenções de voto para uma candidata tão apagada. Mostram as estatísticas que Dilma perdeu poucos votos para Marina, o que não me espanta: o eleitorado petista, atualmente, é composto por aquela massa que vota no candidato que tem a chave do cofre. Como reza o provérbio, o eleitor tem a memória do burro, sempre se lembra onde come. Essa massa já pertenceu, no passado, à antiga ARENA do regime militar, foi depois herdada pelo PMDB de Sarney e agora é propriedade do PT: muda de partido, mas não muda de endereço, está sempre localizada nos rincões mais pobres e dependentes do favor do governo. Já Aécio Neves perdeu bem mais votos do que Dilma, passando a terceiro lugar, o que evidencia que o eleitorado de Marina é composto em sua maioria por um eleitor descontente com o PT, mas que também não se encantava com Aécio. Esse eleitor desalentado talvez votasse em branco caso não tivesse ocorrido o desastre de avião. A impressão que tenho é que finalmente surgiu um candidato com mínimo apelo popular para confrontar a hegemonia petista.

Mas por que o PSDB não empolgava os anti-petistas?

A explicação se encontra nos próprios fundamentos ideológicos do PSDB, um partido de centro-esquerda que foi obrigado pelas circunstâncias a adotar uma política "neoliberal", que é o nome que a esquerda dá aos cortes, privatizações e medidas de austeridade absolutamente indispensáveis para se tirar qualquer contabilidade do vermelho, seja a de um país ou a do botequim da esquina. O PSDB conspurcou-se com sua fama de neoliberal, enquanto o PT revelou total empatia com as massas, que clamam por um Estado grande e paternal. Por este motivo, o PSDB preferiu renegar o seu passado, desvencilhar-se da imagem de Fernando Henrique Cardoso, paradoxalmente seu líder mais bem -sucedido, e procurou emular o discurso neo-populista do PT. O resultado não poderia ser outro: derrota atrás de derrota. Afinal, quem vai querer a imitação barata se pode ter o original?

E por que Marina empolga os anti-petistas?

Essa é mais difícil de responder. Vejo em Marina uma personagem oca, revestida de um discurso feito de lugares-comuns ambientalistas. Não tem carisma pessoal nem base partidária, passou os últimos anos pulando de galho em galho. É tão oca quanto uma luva, que só espera que alguém coloque-a na mão. E quem será? O PT ou o PSDB? Um hipotético governo de Marina é uma incógnita total, sabe-se apenas que não será fácil, pois os oito anos de Lula deixaram uma pesada conta a ser paga. Esperava-se que Dilma pagasse a conta e deixasse tudo no azul para Lula voltar em 2014, mas isso não aconteceu. Afirma Aécio que o governo de Dilma acabou, mas não é bem assim; o governo de Dilma sequer começou. Então, talvez Marina acabe fazendo o papel que Dilma não fez: ser a "neoliberal" que vai arrumar a casa, arcar com o inevitável ônus de impopularidade e deixar tudo limpo para o retorno triunfal do PT em 2018.

O problema - repito mais uma vez - é que quem pode levar será o PSol, ao invés do PT...

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Caráter do Brasileiro

Não tenho muita afinidade com o povo brasileiro em geral, e não nego que muitas características típicas dos brasileiros incomodam-me. Sobretudo a mania de transformar tais defeitos de caráter em peculiaridades antropológicas – daí a lenda do Brasileiro Cordial; o culto a Macunaíma, o herói sem nenhum caráter; a exaltação da malandragem, do improviso, do jeitinho, do carnaval, do futebol – como se tudo isso fosse um traço identitário nosso. Não posso mudar nada, mas já que a moda é tecer todo um discurso sociológico em torno dessas ditas peculiaridades, então vou entrar também na discussão.

Entre os atributos brasileiros de que não gosto, o que mais me incomoda – e talvez por isso mesmo, seja uma síntese de todos os outros – é um excessivo caráter gregário. Brasileiro gosta de andar sempre em bando, indivíduos introspectivos são mal vistos. As ligações familiares prolongam-se além do núcleo familiar, e persistem pela vida adulta afora, muitos familiares vivendo juntos. As amizades são tão numerosas quanto superficiais. Fala-se sobretudo de um jeito caloroso, afetuoso de ser, que seria típico do brasileiro. É nesse ponto que chegamos ao batido arquétipo do brasileiro cordial, sobre o qual já me referi em outro artigo.
O que há de verdade nisto tudo?

Não me permito discordar, ainda mais que tenho exemplos vivos em toda parte. O que eu discordo mesmo é da crença de que tudo isso tudo seria uma idiossincrasia nossa. A meu ver, esses atributos são herdados. Todo o mundo sabe que esse jeito de ser e de falar, de cumprimentar tocando e beijando, é comum a todos os povos latinos sul-europeus, nossos ancestrais. A insistência em apresentar esses traços culturais como invenção brasileira, a meu ver, revela uma vontade de ver um “algo mais” neles. De minha parte, vejo apenas um excesso de linguagem corporal e jogo de cena, hábito de mentir educadamente. Conforme é sabido, nunca se deve despedir de um inglês dizendo “aparece lá em casa”, ou ele aparecerá mesmo. Nós nos acostumamos a esses estereótipos: os ingleses escondem as emoções que sentem, os latinos mostram as emoções que não sentem. Os ingleses são individualistas, nós somos gregários. Mas já que a proposta é extrair daqui algum significado antropológico profundo, vamos lá: trata-se, a meu ver, da reminiscência de uma organização social pretérita, orientada ao clã familiar. É por este motivo que nós valorizamos mais as ligações afetivas e familiares do que quaisquer outras formas de filiação, inclusive ideológicas e religiosas, conforme explicou Sérgio Buarque de Hollanda, o criador do arquétipo de brasileiro cordial, mas poucos prestaram atenção, haja visto que continuam a interpretar a cordialidade como brandura e mesura. Mas o cordial de Buarque de Hollanda vem da palavra latina para coração, denotando emoção: somos mais emocionais do que racionais, foi isso que ele quis dizer.
Não discordo de Buarque de Hollanda, mas isso colocado dessa forma, como se fosse uma idiossincrasia nacional, uma invenção brasileira, assume ares de mito fundador, o que reveste a ideia de uma aura de dignidade e fornece-lhe um álibi contra todas as críticas: somos assim porque somos brasileiros, e isso sendo uma condição imutável, não nos cabe criticar, mas exaltar, do contrário estaremos exercitando sentimentos neuróticos de auto-rejeição. Ponto. Mas repetindo o que afirmei acima, isso não é uma idiossincrasia brasileira, e tampouco permite tirar uma conclusão que identifique o brasileiro como um povo único e diferente dos demais. No máximo, permite classificar-nos entre os povos atrasados, mais próximos de uma organização social primitiva e orientada ao clã familiar, em detrimento da cidadania. Há muitos outros exemplos de povos do Terceiro Mundo com essas características, o que efetivamente distingue o brasileiro é essa disposição em tecer um discurso sociológico dignificando tais atributos; que eu saiba, em nenhum outro país houve intelectuais que criassem mitos análogos ao do homem cordial, Macunaíma, o malandro, etc. Pode ser que exista, mas eu desconheço. Devíamos é acabar com isso. Aqueles que refutaram o mito do brasileiro cordial apresentando incontáveis episódios de violência em nossa História, isso levados pelo equívoco de tomar cordial por gentil, fizeram-no com toneladas de razão: de fato, para manter a velha organização social orientada ao clã familiar, é imprescindível uma considerável dose de autoritarismo, a fim de reprimir as veleidades individuais e enquadrar todos à força no coletivo tribal. Daí para a violência é um passo.

É sabido que os antigos clãs familiares brasileiros tinham um patriarca. Figura revestida de toda a autoridade, ele comandava esposa, filhos, parentes, agregados, empregados, etc. Esse modelo de família estendida ainda marca nossas relações sociais. Quem está de fora e vê aquele familião, todos interagindo, não raro morando juntos, fica com uma impressão de solidariedade e mútua cooperação. Mas quem está do lado dentro, vê a coisa como realmente é: um mundo onde prevalecem os mais atirados, os mais audazes, quando não os mais descarados, enquanto indivíduos tímidos e escrupulosos são espoliados. Não existe mais a figura do patriarca, mas o autoritarismo que dele emanava ainda está impregnado em nosso tribalismo tardio, e manifesta-se sobretudo no pouco respeito à privacidade alheia, este que é o mais ínfimo dos bens pessoais, e prossegue na perseguição aos “diferentes”, na disposição de fazer uso comum com o que é de outros, em sequestrar o individual para o suposto benefício do coletivo. Seria até uma amostra de altruísmo e entendimento de nossa parte, não fosse esse apreço pelo coletivo tribal paralelo ao mais absoluto desprezo pelo que está fora de tal coletivo. Como bem demonstrou Buarque de Hollanda, a fidelidade brasileira à família e aos amigos impede que ingressemos em formas de organização social superiores, orientadas à cidadania e ao Estado, pautadas na legislação comum e no respeito ao que é privado. Da falta de respeito à privacidade à falta de respeito à propriedade é apenas um passo. Aquele ministro corrupto, no final das contas, pode até ser um bom sujeito: tudo o que ele queria ao fraudar as licitações era beneficiar parentes e amigos donos de empresas, não era isso? Evidente que aquilo que é bom para a curriola dele não é bom para o país, mas é assim que raciocina o homem cordial, e é assim também que muitos de nós raciocinamos.
Em tempos não tão distantes, governava-se o Estado como se governava a família: de forma autoritária, frequentemente violenta. Hoje, são os cacos dessa organização social arcaica que impedem um uso mais proveitoso de nossas relações sociais, desde nosso círculo pessoal, passando pelo profissional até chegar à administração pública. Continuamos a não fazer uma distinção nítida entre público e privado, o que é nosso do que é dos outros, sempre à espera de que algum patriarca surja das cinzas e faça a mediação necessária para estabelecer a boa ordenação. O apreço por líderes políticos carismáticos é apenas um dos aspectos desta questão. Está na cultura popular, isso não vai mudar de uma hora para a outra. Mas bem podíamos começar por parar com a mania de transformar nossos defeitos de caráter em peculiaridades antropológicas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Dilma, boi de piranha?

Sempre achei a presidente Dilma uma personagem meio patética, desde que veio à luz por obra e graça de seu criador, Luiz Inácio da Silva. Tive até uma certa simpatia por ela, mesclada de pena. Dilma, coitada, não tem carisma. Não é como seu mentor: Lula pode dizer uga-buga-ziriguidum que todos se quedam pasmos ante tanta sabedoria, mas Dilma, com aquela cara de professora de matemática chata de ensino médio, se falar besteira, o pessoal não perdoa.

Desde que foi lançada candidata em 2010, eu tive a convicção de que ela havia sido inventada para fazer um papel de faxineira, cabendo-lhe arrumar as contas que o seu antecessor deixou bagunçadas com a gastança de final de mandato. Durante esses quatro anos, deveria tomar as medidas de austeridade necessárias e arcar com o inevitável ônus de impopularidade e desgaste com a base aliada, a fim de deixar tudo em cima para Lula retornar em 2014, em clima de Copa do Mundo e Olimpíada. Como se sabe, as coisas não saíram como previsto, e Dilma virou um abacaxi. É evidente que seu governo foi um dos mais medíocres da história da república, mas se ela pouco pode apresentar de seu na presente campanha, por outro lado, seu partido ainda conta com respeitável capital eleitoral acumulado nos oito anos bem sucedidos de Lula. Mas por que ele ainda conta com a faxineira?

Atualmente, minha convicção é que o novo papel que coube a Dilma Rousseff é ser boi de piranha do PT. Lula não quis ser candidato - se ele fosse, não tenho dúvidas de que levaria, mas o problema é que os ventos favoráveis de seu primeiro mandato não existem mais, e um novo mandato destruiria a imagem que ele criou. Lula prefere preservar-se, outros petistas também, então Dilma serve como boi-de-piranha: se perder, sem problema, ela já está queimada mesmo; se vencer, quem vai se queimar nos próximos quatro anos é ela, ao enfrentar a recessão que vem por aí, inevitável rescaldo dos erros na política econômica da era petista. Para o PT, o melhor é tirar o time de campo e esperar tempos melhores. Deixar a rebordosa para um "neoliberal" consertar, arcar com o ônus da impopularidade, e depois, com a casa arrumada, voltar com tudo para fazer novo bonitão.

O problema é que daqui a uns anos, o próximo bonitão poder não ser do PT, mas do PSol...

domingo, 20 de julho de 2014

De novo a maioridade penal

Frequentando os forum´s da net, é fácil notar como certos temas são recorrentes. Um assunto que sempre volta à baila é a diminuição da maioridade penal, mais uma vez comentada aqui no Centro de Mídia Independente.

A argumentação é geralmente passional. Afirma-se que o governo quer declarar guerra à juventude, ou que, como escreveu o autor do post, daqui a pouco vão prender os nascituros. Quanto a mim, sou a favor da diminuição da maioridade penal, medida já tomada pela maior parte dos países do mundo, inclusive nossos vizinhos. Só não concordo que será uma solução mágica para a questão da criminalidade. Para tal, não basta reduzir a idade mínima para se condenar alguém à prisão: é preciso reformar toda a legislação penal, aumentando a duração das penas e diminuindo os recursos. A criminalidade atual é alta porque há muito mais bandidos fora da prisão do que dentro da prisão, portanto, só vejo uma única maneira de diminuir o crime: aumentar a população carcerária.

Muitos discordarão aos berros de meu argumento acima. Imbuídos de uma concepção rousseanica do ser humano, aquela que afirma que as criaturas nascem boas e são corrompidas pela sociedade, eles acreditam que ninguém é bandido, mas está bandido, premido pelas necessidades materiais. Atendidas essas necessidades materiais, o crime desapareceria. Mais escolas, menos cadeias, dizem. Essa proposta faria sentido uns 80 anos atrás, quando boa parte do povo vivia longe de escolas, e sem instrução, as pessoas não conseguiam emprego e acabavam entrando para o crime. Mas na época atual, a maioria das favelas está encravada próximo ao centro das cidades, onde bem ou mal, não faltam escolas públicas. O fato é que os jovens de hoje não entram para o crime por falta de opção, mas pela existência de uma opção mais atraente do que aquela de ficar na escola para depois arranjar um empreguinho. Trabalhar para os traficantes dá ganhos muito maiores e razoável chance de impunidade, como qualquer garoto de favela vê com seus próprios olhos todos os dias. Com quem estão os tênis mais caros e as garotas mais gostosas da comunidade?

Se é assim, então, longe de mandar os bandidos para a escola, o que urge fazer é tira-los da escola, para que cessem de ameaçar e corromper seus colegas, e manda-los para a prisão, que é o seu lugar. Evidente que essa solução demanda que sejam construídas mais prisões. Considerando o estado das prisões atuais e o usual descaso com que são tratados os detentos, não é difícil concluir que toda essa grita histérica contra a diminuição da maioridade penal não revela nenhum traço de humanismo, mas é um subterfúgio para se diminuir os gastos com segurança e reservar os recursos existentes para objetivos populistas que propiciem um retorno mais rápido em votos. Afinal, construir cadeia não dá voto, e soltar presos é mais barato que prendê-los.

Ao contrário do que afirmava Rousseau, o ser humano não é naturalmente bom. Todas as criaturas nascem naturalmente más - ou alguém já viu um bebê ceder voluntariamente sua mamadeira para outro? - e são justamente as coerções derivadas das mediações necessárias para viabilizar a vida em sociedade que tornam o indivíduo bom. Essas coerções precisam existir, pois em locais onde há um apagão delas, como nas favelas , o crime explode, revelando a natureza má do ser humano. O mais é conversa de quem só pensa na próxima eleição.

sábado, 12 de julho de 2014

De novo a inflação

Agora que a copa do mundo acabou, estamos livres para voltar à discussão de nossos velhos problemas. A bola da vez é a inflação. Diz a claque petista, agora que a revista Veja falhou em acusar o governo pelo fracasso na organização da copa, mudou de assunto e acusa o governo pela volta da inflação, objeto de um artigo no último número, apontando os riscos de liquidação do Plano Real. Recentemente o assunto voltou a ser objeto de um post no Centro de Mídia Independente, conhecido ponto de encontro de palpiteiros que, se não pode ser considerado uma fonte de artigos inteligentes, ao menos fornece uma boa amostra do que vai pela cabeça de nossos pretensos intelectuais - afinal, como já tive inúmeras vezes a oportunidade de observar, estudos ruins frequentemente dão bons objetos de estudo.

Quem teve a paciência de seguir o link e ler o post deve ter se deparado com uma coleção de argumentos bem destrambelhados. Não vou entrar em detalhes aqui, mesmo porque já dei uma resposta no citado fórum. Mas uma impressão que eu tenho é recorrente: o fim da inflação causou um mal disfarçado desagrado em muita gente por aí. Parece que esse pessoal preferia que a inflação não houvesse acabado.

Por que? Respondo sem dificuldade. Porque o sonho desse pessoal é trabalhar no governo, entrando por indicação de algum político ou movimento social. E inflação não é problema nenhum para quem emite o dinheiro - ou seja, para o governo. Inflação é problema para quem usa o dinheiro.

Para quem emite o dinheiro, longe de ser problema, é solução. Basta aumentar a velocidade da impressora da Casa da Moeda que a mágica está feita: os rombos das contas do governo estão cobertos, e a fatura vai para o desditoso usuário do papel-moeda. Qual governante não sonha com isso? Qual cidadão comum não sonhou ao menos uma vez na vida em fazer compras no shopping e mandar a conta para o vizinho?

Emitir dinheiro sem lastro causa o mesmo efeito que imprimir notas falsas. Quando se diz que o índice de inflação é 6%, o que se quer realmente afirmar é que, de cada 106 reais em circulação, 6 são notas falsas. É claro que o governo não pode fazer como antigamente, mas não custa impingir uns reaisinhos de mentira em meio aos verdadeiros... de leve... só 6 em cada 100, né? É como o ex-alcoólatra olhando para um copo. Mas a Dilma diz, toda empertigada, que não pode baixar mais a inflação porque, se assim fizer, estará aumentando o desemprego. Ora, empregos criados com dinheiro de mentira nada mais são que empregos de mentira, gerados à custa da diminuição do poder aquisitivo daqueles que já estão empregados! É como se o seu patrão chegasse para você e dissesse: vou descontar 6% de seu salário para criar um emprego para o seu colega que está desempregado. Ou se preferir, é como se fosse um imposto invisível, com a vantagem de que pode ser lançado sem aquela chatice de comprar deputados.

Muitos políticos desejam ardentemente ter de volta o prático imposto inflacionário, e no povão, a cultura inflacionária está tão arraigada que, para o senso comum, combater inflação é sinônimo de arrocho salarial e desemprego. O PSol promete reposições mensais da inflação, e ninguém se lembra de perguntar se, ao invés de fazer reposições mensais, o melhor não seria acabar com a inflação. No fundo, todos sonham retornar aos gloriosos tempos quando qualquer economista de meia-tigela podia reinventar a economia e a roda uma vez por semana, uma zorra tão grande que até alguém como José Sarney pôde fazer pose de populista com seu Plano Cruzado e a moratória da dívida. Olham com os olhos esbugalhados de inveja para os índices de 60% da Venezuela e da Argentina. Mas há uma diferença fundamental: a militância de Chávez e Kirshner é armada, a militância petista é desarmada. O PT depende de eleição, e voto só se ganha com o povo satisfeito em poder comprar uma geladeira nas Casas Bahia pagando em quinze vezes. Se deixar a inflação voltar, babau: a carruagem volta a ser abóbora, e os milhões que passaram à classe C voltam à classe D. O remédio é maldizer FHC.