quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Dilma, boi de piranha?

Sempre achei a presidente Dilma uma personagem meio patética, desde que veio à luz por obra e graça de seu criador, Luiz Inácio da Silva. Tive até uma certa simpatia por ela, mesclada de pena. Dilma, coitada, não tem carisma. Não é como seu mentor: Lula pode dizer uga-buga-ziriguidum que todos se quedam pasmos ante tanta sabedoria, mas Dilma, com aquela cara de professora de matemática chata de ensino médio, se falar besteira, o pessoal não perdoa.

Desde que foi lançada candidata em 2010, eu tive a convicção de que ela havia sido inventada para fazer um papel de faxineira, cabendo-lhe arrumar as contas que o seu antecessor deixou bagunçadas com a gastança de final de mandato. Durante esses quatro anos, deveria tomar as medidas de austeridade necessárias e arcar com o inevitável ônus de impopularidade e desgaste com a base aliada, a fim de deixar tudo em cima para Lula retornar em 2014, em clima de Copa do Mundo e Olimpíada. Como se sabe, as coisas não saíram como previsto, e Dilma virou um abacaxi. É evidente que seu governo foi um dos mais medíocres da história da república, mas se ela pouco pode apresentar de seu na presente campanha, por outro lado, seu partido ainda conta com respeitável capital eleitoral acumulado nos oito anos bem sucedidos de Lula. Mas por que ele ainda conta com a faxineira?

Atualmente, minha convicção é que o novo papel que coube a Dilma Rousseff é ser boi de piranha do PT. Lula não quis ser candidato - se ele fosse, não tenho dúvidas de que levaria, mas o problema é que os ventos favoráveis de seu primeiro mandato não existem mais, e um novo mandato destruiria a imagem que ele criou. Lula prefere preservar-se, outros petistas também, então Dilma serve como boi-de-piranha: se perder, sem problema, ela já está queimada mesmo; se vencer, quem vai se queimar nos próximos quatro anos é ela, ao enfrentar a recessão que vem por aí, inevitável rescaldo dos erros na política econômica da era petista. Para o PT, o melhor é tirar o time de campo e esperar tempos melhores. Deixar a rebordosa para um "neoliberal" consertar, arcar com o ônus da impopularidade, e depois, com a casa arrumada, voltar com tudo para fazer novo bonitão.

O problema é que daqui a uns anos, o próximo bonitão poder não ser do PT, mas do PSol...

domingo, 20 de julho de 2014

De novo a maioridade penal

Frequentando os forum´s da net, é fácil notar como certos temas são recorrentes. Um assunto que sempre volta à baila é a diminuição da maioridade penal, mais uma vez comentada aqui no Centro de Mídia Independente.

A argumentação é geralmente passional. Afirma-se que o governo quer declarar guerra à juventude, ou que, como escreveu o autor do post, daqui a pouco vão prender os nascituros. Quanto a mim, sou a favor da diminuição da maioridade penal, medida já tomada pela maior parte dos países do mundo, inclusive nossos vizinhos. Só não concordo que será uma solução mágica para a questão da criminalidade. Para tal, não basta reduzir a idade mínima para se condenar alguém à prisão: é preciso reformar toda a legislação penal, aumentando a duração das penas e diminuindo os recursos. A criminalidade atual é alta porque há muito mais bandidos fora da prisão do que dentro da prisão, portanto, só vejo uma única maneira de diminuir o crime: aumentar a população carcerária.

Muitos discordarão aos berros de meu argumento acima. Imbuídos de uma concepção rousseanica do ser humano, aquela que afirma que as criaturas nascem boas e são corrompidas pela sociedade, eles acreditam que ninguém é bandido, mas está bandido, premido pelas necessidades materiais. Atendidas essas necessidades materiais, o crime desapareceria. Mais escolas, menos cadeias, dizem. Essa proposta faria sentido uns 80 anos atrás, quando boa parte do povo vivia longe de escolas, e sem instrução, as pessoas não conseguiam emprego e acabavam entrando para o crime. Mas na época atual, a maioria das favelas está encravada próximo ao centro das cidades, onde bem ou mal, não faltam escolas públicas. O fato é que os jovens de hoje não entram para o crime por falta de opção, mas pela existência de uma opção mais atraente do que aquela de ficar na escola para depois arranjar um empreguinho. Trabalhar para os traficantes dá ganhos muito maiores e razoável chance de impunidade, como qualquer garoto de favela vê com seus próprios olhos todos os dias. Com quem estão os tênis mais caros e as garotas mais gostosas da comunidade?

Se é assim, então, longe de mandar os bandidos para a escola, o que urge fazer é tira-los da escola, para que cessem de ameaçar e corromper seus colegas, e manda-los para a prisão, que é o seu lugar. Evidente que essa solução demanda que sejam construídas mais prisões. Considerando o estado das prisões atuais e o usual descaso com que são tratados os detentos, não é difícil concluir que toda essa grita histérica contra a diminuição da maioridade penal não revela nenhum traço de humanismo, mas é um subterfúgio para se diminuir os gastos com segurança e reservar os recursos existentes para objetivos populistas que propiciem um retorno mais rápido em votos. Afinal, construir cadeia não dá voto, e soltar presos é mais barato que prendê-los.

Ao contrário do que afirmava Rousseau, o ser humano não é naturalmente bom. Todas as criaturas nascem naturalmente más - ou alguém já viu um bebê ceder voluntariamente sua mamadeira para outro? - e são justamente as coerções derivadas das mediações necessárias para viabilizar a vida em sociedade que tornam o indivíduo bom. Essas coerções precisam existir, pois em locais onde há um apagão delas, como nas favelas , o crime explode, revelando a natureza má do ser humano. O mais é conversa de quem só pensa na próxima eleição.

sábado, 12 de julho de 2014

De novo a inflação

Agora que a copa do mundo acabou, estamos livres para voltar à discussão de nossos velhos problemas. A bola da vez é a inflação. Diz a claque petista, agora que a revista Veja falhou em acusar o governo pelo fracasso na organização da copa, mudou de assunto e acusa o governo pela volta da inflação, objeto de um artigo no último número, apontando os riscos de liquidação do Plano Real. Recentemente o assunto voltou a ser objeto de um post no Centro de Mídia Independente, conhecido ponto de encontro de palpiteiros que, se não pode ser considerado uma fonte de artigos inteligentes, ao menos fornece uma boa amostra do que vai pela cabeça de nossos pretensos intelectuais - afinal, como já tive inúmeras vezes a oportunidade de observar, estudos ruins frequentemente dão bons objetos de estudo.

Quem teve a paciência de seguir o link e ler o post deve ter se deparado com uma coleção de argumentos bem destrambelhados. Não vou entrar em detalhes aqui, mesmo porque já dei uma resposta no citado fórum. Mas uma impressão que eu tenho é recorrente: o fim da inflação causou um mal disfarçado desagrado em muita gente por aí. Parece que esse pessoal preferia que a inflação não houvesse acabado.

Por que? Respondo sem dificuldade. Porque o sonho desse pessoal é trabalhar no governo, entrando por indicação de algum político ou movimento social. E inflação não é problema nenhum para quem emite o dinheiro - ou seja, para o governo. Inflação é problema para quem usa o dinheiro.

Para quem emite o dinheiro, longe de ser problema, é solução. Basta aumentar a velocidade da impressora da Casa da Moeda que a mágica está feita: os rombos das contas do governo estão cobertos, e a fatura vai para o desditoso usuário do papel-moeda. Qual governante não sonha com isso? Qual cidadão comum não sonhou ao menos uma vez na vida em fazer compras no shopping e mandar a conta para o vizinho?

Emitir dinheiro sem lastro causa o mesmo efeito que imprimir notas falsas. Quando se diz que o índice de inflação é 6%, o que se quer realmente afirmar é que, de cada 106 reais em circulação, 6 são notas falsas. É claro que o governo não pode fazer como antigamente, mas não custa impingir uns reaisinhos de mentira em meio aos verdadeiros... de leve... só 6 em cada 100, né? É como o ex-alcoólatra olhando para um copo. Mas a Dilma diz, toda empertigada, que não pode baixar mais a inflação porque, se assim fizer, estará aumentando o desemprego. Ora, empregos criados com dinheiro de mentira nada mais são que empregos de mentira, gerados à custa da diminuição do poder aquisitivo daqueles que já estão empregados! É como se o seu patrão chegasse para você e dissesse: vou descontar 6% de seu salário para criar um emprego para o seu colega que está desempregado. Ou se preferir, é como se fosse um imposto invisível, com a vantagem de que pode ser lançado sem aquela chatice de comprar deputados.

Muitos políticos desejam ardentemente ter de volta o prático imposto inflacionário, e no povão, a cultura inflacionária está tão arraigada que, para o senso comum, combater inflação é sinônimo de arrocho salarial e desemprego. O PSol promete reposições mensais da inflação, e ninguém se lembra de perguntar se, ao invés de fazer reposições mensais, o melhor não seria acabar com a inflação. No fundo, todos sonham retornar aos gloriosos tempos quando qualquer economista de meia-tigela podia reinventar a economia e a roda uma vez por semana, uma zorra tão grande que até alguém como José Sarney pôde fazer pose de populista com seu Plano Cruzado e a moratória da dívida. Olham com os olhos esbugalhados de inveja para os índices de 60% da Venezuela e da Argentina. Mas há uma diferença fundamental: a militância de Chávez e Kirshner é armada, a militância petista é desarmada. O PT depende de eleição, e voto só se ganha com o povo satisfeito em poder comprar uma geladeira nas Casas Bahia pagando em quinze vezes. Se deixar a inflação voltar, babau: a carruagem volta a ser abóbora, e os milhões que passaram à classe C voltam à classe D. O remédio é maldizer FHC.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

A hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude

Li recentemente um artigo de José Maria e Silva, reproduzido aqui no Jornal Opção, comentando uma recente reportagem do Fantástico sobre os privilégios que são concedidos nos presídios aos líderes das facções criminosas. Não é novidade. Sabe-se há tempos que os líderes de tais facções gozam nos presídios de inúmeros privilégios inconcebíveis para bandidinhos comuns, como celas bem equipadas, comida farta, o direito de realizar festas e churrascos, receber mulheres, e principalmente comandar seus negócios por telefone e extorquir os outros presos. O que José Maria chamou atenção foi para o enfoque distinto que a reportagem da Globo deu ao secretário de segurança de Goiás, do PSDB, e o secretário de segurança do Rio Grande do Sul, governado pelo PT.

Edemundo Dias, o secretário de segurança de Goiás, foi acuado pela reportagem. Com ar de pobre coitado, deu algumas desculpas esfarrapadas e tentou impedir o acesso das câmeras ao interior do presídio. Já Airton Michels, secretário de segurança do Rio Grande do Sul, foi mostrado muito empertigado em sua poltrona, admitiu abertamente a existência de regalias nos presídios para os chefes das facções, e justificou-as dizendo que, não fosse assim, haveria uma tragédia. Edemundo Dias foi exonerado pelo governador, Airton Michels permaneceu no cargo. Pareceu-me que o principal propósito de José Maria, em seu artigo, foi mostrar que a Globo é parcial entre seu tratamento a um governo tucano e a um governo petista. Mas a comparação me lembrou um antigo adágio: a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude.

Hipocrisia é feio. Edemundo Dias foi hipócrita. Airton Michels foi sincero. E no entanto, estou convicto de que Airton agiu muito pior do que Edemundo. Lembrei-me de um episódio ocorrido logo no início do primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, lá pelos idos de 1983. Naqueles tempos ainda relativamente inocentes, o jogo do bicho ainda era um caso de polícia. É claro que todos sabiam que a polícia não reprimia coisa nenhuma e que os governadores recebiam caixinha dos bicheiros. Como Brizola enfrentaria o problema? Para surpresa geral, o governador declarou em alto e bom tom que não reprimiria o jogo, afirmando que a polícia tinha coisa mais importante a fazer. No clima político da época, com a volta dos exilados e enorme expectativa de mudanças, tal declaração chegou a soar como alvissareira: até que enfim um governante deixava de lado a hipocrisia! Mas eu, apesar de haver votado em Brizola (era jovem, né?) senti naquele dia um certo frio na barriga. Uma sensação de perda, de haver ultrapassado uma certa barreira e estar ciente de que não poderia voltar atrás e as coisas nunca mais seriam como antes. Em termos práticos, a decisão de Brizola não mudou nada, pois o jogo ilegal já não era mesmo reprimido, e havia de fato problemas de segurança mais urgentes. Mas em termos simbólicos, o impacto foi enorme: aquela foi a primeira vez que eu vi um governante democraticamente eleito afirmar na cara dura que não ia cumprir uma lei, e ficar por isso mesmo. E as coisas, realmente, nunca mais foram como antes.

Brizola recusou ser hipócrita. Airton Michels recusou ser hipócrita. Mas a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude.

sábado, 21 de junho de 2014

As vaias da Dilma

Já gostei de futebol a ponto de ter sido um frequentador assíduo de estádios, hoje em dia não acompanho mais. Mas difícil é deixar de falar de futebol em época de copa do mundo.

A meu ver, a copa no Brasil começou até bem. Os problemas técnicos e logísticos foram menores que o esperado. Os baderneiros de sempre mal chamaram atenção. E os jogos têm sido bons. Comecei a ficar otimista depois que vi a festa de abertura, pois antes tinha dois medos. O primeiro, que fosse uma festa espetacular e cheia de pirotecnias tecnológicas de custo altíssimo, o que me faria ter a sensação das notas voando do meu bolso, pois obviamente quem paga isso tudo somos eu e você. Mas a festa foi simples e não deve ter custado muito. O segundo medo foi que houvessem resolvido fazer uma festa "genuinamente brasileira" para gringo ver, o que significa muita mulata rebolando para nos fazer alvo de escárnio lá fora. Mas artisticamente a festa foi anódina, não teve mulata de bunda de fora, e na verdade não teve nem um sambinha, de que senti falta. Não teve sambista, mas teve um funkeiro, sinal dos tempos. Alguém decidiu que a representação autêntica de nossa cultura popular não é mais o samba, e sim o rap importado dos guetos negros norte-americanos, e assim ficou resolvido. Mas estou me desviando do assunto, ia falar da nota triste da festa: a vaia que Dilma levou.

Por mais que eu seja contra a Dilma, não posso deixar de ficar envergonhado com a grosseria de meus compatriotas. Felizmente poucos dos estrangeiros presentes deve ter entendido as palavras de baixo calão. Achei a vaia, sobretudo, incoerente: se eles são contra a copa, como os manifestantes que andam por aí gritando, então o que eles estavam fazendo no estádio? Mas a réplica da Dilma foi ainda mais incoerente: culpou a elite. Segundo declarou, as vaias que ouviu não vieram do povão, mas da tal de elite. Concordo. A julgar pelo preço dos ingressos, quem estava ali, decididamente, não era o mesmo povão com que eu me imiscuía ombro a ombro nos tempos em que eu frequentava estádios de futebol. Mas se Dilma queria escutar os aplausos do povão que,  segundo crê, lhe dá apoio, então por que foi fazer uma copa em que só a elite pode ir ao estádio? Incoerente. Na copa de 50, um em cada dez habitantes da cidade do Rio de Janeiro estava no estádio no dia da final. De lá para cá, copa do mundo deixou de ser diversão de massas. Então, Dilma, que ature você a elite!

Eu de qualquer modo já deixei de acompanhar futebol, para mim tanto faz. Mas vou torcer para que a copa seja um sucesso, a fim de que não passemos mais vergonha ainda.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Futebol e Racismo

Lendo por acaso sobre futebol (é difícil evitar, nessa época de copa do mundo) por acaso lembrei-me do primeiro artigo que escrevi sobre o racismo no Brasil, tentando explicar sua peculiaridade, e porque é diferente do racismo norte-americano. O que tem a ver, afinal, futebol e racismo? Explico mais adiante.

A tese que defendi no artigo citado foi de que o racismo brasileiro sempre foi, historicamente, diferente do racismo norte-americano, porque nos EUA o racismo foi motivado sobretudo pela reação da classe trabalhadora branca contra a entrada daquela mão-de-obra barata em seus locais de trabalho e de residência, colocando em risco seu padrão de vida. Não que o racismo seja exclusivo da classe trabalhadora, é claro. O branco rico também é racista, mas na prática, ele raramente tem que se confrontar com negros, posto que esses estão excluídos a priori dos locais que frequenta, não por serem negros, mas por serem pobres. Diferente do que acontece com o branco pobre, que a toda hora tem que entrar em disputas com negros, e por esse motivo o racismo vindo da classes trabalhadoras seria mais vicioso - por assim dizer, seria um racismo padrão norte-americano, ao passo que o racismo mais subjetivo vindo dos ricos, calcado em desprezo e indiferença, seria um racismo padrão brasileiro.

Entretanto, lendo a história do futebol no Brasil - afinal, futebol também é História - notei que, no início do século 20, o futebol foi um dos poucos ramos de atividade da sociedade brasileira onde já existiu um racismo explícito e organizado - inclusive fiquei sabendo que fazia parte de estatutos de clubes o fim da cessão de patrimônios como campos e sedes da parte de seus sócios-proprietários, caso no futuro os clubes viessem a aceitar atletas negros. Também ocorreram diversas cisões de ligas, com clubes abandonando suas ligas originais e fundando outras quando aquelas permitiam a entrada de clubes que aceitavam negros. Esse estado de coisas durou até a implantação definitiva do profissionalismo nos anos 30, e a tese do artigo era essa: foi o profissionalismo que acabou com o racismo no futebol brasileiro. Tudo fecha: o futebol foi uma das poucas áreas onde houve disputa ferrenha entre bancos e negros no Brasil, coisa que naquela época não acontecia nas fábricas, dominadas por operários imigrantes, geralmente italianos e portugueses, enquanto a maioria dos negros ainda vivia no campo. Isso confirma a minha tese, e também outra ideia que lancei: que a cura definitiva para o racismo é a meritocracia. Onde existe a busca pelo lucro e somente pelo lucro, não há espaço para critérios raciais, e por este motivo foi o profissionalismo que matou o racismo no futebol brasileiro. No mundo atual, existe o exemplo de Singapura, uma pequena cidade-estado onde convivem etnias bem distintas como os malaios, os indianos e os chineses, mas não se verificam ali os choques inter-étnicos tão comuns naquela parte do mundo, justamente porque Singapura é uma sociedade profundamente competitiva, com mão-de-obra altamente qualificada, onde impera a meritocracia. A meritocracia dissolve o racismo.

É nesse ponto que recaímos mais uma vez na discussão das cotas para negros e índios em universidades. O assunto foi mais uma vez discutido no Centro de Mídia Independente, aqui nessa postagem. Minha opinião: no Brasil, o funil de acesso ao nível superior é tão estreito, e o nível do ensino já é tão ruim, mesmo sem cotas, que acredito que as coisas não vão mudar muito, e que o nível acadêmico dos alunos cotistas, e mesmo o seu nível social, não seja muito diferente daquele dos alunos não-cotistas. Aí o governo pode fazer o seu bonitão sem correr muito risco. Mas se começarem a inventar cotas e mais contas, enchendo as universidades públicas de alunos sem preparo, todos sabem muito bem qual será a consequência: as universidades públicas se tornarão tão ruins quanto hoje são as escolas secundárias públicas, o mercado de trabalho rejeitará os formados, e o único meio de conseguir um bom emprego será ter dinheiro para cursar uma boa faculdade privada.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

A falácia da Democracia Direta

O assunto quente do momento é a tal PNPS, Política Nacional de Participação Social, proposta do governo que tem o inocente objetivo de dar visibilidade e voz a “órgãos da sociedade civil” – em outra palavras, a uma miríade de movimentos sociais articulados com o PT, ou com ONG´s que têm ligações com o PT. Para bom entendedor, vê-se logo que é mais um subterfúgio para solapar os poderes da república, o legislativo e o judiciário, que o PT ainda não conseguiu controlar. Mas o pretexto é bom: as recentes manifestações mostram que o povo está descontente com a tal democracia representativa, e o melhor seria substitui-la pela democracia direta dos conselhos, pelos quais a sociedade civil efetivamente se autogovernaria.
 
Não é uma desculpa qualquer: as vantagens da democracia direta sobre a democracia representativa são flagrantes, tanto que todos nós a praticamos sempre que possível – por exemplo, quando é necessário fazer uma reunião de condôminos para decidir a reforma da portaria, ninguém cogita pagar salários a políticos profissionais para representa-lo na assembleia: todos comparecem e discutem pessoalmente. Mas há o outro lado. Uma assembleia de condôminos só tem autonomia para deliberar sobre assuntos que dizem respeito unicamente àquele condomínio. Se vai ser debatida alguma obra que afete o quarteirão inteiro, faz-se necessário fazer um assembleia maior, reunindo o pessoal de todos os prédios. Se trata-se de algo que afeta a rua inteira, a maioria preferirá deixar o assunto para a prefeitura. Um mundo governado por sovietes só é possível se for um mundo constituído de aldeias auto-suficientes, sem nenhuma interdependência. Pois havendo um mínimo de interdependência, surge logo a possibilidade de uma medida ser vantajosa para uma comuna e desvantajosa para a outra. Então, quem vai fazer a mediação? Ou reúnem-se todas as assembleias comunais em um enorme estádio e passam o resto do ano discutindo, coisa obviamente inexequível, ou cada assembleia envia delegados a uma espécie de soviete supremo – e a partir do momento em que ocorre essa delegação, acaba-se a democracia direta e recai-se em algum tipo de democracia indireta.
 
É verdade que já houve um momento no passado em que ouviu-se o brado: todo o poder aos sovietes! Mas na Rússia revolucionária de 1917, os sovietes só detiveram o poder por poucos meses, quando o estado havia se desintegrado e o país estava em guerra civil. Tão logo a guerra foi vencida e o estado organizou-se, os sovietes foram relegados às questiúnculas internas de suas respectivas comunas, e o poder de fato passou ao partido único e seu séquito de burocratas, que passaram a tomar as decisões que afetavam a totalidade do povo. Se a Rússia de 1917 já não era uma constelação de comunas interdependentes, muito menos esse modelo se aplica ao atual mundo globalizado. Vemos, então, o verdadeiro propósito daqueles que propagandeiam a democracia direta: desautorizar os parlamentos onde a oposição tem maioria, substituindo-os por uma miríade de conselhos sem poder nem importância, e no vácuo de poder assim criado, instala-se o partido único e o Grande Líder. Em toda parte onde proclamou-se a democracia direta, viu-se a hipertrofia do poder executivo e a instauração de uma ditadura pessoal, não raro dando origem a uma dinastia familiar – foi assim na Rússia, na China, na Coréia do Norte, em Cuba, na Venezuela, na Bolívia. Não sei se o PT conseguirá fazer o mesmo por aqui, mas seu plano parece-me óbvio: se o PT vencer as eleições, ele manda os “órgãos da sociedade civil” irem pastar. Se o PT perder as eleições, ele utiliza-se desses órgãos para infiltrar-se no novo governo. O problema mesmo vai ser se esses tais órgãos, sovietes ou assembleias comunais acreditarem que são mesmo independentes e começarem a agir por conta própria, tal como já está acontecendo na Bolívia, onde cada aldeia de remanescentes de índios julga-se um Estado independente. Aí pode acontecer com o PT o mesmo que aconteceu com o aprendiz de feiticeiro: começa a mágica, e depois não consegue para-la.