sexta-feira, 31 de outubro de 2025

A Controversa Mega-Operação no Rio

A grande surpresa da semana foi a mega-operação levada a cabo pela polícia do estado do Rio de Janeiro, que contabilizou mais de centena de mortos, causando estupor, admiração e teorias conspiratórias, como a de que teria sido um ato eleitoreiro do governador, uma manobra para salvar Bolsonaro, ou até um pretexto para uma intervenção de Trump no país. Não faltaram condenações indignadas, mas no geral, os comentários suscitados apenas agitaram e fizeram emergir as folhas e detritos do fundo de um lago onde repousam numerosos equívocos.

De cara, o enorme número de vítimas - apenas quatro policiais - escancara o enorme número de membros de organizações criminosas que atuam nas favelas. Se dezenas morreram, então havia centenas. O enorme número de fuzis apreendidos (e quantos mais continuam escondidos?) bem como o uso até de drones da parte dos criminosos escancara a capacidade bélica das quadrilhas, e não deixa dúvidas de que tal poder paralelo só pode ser combatido mediante uma ação militar. Mas os argumentos que se ouviram foram os de sempre.

A polícia chegou atirando? Mas todos sabem que a polícia é recebida à bala quando sobe o morro, pois não falta armamento aos criminosos. A polícia perpretou uma chacina? Pode-se achar escandaloso que as baixas da polícia tenham sido apenas quatro para mais de centena de criminosos. Mas é a lógica cabal. Os criminosos adquirem armamento sofisticado de contrabandistas, mas não têm treino adequado, muitas vezes não sabem nem segurar o fuzil. Se vão enfrentar soldados que sabem usar a arma, o resultado não pode ser outro, e aí os bandidos veem (tarde demais) que combater uma guerra de verdade não e o mesmo que posar para fotos segurando um fuzil.

Outra discussão recorrente é se as quadrilhas de traficantes constituem organizações terroristas, conforme a definição "narcoterrorismo" cunhada por Trump e repetida pelo governador, o que legitimaria a maneira como sã conbatidas. Já se tornou lugar-comum chamar as favelas de Zona de Guerra. Mas embora sejam usadas armas de guerra, a natureza do conflito não é a de uma guerra. Os bandidos não têm bandeira, nem rosto visível; não estão defendendo nenhuma demanda nacional, territorial ou ideológica; estão a serviço apenas de seus interesses particulares escusos. Não se trata de exércitos em guerra, mas de bandidos muito bem armados. Por outro lado, se a definição de "terrorista" é pertinente, a discussão não é tão simples. Terroristas são conceituados pelo modo como agem, não por suas demandas. Se o objetivo é dominar mediante a tática de aterrorizar a população, o rótulo é correto, pois é perfeitamente sabido o que as quadrilhas fazem para intimidar os moradores e forçar seu silêncio.

A maioria dos equívocos, contudo, deriva do vicio de abordar o fenômeno da criminalidade sob uma leitura de luta de classes marxista. Bradam: os lideres das quadrilhas não estão nas favelas. Por que a policia não os procura na Faria Lima?

Ocorre que os líderes das quadrilhas não estão na Faria Lima, Isso é lenda. Os chefões do tráfico estão na favela mesmo, conforme ficou bem visível poucos anos atrás, quando foi flagrado Fernandinho Beira-Mar na Colômbia negociando diretamente com os fornecedores. O crime tem que ser combatido pelo topo, bradam. Quem diz isso não conhece a dinâmica do crime, onde a queda de um chefe provoca de imediato uma reorganização nas bases e o surgimento de novos chefes ou novas quadrilhas para ocupar o espaço deixado. O crime só pode ser combatido pela base, favela a favela.

Não adianta combater nas favelas, dizem, é preciso evitar que as drogas entrem no país, vigiando as fronteiras. É uma sugestão ideal para quem não quer resolver o problema. Nossas fronteiras são vastíssimas e despovoadas. Se nem os EUA conseguem evitar a entrada de drogas por sua fronteira ultra fortificada, como podemos nós? No Brasil, país consumidor de drogas (e não produtor, e pouco importante como rota) a base material do tráfico - as quadrihas, os arsenais, os estoques - reside onde estão localizados os pontos de venda, ou seja, nas favelas. Apenas nas favelas o tráfico pode ser combatido.

Se não restam mais argumentos para negar a necessidade da ação da policia, pode-se afirmar que a repressão não é o suficiente, é preciso dar escola e oportunidades aos jovens das favelas. Postura de quem se compraz de imaginar as favelas como locais onde se está na estaca zero do desenvlvimento. Os bandidos tiveram, sim, escola e outras opções de vida, mas preferiram o crime porque este proporciona mais lucro que um emprego, e boas chances de impunidade. O comum é o menino ser preso de manhã e solto à tarde. Então, a escolha pelo crime é a simples consequência de uma vantagem comparativs. Não cessará, a menos que essa vantagem comparativa deixe de existir, aumentando-se as penaidades, e consequentemente o risco de se optar pelo crime.

De resto, o crime não tem uma solução cartesiana, o que significa que não pode nunca ser elimiando, apenas controlado. Mas não se pode chamar, tecnicamente, de fracasso uma operação onde apenas quatro policiais morreram para mais de uma centena de criminosos, e centenas de fuzis foram apreendidos. Sem dúvida que as quadrilhas continuam lá. Mas que sofreram um duro golpe, é certo. Baixada a poeira, resta ver que o caminho é por aí.


domingo, 26 de outubro de 2025

O Traficante é Vítima do Usuário

Tem causado frisson a última declaração de Lula, manifestando-se contra a intervenção de Trump no Caribe, de que "o traficante é vítima do usuário". Logo em seguida ele desculpou-se afirmando ter sido uma declaração mal construída, e não poderia ter dito outra coisa para justificar tamanha sandice. Mas engraçada ou bizarra, a afirmação é instigante. O que teria se passado na cabeça do presidente? O que ele quis de fato dizer?
 
Minha opinião é de que ele quis dizer uma verdade, mas foi embotado pela armadilha do raciocínio viciado pela ideologia, o qual repete que o delinquente é sempre vítima do sistema injusto, e apenas a revolução que destruirá o sistema (capitalista) fará cessar o crime, ou antes, não ocorrerão mais crimes porque não haverá mais motivo para praticá-los. Mas no entanto, uma pequena correção na frase a torna uma expressão verdadeira, e provavelmente aquilo que Lula quis comunicar: ao invés de "o traficante é vítima do usuário", deveria ser dito "o traficante existe por causa do usuário".
 
É a indefectível Lei da Oferta e da Procura. Se alguém está disposto a pagar por um certo produto, logo surge alguém que quer fornecer aquele produto. Como se trata de um princípio do sistema capitalista, talvez por isso haja uma repulsa instintiva da parte dos indivíduos formados na ideologia marxista, daí o lapso de Lula. Mas se ele queria acusar os EUA de fomentar o narcotráfico por comprar drogas, está totalmente certo. Os EUA são, de longe, o maior mercado consumidor de drogas do mundo.
 
O gigantismo do negócio da droga nis EUA pode bem ser medido comparando os traficantes que abastecem aquele país com os traficantes que abastecem outro consumidor, possivelmente o segundo maior, mas ainda assim a léguas do primeiro colocado - o Brasil. Aqui, os traficantes têm "fortalezas" no topo das favelas. Lá, os traficantes são multimilionários, como o lendário El Chapo no México, e o insuperável Pablo Escobar da Colômbia. No Brasil, os traficantes não dominam o país - dominam as favelas. Se aqui algum Fernandinho Beira-Mar declarar que não desejaria ser presidente porque tem mais poder que o presidente, todos achariam uma piada de mau gosto. Quando El Chapo disse a mesma coisa no México, ninguém achou graça.
 
O perfil do crime relaciuonado ao negócio da droga é determinado pelas fases daquele negócio que são cumpridas naquele local. Nas regiões produtoras, as quadrilhas dominam várias áreas rurais e até pequenas cidades relacionadas à produção e ao roteamento das drogas, empregando variados colaboradores. O Brasil não produz drogas, exceto pequena quantidade de maconha de má qualidade, e como rota, é secundário se comparado a outras rotas que passam pelos países andinos. O Brasil é consumidor, e portanto, o crime relacionado ao negócio da droga aqui está relacionado à distribuição no varejo - ou seja, aos pontos de venda. Mais especificamente, às favelas. Aqwui, os traficantes têm domínio absoluto nas favelas ainda não tomadas por milícias, mas seu poder cessa abruptamente onde a favela acaba.
 
E a riqueza dos traficantes é determinada pelo tamanho de seu mercado, que aqui é muito menor que o dos EUA. Trump necessita entender que a guerra contra as drogas não será vencida enquanto os EUA gastarem milhões para combater as drogas, e bilhões para comprar drogas. Esses bilhões, injetados em países pobres, chegando a representar uma receita superior até à de seu principal produto de exportação, são capazes de cooptar multidões de colaboradores ao negócio criminoso. Muito mais grave que a corrupção de centenas de funcionários, é a corrupção de milhares de jovens que passam a considerar o trabalho para os traficantes uma opção lucrativa e com boas chances de impunidade e promoção social.
 
Mas Trump prefere encenações custosas, como enviar o maior porta-aviões de sua frota ao Caribe, evocando a piada do tiro de canhão para matar passarinho. Combater o narcotráfico com equipamento bélico pesado é como dar um tiro em uma colméia de abelhas - o dano é mínimo, e as abelhas vem todas para cima. A guerra às drogas não é uma guerra contra um exército regular, é algo mais semelhante à eliminação de uma praga. Acaso Trump cogita reprimir o usuário americano?
 
Lula com certeza disse uma coisa errada. Mas talvez tenha pensado o certo.

domingo, 21 de setembro de 2025

Trump pode estar ressuscitando Lula

Um artigo publicado por Marcelo Zero, acessor da liderança do PT no senado, tem um título instigante: "Não há alternativa: em 2026, o Brasil terá que escolher, de novo, entre Lula e Bolsonaro". Explica o sociólogo:
 
"Tarcísio, Zema, Caiado etc. não sãoalternativas ao bolsonarismo. São simplesmente o bolsonarismo sem Bolsonaro, como o governador de São Paulo já deixou abundantemente claro"

 
A maldição continua: entre Lula e Bolsonaro, permanecemos presos ao passado, como um filme eternamente reprisado. Mas se pode haver um bolsonarismo sem Bolsonaro, poderia haver um lulismo sem Lula?
 
Não será preciso, é o próprio presidente que vai se candidatar novamente, e todas as projeções já o apontam como favorito. Até poiucos meses atrás, a carreira de Lula era vista como encerrada após o presente mandato. Quem ressuscitou Lula?
 
Foi o presidente norte-americano Donald Trump, com seus ataques ao Brasil e à Venezuela, o que permitiu a Lula reunir em torno de si um lampejo de fervor patriótico. Temos de volta o velho imperialismo americano combatido pelas esquerdas desde muitas décadas. Trump é um histrião, e a encenação bélica em torno da Venezuela dificilmente evoluirá para uma guerra real. Mas se esta guerra ocorrer, provavelmente nosso papel será fornecer asilo a Maduro, reforçando nosso rótulo de refúgio preferido por bandidos foragidos.
 
Atualmente, Bolsonaro e Lula são os esmaecidos rostos visíveis de duas correntes políticas anacrônicas que nos mantém presos ao passado. O próximo pleito será entre um bolsonarismo sem Bolsonaro, mas mantido por um mandatário bem saudável, contra um lulismo com um Lula já periclitante, com grande probabilidade de não terminar o mandato. Um embate entre a ideia e o carisma. Já sabemos que existe um bolsonarismo sem Bolsonaro, mas até agora nenhum petista conseguiu adquirir o carisma de Lula. Não parece viável um lulismo sem Lula. É de fato grande irresponsabilidade da parte de Lula candidatar-se novamente, pois não sabemos o que virá "no dia seguinte".
 
Mas o dia seguinte virá, inevitavelmente. Resta saber quando conseguiremos quebrar o ciclo Lulismo X Bolsonarismo, e finalmente andar para frente.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

De Novo o Velho Filme

O assunto da hora é a ameaça de Donald Trump à Venezuela, prontamente reagida com a convocação anunciada de 5 milhões de milicianos para defender o país. É claro que não vai haver guerra nenhuma. Meros três navios de guerra enviados pelos EUA não trazem um corpo expedicionário. E obviamente a Venezuela não tem condições de fornecer armamento e treinamento nem para 5% dos supostos 5 milhões convocados. Mas o teatro serve a ambos os protagonistas, pois tanto Donald Trump quanto Nicolas Maduro são parlapatões, e o truque de criar um inimigo externo para cooptar os inimigos internos é mais velho do que andar para frente.
 
De resto, não faz o menor sentido. Trump acusa Maduro de ser um traficante de drogas, mas mantém uma embaixada no país do suposto traficante, e autoriza a Chevron a operar ali. Mas o que tem me chamado a atenção desde o começo do imbroglio é a enxurrada de artigos, publicados até em veículos de mídia sérios, trazendo de volta uma retórica que parecia pertencer a décadas passadas. Os textos abundam de termos cunhados no século 19, época da Revolução Industrial e do Manifesto Comunista: "imperialismo", "colônia", "burguesia", "proletariado", "trabalhador", "camponês", parecendo folhas secas emergindo do fundo de um tanque onde se agitou a água.
 
Quem tem a minha idade com certeza já ouviu essa verborragia muitas vezes, repetida por pretensos intelectuais-militantes de classe média que nunca tiveram contato com operários ou camponeses, e enxergam o mundo pela óptica de modelos abstratos criados décadas atrás por pensadores socialistas, atualmente extintos no mundo desenvolvido. Acreditam piamente que ainda existem impérios coloniais, que Trump quer o petróleo da Venezuela, como se o petróleo da Venezuela já não estivesse no mercado global, e uma companhia norte-americana já não atuasse na Venezuela. O tempo, para eles, parece haver congelado naquela imagem passada por seus professores e líderes estudantis. Essa garotada até tentou fazer uma revolução brancaleônica décadas atrás, com grupos guerrilheiros compostos por não mais que poucas dezenas de militantes recrutados em ambientes urbanos, que se perderam naquele ambente rural do qual nada sabiam, que imaginavam povoados por massas de camponeses prontos a pegar em armas. Nada a ver com as FARC´s na Colômbia, grupo efetivamente formado por camponeses, que se contavam aos milhares e chegou a controlar boa parte do território do país.
 
Do sonho fuleiro fracasssado restou o palavreado que ainda povoa a retórica de inúmeros articulistas e intelectuais universitários. É tão inócuo quanto a guerra fingida de Trump e Maduro, mas escancara tristemente nossa incapacidade de assumir um papel no tempo histórico atual: parece que ainda estamos estacionados nos anos sessenta do século passado, repetindo chavões e palavras-de-ordem, presos a modelos abstratos criados na Europa de cem anos antes. De novo o velho filme.

domingo, 27 de julho de 2025

América Latina: Lado B

Estou lendo o livro América Latina: Lado B, de Ariel Palacios, onde o autor rememora inumeráveis episódios bizarros, lamentáveis e folclóricos que permearam a história de nosso continente. Não é uma obra de historiografia, mas não deixa de ter a utilidade de fazer pensar sobre o lado mórbido de nossa civilização. Mórbido é a palavra certa.
 
Mas fica a pergunta no ar: por que autor excluiu o Brasil de seu apanhado? Acaso também não temos um lado B?
 
Pode-se criticar, mas eu dou razão ao autor. Por mais coisas baixas e lastimáveis que tenham acontecido aqui, não, o Brasil não se nivela a nossos vizinhos hispânicos. Tivemos nossos ditadores, mas nenhum deles renomeou cidades com o seu nome em vida. Temos nossos corruptos, mas nenhum deles se tornou dono do país inteiro junto com sua família. Tivemos nossos episódios de violência política, mas o número de mortos e desaparecidos é bastante baixo se comparado a nossos vizinhos. Tivemos manifestações reprimidas a bala, mas nenhuma deixou o saldo de dezenas de mortos.
 
Temos nossos bandidos, mas eles não são bilionários, não dominam cidades inteiras nem vastas áreas rurais, como é comum nos países onde os criminosos controlam a produção e o roteamento de drogas para os principais mercados consumidores. Nossos bandidos dominam, no máximo, as favelas, e sua riqueza se expressa, no máximo, na construção de fortalezas no topo das favelas. Somos consumidores, e não produtores de drogas, e como rota somos secundários. A criminalidade derivada das drogas está concentada nos pontos de varejo, ou seja, nas favelas. Aqui soaria ridículo um mega-traficante oferecer-se para pagar a dívida externa do país, como aconteceu na Colômbia. Igualmente piada sem graça seria outro mega-traficante declarar que não pretende ser presidente do país, porque manda mais que o presidente. Quando El Chapo fez essa declaração no México, ninguém achou graça.
 
Basicamente, nossas baixarias carecem de uma morbidez que está presente em nossos vizinhos. Por que foi assim? Penso que tratou-se da consequência da maneira negociada com que foi obtida nossa independência, sem o trauma de uma longa guerra que naturalizou a violência política extrema na América Hispânica dominada por caudilhos. Historicamente, nós preferimos a negociação. Não sei se é a melhor teoria, mas é a que eu tenho.

domingo, 15 de junho de 2025

O Quintal de Trump


"Vamos retomar o o nosso quintal", declarou Peter Hesseth, secretário de defesa dos EUA, conforme citado nesse artigo. Obviamente está se referindo à América Latina, alegando que a influência da China tem crescido demais nessa região que os EUA sempre consideraram sua área de influência.

A comparação desperta alguns gatilhos nos brasileiros. Afinal, a imagem de "quintal dos EUA" sempre foi recorrente da parte de nacionalistas de esquerda para denunciar o pretenso imperialismo norte-americano e nossa suposta subserviência. Mas como bem diz o autor do artigo, o Brasil não cabe no quintal de ninguém. O Brasil nem é um dos alvos principais de Trump. Mas a forma que Trump tem agido é inquietante.

O presidente dos EUA já mostrou que não é um mero parlapatão, e está disposto a fazer o que disse que faria. É imprevisível, e dá sinais de desequilíbrio mental. Sua divisa é "Fazer a América grande novamente", sendo pressuposto de que a América "não é mais grande". De fato, os EUA não possuem mais o mesmo poder de tempos atrás. Mas sua figura caricata, até grotesca, é uma evidência de que os EUA estão se apequenando.

Trump parece estar disposto a ressuscitar o imperialismo à moda antiga, com sanções, ameaças, e por que não, intervenção militar. Mas seus arroubos já esbarram no entorno - as póprias leis do país, que tornam ilegais várias providências já tomadas por ele; oa aliados tradicionais, irracionalmente atacados; o povo nas ruas, em um paós onde os imigrantes perseguidos se contal aos milhões, e por fim, as leis impessoais da economia, que fatalmente resultarão em prejuízos devido à guerra tarifária e a insistência em trazer de volta ao país indústrias que atuam no exterior com maior vantagem.Diz o autor do artigo:

O imperialismo à moda antiga era às vezes mais sutil. Theodore Roosevelt, que foi presidente dos EUA de 1901 a 1909 e executou política externa nacionalista e agressiva, tinha como lema: “Speak softly and carry a big stick” (“Fale suavemente e carregue um grande porrete”). Já Trump “speaks loudly and carries a doubtful stick” (“fala alto e carrega um porrete duvidoso”).

O soft power dos EUA está sendo destruído rapidamente. De certa forma, Trump, que não acredita em hipocrisias, desnuda a face problemática de um país historicamente violento, marcado por fissuras internas de conflitos étnicos e raciais, e por fissuras exteranas de um sem-fim de guerras. Aqui no Brasil, tudo o que podemos fazer é assistir. Mas também é o melhor que podemos fazer. Se estamos entrando na órbita da China, devíamos ao menos adotar a divisa chinesa: trabalhe e esconda sua força.


domingo, 18 de maio de 2025

A Desindustrialização do Brasil

Quem nasceu sob os auspícios da Era Vargas, dos 50 anos em 5 de Kubitchek e do "Milagre" de Médici viu um claro ponto comum: todos diziam que o desenvolvimento significava a industrialização do país. Fazia todo o sentido na época, quando a expressão "país industrializado" era sinônimo de "país desenvolvido". Hoje a expressão já está um tanto gasta e fora de uso. Mas quem se acostumou com ela, por certo que vê com desalento o fato da participação da indústria no PIB do país estar encolhendo ano após ano.

Esse fenômeno, chamado desindustrialização, é abordado nesse vídeo, que procura defini-lo com precisão, levantar suas causas e consequências. Então o Brasil está se desindustrializando? Bem, se o setor industrial cresce, é a um ritmo bem menor do que os setores primário e de serviços, tanto que hoje representa 11% do PIB, sendo que chegou a um máximo de 25% nos anos 80. Contudo, o fenômeno não acontece só com o Brasil. No mundo inteiro, o setor industrial tem encolhido enquanto o setor de serviços aumenta sua participação. Na Alemanha, país altamente industrializado, a indústria responde por não mais que 23% do PIB.

Então, estamos voltando a ser um país rural concentrado na produção agrícola? Também não. As estatísticas mostram que o percentual da população dedicado ao trabalho na agricultura tem diminuído continuamente, ao mesmo tempo que a produção agrícola e de outras commodities só faz aumentar. O que prova que a tecnologia agregada a essas atividades primárias tem aumentado, já que a produção é maior com menos mão-de-obra envolvida. O que é bom e mau. Mais divisas de exportação, menos empregos.

Enfim, até a atividade primária pode fomentar o investimento tecnológico, como foi o caso da Embrapa. Mas como a matéria do vídeo deixa claro, o setor industrial continua sendo a grande matriz da inovação tecnológica, e o maior criador de empregos estáveis. Hoje a maior parte da força de trabalho brasileira está concentrada no setor de serviços, característica  que temos em comum com os países desenvolvidos. A diferença está na qualidade desses serviços: aqui a maioria trabalha em atividades informais e pouco qualificadas, como telemarketing, entregas e serviços domésticos, enquanto nos países desenvolvidos a maioria trabalha em serviços altamente qualificados. Mas mesmo que o setor terciário (serviços) seja hoje majoritário nos países ricos, não há nenhum exemplo de país rico que não tenha também uma indústria forte e diversificada. Não por acaso, pois foi o setor secundário (indústria) que produziu a tecnologia que hoje cria vagas no setor terciário.

O que foi que deu errado? Bem ou mal, o Brasil investiu na industrialização em vários governos. O contraexemplo são os países da Ásia, que também investiram na industrialização, e deram certo. Mas ao contrário do Brasil, esses países voltaram sua produção industrial para a exportação, disputando o mercado com os países industrializados antigos, enquanto aqui prevaleceu o protecionismo e a produção voltada para empresas estatais que estavam obrigadas a só adquirir produto nacional. Convém lembrar que o auge da participação da indústria no PIB coincidiu com o pior momento econômico de nossa história, a "década perdida" dos anos 80 em meio a moratória e hiperinflação. O que bem mostra como o modelo utilizado era enganoso.

Basicamente, a política industrial do Brasil fracassou porque rejeitou a globalização. Não quis disputar no mercado global, preferiu ficar em casa, em um modelo "soviético" centrado em bancos e empresas estatais. O único efeito de longo prazo que isso causou foi criar um séquito de empresários "amigos do rei" orbitando em torno de políticos. Para o empresário nacional, então, a fórmula do sucesso não é a excelência do produto nem o preço competitivo, mas a boa relação com os donos do poder.

E nem se fala mais em política industrial.

domingo, 27 de abril de 2025

Enterrando o Cadáver de 1964, ou de 1889

Jã havia comentado aqui antes: todo ano, por volta do fim de março, vê-se uma enxurrada de artigos comentando a revolução/golpe de 1964 como se ainda se tratasse de uma notícia fresca, dando claro sinal de que o assunto ainda não pertence à História, tampouco há uma versão definitiva a respeito. Mas esse ano foi diferente. Veja esse artigo de Leonardo Sakamoto, Com Generais Réus por Golpe, Brasil, enfim, pode enterrar o Cadáver de 1964.

"Quando o STF aceitou a denúncia contra três generais e um almirante por articular uma tentativa de golpe em 1964, ele pode ter ajudado a colocar um fim no 31 de março de 1964 (...) O ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, general Walter Braga Netto, o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, o ex-ministro da Defesa general Paulo Sérgio Nogueira e o ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier estavam na primeira leva de denunciados que se tornaram réus por golpe"

Não concordo com tudo o que Sakamoto escreveu. Mas penso que se um cadáver foi enterrado, não foi o de 1964, mas o de 1889.

Durante anos festejamos a proclamação da república em 1889, esquecidos de que estávamos comemorando o primeiro golpe militar da história do país. Em 15 de novembro de 1889, um brasileiro que tivesse 40 anos de idade poderia afirmar que jamais vira um golpe de estado, nem uma revolução, nem uma guerra civil, nem outra constituição além daquela da monarquia, então a segunda mais antiga do globo, atrás apenas da americana. Tivemos que esperar até o século 21 para que um brasileiro da mesma idade pudesse dizer o mesmo.

Desde então, construiu-se o mito dos militares como reserva moral e garantidores da ordem e da segurança interna, que cristalizou-se como a figura de um suposto Poder Moderador, antes exercido pelo imperador que foi por eles deposto. Os acontecimentos não confirmaram essa assertiva: a "república da espada", comandada pelos dois primeiros marechais-presidentes, foi uma época de total caos político e econômico, revolução e guerra civil, fazendo chocante contraste com a ordem e a estabilidade reinantes no Segundo Império. Por toda a história republicana do século 20, militares conspiraram incessantemente contra vários governos, espalhando a instabildade e alimentando ambições.

Contudo, permaneceu a crença de que a presença dos militares na política seria essencial a uma etapa necessária para garantir a preservação da ordem política e do desenvolvimento, impedindo a desintegração do país em lutas internas. A perspectiva histórica desmente essa visão. Nenhum pais hoje desenvolvido passou por uma fase de governos militares, exceto o Japão, cujo período militarista culminou no desastre da segunda guerra. Ao contrário, olhando a nossa vizinhança, vê-se que a presença de militares nos governos, longe de ser uma garantia contra a desintegração, era de fato um sintoma dessa desintegração. O Brasil, durante o século 19, permaneceu íntegro com um sistema político estável que funcionava e evoluía em direção a um regime parlamentar. Nossos vizinhos tentaram imitar o republicanismo norte-americano sem ter a base social para isso, enquanto herdamos intactas instituições da antiga monarquia portuguesa, que justamente por serem compatíveis com nossa base social, tinham muito mais possibilidade de evolução - o que vinha acontecendo. Mas em 1889 essa herança foi dilapidada.

Não admira que todos os nossos heróis militares datem do século 19, época em que os militares estavam longe da política. É certo que vários personagens tiveram carreiras paralelas entre o exército e a política, a começar pelo próprio Duque de Caxias - mas eram homens do governo junto ao exército, e não homens do exército junto ao governo. Por este motivo mesmo, foram deprezados pelos golpistas republicanos, e Caxias só seria feito patrono do exército muitas décadas depois.

Se não temos mais guerras que possam gerar heróis militares, que ao menos os militares sejam reduzidos à disciplina e ao cumprimento de suas obrigações.

domingo, 13 de abril de 2025

América e China

América e China era o nome de uma loja na minha infância, que vendia coisas interessantes e diferentes, que não se achava em outro lugar. Creio que o nome sugeria essa vastidão que podia abarcar polos tão diferentes. Mas agora o nome bem sugere o panorama global, dominado pela América de Trump e sua guerra comercial contra a China.

No meu tempo, a polarização era entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética, ditas superpotências. O Brasil era a potência ascendente, assim como a China. Mas tudo mudou. A União Soviética fracassou como superpotência, e foi rebaixada a membro dos BRIC's, mera potência ascendente. A China surpreendeu. O Brasil é o país do futuro, e... continua sendo. Na verdade, ninguém nem fala mais nisso. Nos anos cinquenta tínhamos a utopia dos 50 anos em 5 de JK. Nos anos sessenta a garotada rebelde tinha a utopia socialista da revolução cubana. Nos anos setenta havia a utopia do Brasil Grande dos militares. Hoje não há mais utopias.

Por que a China triunfou, e o Brasil fracassou? Ou será que foi isso mesmo? Comparando Brasil e China, o território é mais ou menos do mesmo tamanho, o que já basta para sinalizar uma futura potência. Mas a China tem um bilhão e quatrocentos mil habitantes, enquanto o Brasil tem duzentos e doze mil. As rendas per capita do Brasil e da China são quase as mesmas, US$ 20.667 e US$ 20.885 respectivamente. Mas o PIB bruto da China é US$ 29,375 trilhão, enquanto o do Brasil é US$ 4,101 trilhão. Isso significa que a população chinesa vive mais ao menos como a brasileira, entre áreas ricas e pobres. Mas se a China necessita de alguns bilhões para desenvolver um novo avião de caça, ou para uma missão espacial, ela tem.

Então, não há tanta semelhança entre Brasil e China, em termos de números. E de política? A China é comunista, e o Brasil é capitalista. A China tem desfrutado de um quadro político estável, que permite rígida aplicação de planos de longo prazo. Nem todo plano de longo prazo necessariamente dá certo, mas o da China aparentemente deu certo. Nosso quadro político teve numerosas guinadas nos últimos 70 anos, mas nosso modelo econômico permaneceu mais ou menos o mesmo entre os anos 30 e 80, o desenvolvimentismo nacional-estatista, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitchek, Castelo Branco). Esse modelo esgotou-se nos anos 80, mesma época em que a China deslanchou. Hoje vemos nossa falha com nitidez: nosso desenvolvimento industrial era voltado para o Estado, e não para o mercado. As empresas nacionais produziam computadores caros para vender a empresas estatais que estavam obrigadas a comprar produtos nacionais.

Ironicamente, então, o Brasil capitalista praticou um modelo soviético, que fracassou, enquanto a China comunista valeu-se de um modelo capitalista, ao menos em certos nichos.O princípio foi: toda liberdade ao capital, nenhuma ao indivíduo. E deu certo.

Mas não adianta julgar. O trem da História passou, e ficamos na estação. O mundo pertence a América e China, e somos espectadores. Sem utopias.

domingo, 30 de março de 2025

Gerando uma classe média que não paga impostos

Tem sido muito comentado o plano do governo Lula de isentar 10 milhões de contribuintes que ganham até 5 mul por mês. A perda de arrecadação seria supostamente compensada pelo aumento de impostos sobre a reduzida parcela da população que ganha mais de 50 mil por mês. Alguns acusam a medida de eleitoreira, já que a popularidade de Lula está em queda, outros põem em dúvida a matemática empregada e temem o impacto sobre s contas públicas. Não vou entrar neste mérito. O que me chamou mais atenção foi uma frase dita por Lula para fundamentar seus propósitos:
 
"A gente vai criando benefícios até que o Brasil se transforme em país de classe média"
 
Então, a fórmula para gerar um país de classe média é criar benefícios?
 
A frase, bem como o projeto de isenção de IR, têm tudo a ver com o que Lula entende como o papel de um governo. É verdade que os países onde a classe média é majoritária são países ricos que concedem muitos benefícios à população. Mas não foram esses benefícios que geraram a classe média, eles são a consequência, e não a causa. A classe média nos países de primeiro mundo vem sendo gerada desde a revolução industrial, com o crescimento da economia - os benefícios são mais para as classes trabalhadoras.
 
Na visão de Lula, entretanto, a geração de uma classe média não tem nada a ver com o crescimento da economia - supostamente, os recursos já existem, estão só mal distribuídos. Tudo o que é necessário fazer é tirar dos ricos e dar aos pobres, conforme a proposta de isentar de tributação aqueles que Lula entende como sendo a classe média.
 
Mas classe média não pode ser definida econometricamente. Uns dirão que são aqueles que ganham acima de X, outro que são os que ganham acima de Y. A classe média é um conceito psicossocial - trata-se do conjunto de indivíduos que consideram satisfatório seu padrão de vida, e desejam reproduzi-lo na geração seguite. Portanto, a classe média molda o rosto e a cultura de seu país, e por conseguinte, tem interesse em vigiar a forma como é governado. Isso porque aqueles que governam o país, fazem-no com a receita de impostos que em sua maioria é paga pela classe média.
 
Isentar de impostos uma fatia da população é alienar aquele conjunto de indivíduos de qualquer interesse quanto à gestão financeira do Estado. Afinal, quem liga para saber como é gasto um dinheiro que não saiu de seu bolso? Assim sacramenta-se a visão do Estado como figura paternal que tira dos ricos para dar aos pobres, ao invés de síndico de uma receita provida pela população. Pagar impostos é essencial para a educação política do cidadão. Não que o pobre deixe de pagar imposto se for isento do IR - ele continua pagando aquelesque estão embutidos no custo das mercadorias. Mas esses não são sentidos, e portanto não têm valor didático.
 
A falta dessa educação política proporcionada pela obrigatorieadade dos impostos é a explicação do porquê tantos políticos condenados por corrupção são reeleitos pelos mesmos eleitores pobres. Afinal, o candidato não roubou a eles, pois o dinheiro roubado não veio do bolso deles. Mas talvez a intenção seja essa mesmo.
 
Isentar de impostos não produz um país de classe édia, mas um país de eleitores que não se importam com a corrupão dos políticos.

domingo, 16 de março de 2025

O Fim de Lula

O governo Lula está com a aprovação em declínio. O próprio Lula está com a saúde em declínio, devido ao avanço da idade. Não deveremos vê-lo em um novo mandato. Mas esse seria o fim da Era Lula?

Primeiro, é preciso questionar se uma Era Lula realmente existiu. A presença de Lula na política, e não somente no poder, foi fracionada e teve um perfil diferente a cada época. Não se distingue um rumo único e preciso, e ele próprio sempre pareceu mais preocupado em construir sua própria imagem do que ao país. Começou como um líder sindical carismático, diferente de todos surgidos antes, que parecia nutrir um certo desprezo pelos políticos, mesmo os de esquerda. Depois entrou na política e tornou-se o deputado federal mais votado, mas raro comparecia às sessões e não apresentou um único projeto importante. Deixou claro que o único cargo público que o interessava era o de presidente da república, e passou a tentar a cada eleição, sendo sempre derrotado, sem contudo desmoralizar-se nem tampouco ser eclipsado por outro candidato de seu partido.

Por fim obteve sua primeira vitória após mudar radicalmente sua imagem, abandonando os preceitos marxistas ultrapassados e mostrando-se disposto a se aliar àqueles que antes combatia raivosamente - o Lulinha Paz e Amor, uma versão atenuada e populista do Lula antigo. Em seus dois mandatos, implementou uma espécie de getulismo tardio, reavivando alguns dos antigos ditames do desenvolvimentismo e do trabalhismo getulista, o que foi possivel devido à conjuntura econômica favorável. Esquivou-se habilidosamente do Escândalo do Mensalão, preservou sua imagem e conseguiu fazer sua sucessora.

Depois, a queda. Abatido por outros escândalos, viu sua sucessora sofrer impedimento e terminou ele próprio na cadeia. Mas não estava acabado. Renascido das cinzas, venceu nova eleição e tornou-se mais uma vez o presidente, e mais uma vez desfrutou de resultados favoráveis na economia, com queda no desemprego e crescimento do PIB. Mas tal como ocorreu em seu período anterior, os bons momentos são sucedidos por desajustes. Como bem comentou na ocasião Arnaldo Jabor, Lula aproveitou o bom momento na economia para fingir que governou. A bomba estourou na mão de sua sucessora, e agora ameaça estourar em sua própria mão.

Nunca houve um projeto político e econômico claro de Lula, apenas conjunturas temporárias habilidosamente aproveitadas. Mas figura que permaneceu tantas vezes à frente do imaginário coletivo e do próprio país, onde ainda se encontra, merece ser analisada. Se não é um projeto, o que tem mantido Lula tão presente, muito mais do que qualquer outro líder de sua geração? É preciso analisar com cuidado seu perfil. Encontrei essa síntese, que me pareceu bastante interessante:

"Lula não é apenas uma pessoa, ou um cidadão comum que seja temporariamente político, ou “que está político”. Não. Lula é a personificação de um político. Ele mede tudo segundo o capital político ganho ou perdido.

Não existe povo.

Não existe partido.

Não existe nada além de poder, de influência e de ganhos e perdas políticas, que servem para aumentar ou para diminuir poder e influência.

Digo-o especialmente no caso de Lula, porque é o que se observa de seu comportamento constante ao longo dos anos.

Não deixou de fazer campanha nem quando estava preso. Não deixou de fazer campanha e dar pronunciamentos políticos nem no enterro de sua esposa, D. Maria, nem no velório de seu neto.

Ganhos e perdas políticas (...) e isto pode mudar de um dia para o outro"

Longe do personagem que criou, quem o conheceu na intimidade descreve-o como grosseiro, arrogante, narcisista, sem qualquer preocupação de ser agradável ou de estar ofendendo seu interlocutor. Sua personalidade reúne os atributos mais toscos e primitivos do brasileiro de pouca cultura, destacando-se o machismo, o compadrio, o paternalismo, a malandragem. Lula é um perfeito Macunaíma. Mas é óbvio que seu carisma deriva justamente destes atributos, pois criam um poderoso senso de identificação com o tosc brasleiro comum do povo. Lula nunca procurou educar-se ou adquirir hábitos mais polidos porque tal destruiria o personagem por ele criado.

Avalie-se como quiser sua atuação política e os benefícios e malefícios que legou à população, não se pode furtar a reconhecer que Lula merece a memória que lhe será prestada, pois soube como poucos encarnar as poucas qualidades e os muitos defeitos dos brasileiros de sua geração.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

A Garotinha Alemã e o Menino Brasileiro

Recentemente causou discussão um vídeo mostrando um livro didático alemão para crianças, que exibe em uma página dois exemplos: uma garotinha alemã, aí de uns oito anos, que estuda na escola, faz aula de guitarra depois da classe, e quer ser professora quando crescer; e um menino brasileiro da mesma idade, que não estuda, passa os dias catando comida no lixo e quer ser jogador de futebol quando crescer. Brasileiros que vivem na Alemanha se queixaram que seus filhos foram alvo de zombaria de seus coleguinhas, que até lhes trouxeram comida para caçoar deles.

Normalmente eu não deveria dar importância a um caso assim, mas tem tudo a ver com o momento atual, aliás não apenas na Alemanha.

Até acredito que a intenção dos autores fosse atrair a simpatia das crianças alemãs para os brasileiros pobres, vítimas de graves problema sociais. Mas se o resultado foi atrair o desprezo e o deboche, então esse objetivo não foi atingido. E o motivo fica claro na forma como o assunto foi abordado, estabelecendo um paralelismo: a menina alemã é estudiosa, emprega o seu tempo em coisas úteis e tem propósitos edificantes para o futuro; o menino brasileiro não estuda, prefere catar comida no lixo a trabalhar, e quer ser jogador de futebol. A mensagem sub-reptícia, nada sutil, é que o menino brasileiro é pobre porque é vagabundo.

Os comentários dos brasileiros ao vídeo dividiram-se entre a indignação e a aceitação patética: "é assim mesmo, aquilo existe, os brasileiros estão catando comida no lixo".

Sim, gente fuçando lixo no Brasil existe realmente. Adultos e crianças. A única incorreção é que não catam comida, pois dificilmente encontrariam algo ainda aproveitável em meio ao lixo, mas sim procuram materiais recicláveis para vender. Contudo, se não há dúvida de que isso existe, fica a dúvida se alardear isso para o estrangeiro contribui de alguma maneira para resolver o problema. Muita gente acha isso edificante, tipo fazer uma grave denúncia e revelar ao mundo nossa miséria, como se o mundo a ignorasse, ou talvez apenas experimentem aplacar o sentimento de culpa ao bater no peito. Mas a reação das crianças alemãs escancara bem que tipo de sentimento essa visão induz ao estrangeiro. Se eles se chocassem com a pobreza alheia, não pagariam para fazer tours em nossas favelas.

Esse afã de expor nossa miséria ao estrangeiro é comum sobretudo ao pessoal de esquerda, inclusive nosso presidente, que já chegou a exibir estatísticas afirmando que 37% dos brasileiros passam fome. Querem aforntar as elites, ou talvez cutucar os imperalistas dando a entender que eles têm culpa disto. Fariam melhor se estudassem com mais cuidado o fenômeno do imperialismo no século 19: as potências procuravam retratar os povos colonizados como miseráveis, ignorantes e irresponsáveis, a fim de justificar moralmente sua dominação. Acredito que esse sentimento ainda habita muitos europeus comuns nos dias de hoje.

Com o ar envenenado por antagonismo, racismo e xenofobia em um mundo onde é crescente a tensão contra imigrantes, decididamente não é a hora certa de abordar esses assuntos para crianças.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Deportando Imigrantes

O assunto após a posse de Donald Trump é a deportação de imigrantes ilegais, com direito a imagens de deportados desembarcando algemados em aeroportos brasileiros, relatando maus tratos sofridos. Os clamores variaram de "Aquilo é um atentado aos direitos humanos" até "Eles não são criminosos para serem algemados". Mas aí entramos em um terreno de subjetividade. É incorreto colocar algemas em deportados? Mas tem sido assim desde sempre, inclusive no Brasil, a diferença é que agora há imagens e atenção. Algemas são apenas para criminosos? Bem, tecnicamente, um imigrante ilegal cometeu um crime, pois cruzou a fronteira sem estar autorizado a fazê-lo.
 
Mais proveitoso do que discutir essas questões, é conceituar de maneira isenta o problema da imigração ilegal. Que na verdade não é um problema, mas uma característica indelével do mundo moderno - historicamente, fluxos migratórios são fenômenos persistentes, e não o resultado de crises ocasionais. Só podem ser entendidos à luz da ciência econômica, a Lei da Oferta e da Procura. Alguém quer dar emprego àqueles imigrantes. A situação geral do terceiro mundo, hoje, não é pior do que era a trinta ou cinquenta anos atrás, foi o primeiro mundo que mudou - antes, havia oferta de mão-de-obra local para as ocupações hoje dadas a imigrantes, agora esta oferta desapareceu. A engrenagem-mor deste processo é a transição demográfica, que fez cair o número de nascimentos e escasseou a oferta de mão-de-obra para trabalhos menos especializados, que tradicionalmente são feitos pelos mais jovens e menos experientes. Os imigrantes vem ocupar esses nichos.
 
Mas quem são, afinal, esses imigrantes?
 
A princípio, indivíduos pobres, perseguidos políticos ou fugitivos da violência. Mas os imigrantes oriundos do Brasil parecem ter um perfil diferente, a julgar por este artigo. A entrevistada não é pobre, é formada em administração e largou um emprego em uma multinacional. Sei de brasileiros que pagaram a contrabandistas até cem mil reais, quantia suficiente para inicar um pequeno negócio no Brasil. Entendo que os imigrantes brasileiros tenham um nível sócio-econômico mais alto que os centro-americanos, pois estão bem distantes da fonteira dos EUA e têm que pagar muito mais. Mas se continuam a fazer isso, então é preciso concluir que o que recebem compensa o que pagam - há muita gente ali interessada em lhes dar emprego, como o patrão trumpista da entrevistada.
 
Mas se a imigração é fenômeno antigo nos EUA, as coisas não são mais como antes. É digno de nota que a entrevistada, embora afirme trabalhar na área financeira, não deixa de fazer serviços de babá. Nos tempos da Estátua da Liberdade, os imigrantes subiam rapidamente e se integravam à sociedade. A diferença vem do fato da atual imigração ter como motor a transição demográfica, que ao mesmo tempo que encurta a oferta local de mão-de-obra pouco qualificada, aumenta a presença de indivíduos mais idosos e já estabelecidos no mercado - as vagas para esses empregos de mão-de-obra bem qualificada continuarão exclusivas para os americanos de velha cepa. A consequência é a formação de um vasto setor da população descendente de imigrantes que permanecem não integrados, dando origem a tensões sociais.
 
O atual fenômeno migratório só pode ser compreendido se abordado pelos prismas econômico e demográfico. Se os norte-americanos quisessem mesmo se livrar dos imigrantes, bastaria que começassem a lavar pratos em lanchonetes, recolher lixo, fazer faxinas e cuidar de crianças. Então não seria necessário deportar os estrangeiros, eles iriam embora por conta própria por não terem emprego.

domingo, 19 de janeiro de 2025

A Cultura Woke foi um tiro no pé da esquerda?

Descobri essa indagação interessante em um vídeo. Explicando, cultura woke refere-se a uma percepção e consciência das questões relativas à justiça social e racial, sugerindo uma postura militante a esse respeito. O termo deriva da expressão de inglês afro-americano "stay woke" (fique desperto) e nos últimos anos tem se aplicado amplamente a políticas identitárias, causas sociais liberais, feminismo, ativismo LGBT e questões culturais, causas quase obrigatoriamente abraçadas pela esquerda.  Mas a evolução da militância woke tem tido desdobramentos imprevistos, conforme relatado:

"As últimas décadas foram de nítido avanço na luta contra o preconceito e a desigualdade. Em todo o mundo, as minorias - um leque que abrange negros, mulheres, imigrantes, homossexuais e pessoas trans - se beneficiaram de uma ampla e saudável revisão de julgamentos pela sociedade, que resultou na aprovação de leis garantindo seus direitos e punindo quem não os respeitasse. Assim caminhou a humanidade, com mais tolerância e aceitação, até a grita ultraconservadora ganhar força e um fosso se abrir entre ela e a banda mais progressista. A acentuada radicalização que se seguiu pegou em cheio os ventos da mudança social, permitindo que um grupo de zelotes tomasse a si a função de estender a teia de inclusão a limites extremos, atirando pedras para todo o lado e recorrendo às redes para sumariamente cancelar todo e qualquer suspeito de discriminação - uma cruzada furiosa a que deram o nome woke. Tanto provocaram e exageraram que o woke, depois de um pico de influência, entrou em acelerado declínio - fazendo ressurgir, infelizmente, o impulso para realimentar séculos de injustiças"

Neste quadro, os partidos de esquerda agora têm dúvidas sobre se foi mesmo um bom negócio adotar tal agenda de forma tão incondicional. Não deixa de ser o sinal de um desgaste mais amplo da esquerda - a substituição de uma agenda política por uma agenda cultural. No Brasil, o Partido dos Trabalhadores foi quem mais abraçou essa nova linha de ação. Voltando um pouco no tempo, tudo começou com o Politicamente Correto, e frutificou com o chamado Marxismo Cultural, muito em voga no primeiro govverno do PT, quando foi amplamente reverberado por militantes e ONG´s apoiadas por este partido.

No entanto, a adoção do Marxismo Cultural foi responsável por um fenômeno até certo ponto surpreendente, e indiscutivelmente ruinoso para a esquerda - o afastamento de amplo público das periferias, que passou a aproximar-se de líderes religiosos vinculados a partidos de direita. Isso aconteceu porque aquela população viu seus valores tradicionais vilipendiados pelo discurso dito progressista, mas que não representava seus anseios, ao passo que os pastores forneciam um discurso que fazia sentido conforme as crenças e valores daquelas pessoas.

Um erro de pontaria tão crasso necessita de uma explicação, e a explicação é uma só: a idealização feita pelos intelectuais militantes sobre aquilo que o povão é, ou deveria ser. Esses intelectuais militantes vieram quase todos da classe média e do meio estudantil universitário, e nunca conviveram com a população pobre. O povo das periferias é basicamente conservador, não compreende conceitos sociológicos complicados, no lugar destes prefere assimilar a mensagem dos religiosos, para a qual basta crer. Aquilo que mais aflige o povo das periferias, como criminosos e drogas, é justamente aquilo que os intelectuais militantes mais defendem. Não admira que esse segmento da população tenha pendido em massa para a direita, que promete endurecer contra o crime e a imoralidade.

A esquerda agora precisa fazer o caminho de volta, de uma agenda cultural para uma agenda política.