sábado, 6 de maio de 2023

O Linha Direta e a "bandidolatria nacional"

Vi com satisfação o retorno do programa Linha Direta à grade da TV Globo, de onde estava ausente desde 2007. Até então, o programa veiculava casos policiais em aberto, e exibia o retrato dos criminosos foragidos. A despeito de sua enorme popularidade, foi descontinuado, e chegou-se a comentar que a Globo estaria recebendo ameaças dos criminosos denunciados. Outros afirmaram que o programa estava sendo criticado por supostamente glamurizar o crime. Sinceramente, não notei essa glamurização nos episódios que assisti, mas o fato do programa haver proporcionado a prisão de mais de 400 criminosos graças a suas denúncias, a meu ver dispensa qualquer outro argumento e justifica de pleno a sua manutenção.

O episódio para a reestréia foi bem escolhido: tratou-se do Caso Eloá, extremamente emblemático. Como se sabe, refere-se a um sequestro com cárcere privado ocorrido em 2008, quando um homem inconformado com o fim de uma relação, Lindemberg Alves Fernandes, invadiu o apartamento da ex-namorada, Eloá Cristina Pimentel, e ali manteve ela e uma colega como reféns por nada menos que cinco dias, terminando por matá-la e ferindo a colega antes de ser preso quando a polícia invadiu o apartamento.

Não foi a primeira vez que uma coisa assim aconteceu, nem seria a última, mas o episódio notabilizou-se pela maneira absurda com que foi tratado pela polícia e pela midia, chegando a tornar-se um grotesco reality show, com seu ponto máximo na reentrega da refém colega de Eloá dois dias após haver sido libertada.

Nos cinco dias que durou o show, o sequestrador foi tratado com todo o beneplácido pela polícia, que atendeu a todas as suas exigências, inclusive enviando mantimentos para que pudesse manter o cárcere privado indefinidamente. Quando ele afirmou que só se entregaria se Nayara, a colega de Eloá, estivesse presente, a polícia foi buscá-la com a finalidade de "ajudar nas negociações", e o sequestrador só teve o trabalho de puxá-la pelo braço para trazê-la de volta ao apartamento. Quando por fim a polícia decidiu invadir, os preparativos foram tão descuidados que o sequestrador teve tempo de armar uma barricada junto à porta, o que atrasou a entrada dos policiais por tempo suficiente para que ele atirasse nas vítimas.

Por que tanta incúria? Por que a polícia não agiu antes? Naqueles cinco dias, o sequetrador apareceu inímeras vezes à janela, podendo ser alvo de um atirador de elite. E com certeza ele precisava de tanto em tanto dormir, comer e até ir ao banheiro. Em suma, não faltaram ocasiões oportunas para a policia invadir. Mas nada aconteceu. Um boato não confirmado dá conta de que o governador Alkmin havia proibido terminantemente a polícia de matar o sequestrador, pois era época de eleição e não queria se prejudicar. A meu ver, a melhor explicação pode ser extraída deste comentário do coronel Eduardo Félix, então comandante do Batalhão de Choque da Polícia Militar:

"Nós poderíamos ter matado, ter dado o tiro, mas é um garoto de 22 anos de idade, sem antecedentes criminais e com uma crise amorosa. Se nós tivéssemos atingido o Lindemberg, fatalmente os senhores [jornalistas] estariam questionando o GATE sobre por que não negociaram mais"

 Uma leitura apressada passa a impressão de que o comentarista estaria imbuído de sólidos escrúpulos quanto aos direitos humanos do delinquente. Mas realmente preocupa-se com direitos humanos alguém que denomina "crise amorosa" o terror que o criminoso infligiu às vítimas?

O que se vê, de fato, é uma sólida empatia para com o criminoso, cujas atitudes são contempladas com compreensão, concomitante a um enorme desprezo pelo sofrimento da vítima. Não é a opinião isolada do coronel Eduardo Félix: coisa expressa com tanta convicção está por certo impressa na mente da população desde muitas gerações atrás, e trata-se de uma espécie de doença mental coletiva que eu denomino bandidolatria. Que ninguém ache estranho: não é este o pais onde o cangaceiro Lampião é considerado herói popular? A bandidolatria é basicamente a empatia para com o delinquente, cujos atos são justificados por alguma lógica. Sua causa mais primal é um sentimento de falta de autoridade moral para condenar o criminoso, que assim pode fazer sua própria justiça. Sua consequência última é a alta criminalidade consoante à extrema brandura da legislação penal. Difícil é condenar o delinquente. Facílimo é libertá-lo por meio de incontáveis benefícios para se relaxar a prisão.

O Linha Direta promete abordar o caso Letícia Tanzi, ainda mais emblemático da fraqueza da legislação penal brasileira. Não tenho estômago para falar dele aqui no momento. Quem quiser, procure no Google.

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