quinta-feira, 27 de novembro de 2025

A Industrialização Travada no Brasil

Quem tem a minha idade sabe que o Brasil já foi o país do futuro. Junto com a China. A palavra mágica era industrialização. Usava-se a designação "país industrializado" como sinônimo de "país desenvolvido", e parecia fazer sentido.

Mas se o futuro da China virou presente, nós continuamos no passado. Apesar de vários planos, nossa industrialização sempre trava, e por vezes, até regride. O percentual da indústria no PIB segue em declínio à medida em que o agronegócio rende divisas cada vez maiores. Fica a impressão de que o Brasil entrou em um severo ciclo de desindustrialização antes de se tornar plenamente industrializado. Esse vídeo mostra um discurso da falecida economista Maria da Conceição Tavares procurando explicar porque a nossa industrialização sempre trava. Parra ela, o problema é estrutural:

"O país nunca conseguiu articular, ao mesmo tempo, forças produtivas, tecnologia, trabalho e financiamento. Sem essa integração, não há ciclo endógeno de desenvolvimento nem autonomia para avançar no sistema econômico internacional. [A industrialização] exige um ciclo longo, articulado e contínuo, que é interrompido pelo financiamento externo e pela incapacidade de combinar progresso técnico, organização produtiva e estrutura financeira"

Trocando em miíudos, faltou um dirigismo mais abrangente da parte do Estado. Mas voltando os olhos ao passado, eu noto que só houve um esforço consistente para a industrialização do país até o fim do século 19, quando aportaram aqui imigrantes empreendedores que criaram indústrias sem apoio nenhum do Estado. Depois que o Estado tomou para si a tarefa de fomentar a industrialização, caímos nos "ciclos incompletos", simplesmente porque os empresários aprenderam a depender do Estado, e não de si próprios. Acabava o fomento e o protecionismo do Estado, voltava-se à estaca zero. Foi assim com a reserva de mercado para a informática. Foi assim com a fábrica Gurgel, que só subsistiu enquanto as importações eram proibidas. Gurgel fez um carro popular genuinamente brasileiro? Muito bem! Mas então, por que Gurgel não deu o passo seguinte, e desenvolveu um veículo básico com carroceria metálica e motor de 4 cilindros, apto a competir com os básicos das multinacionais? Ninguém responde.

 Então, para o empresário nacional, a fórmula do sucesso não é a qualidade do produto nem o bom preço, mas sim as boas relações com os homens da política. Aquele esquema: empresas nacionais produzindo para empresas estatais obrigadas a só comprar produto nacional. Isso é o mesmo que tirar dinheiro do bolso esquerdo e colocar no bolso direito. Como todo dono de botequim sabe, o que o enriquece é o dinheiro que sai do bolso do freguês e entra no dele. Em outras palavras, produzir para o mercado e ser competitivo.

Mas também fica a dúvida se nessa altura da história, a industrialização ainda vale a pena. Afinal, muitos países industrializados do passado têm passado por um processo de "desindustrialização" à medida em que o setor terciário (serviços) cresce e substitui o setor secundário (indústria). Esse fenômeno tem se verificado no Brasil também. Mas apesar de nosso PIB ter sua porção majoritária no setor primário (agricultura), isso não significa que a agricultura absorve a maior parte da mão-de-obra. Ao contrário, a população nos campos tem diminuído ano após ano. É fato que nossa agricultura tem se modernizado e crescido consistentemente em produtividade, o que não se faz sem tecnologia. É também significativo que o percentual da indústria no PIB tenha atingido seu índice máximo lá pelos meados dos anos 80, que como se sabe, foi o pior momento de nossa economia, com recessão e hiperinflação. Atualmente, a própria designação "país industrializado" como sinônimo de "país desenvolvido" parece um tanto gasta.

Penso eu, se perdemos o trem da História, resta procurar outra condução. Melhor do que ficar para sempre procurando explicações para nossa industrialização travada.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

A Controversa Mega-Operação no Rio

A grande surpresa da semana foi a mega-operação levada a cabo pela polícia do estado do Rio de Janeiro, que contabilizou mais de centena de mortos, causando estupor, admiração e teorias conspiratórias, como a de que teria sido um ato eleitoreiro do governador, uma manobra para salvar Bolsonaro, ou até um pretexto para uma intervenção de Trump no país. Não faltaram condenações indignadas, mas no geral, os comentários suscitados apenas agitaram e fizeram emergir as folhas e detritos do fundo de um lago onde repousam numerosos equívocos.

De cara, o enorme número de vítimas - apenas quatro policiais - escancara o enorme número de membros de organizações criminosas que atuam nas favelas. Se dezenas morreram, então havia centenas. O enorme número de fuzis apreendidos (e quantos mais continuam escondidos?) bem como o uso até de drones da parte dos criminosos escancara a capacidade bélica das quadrilhas, e não deixa dúvidas de que tal poder paralelo só pode ser combatido mediante uma ação militar. Mas os argumentos que se ouviram foram os de sempre.

A polícia chegou atirando? Mas todos sabem que a polícia é recebida à bala quando sobe o morro, pois não falta armamento aos criminosos. A polícia perpretou uma chacina? Pode-se achar escandaloso que as baixas da polícia tenham sido apenas quatro para mais de centena de criminosos. Mas é a lógica cabal. Os criminosos adquirem armamento sofisticado de contrabandistas, mas não têm treino adequado, muitas vezes não sabem nem segurar o fuzil. Se vão enfrentar soldados que sabem usar a arma, o resultado não pode ser outro, e aí os bandidos veem (tarde demais) que combater uma guerra de verdade não e o mesmo que posar para fotos segurando um fuzil.

Outra discussão recorrente é se as quadrilhas de traficantes constituem organizações terroristas, conforme a definição "narcoterrorismo" cunhada por Trump e repetida pelo governador, o que legitimaria a maneira como sã conbatidas. Já se tornou lugar-comum chamar as favelas de Zona de Guerra. Mas embora sejam usadas armas de guerra, a natureza do conflito não é a de uma guerra. Os bandidos não têm bandeira, nem rosto visível; não estão defendendo nenhuma demanda nacional, territorial ou ideológica; estão a serviço apenas de seus interesses particulares escusos. Não se trata de exércitos em guerra, mas de bandidos muito bem armados. Por outro lado, se a definição de "terrorista" é pertinente, a discussão não é tão simples. Terroristas são conceituados pelo modo como agem, não por suas demandas. Se o objetivo é dominar mediante a tática de aterrorizar a população, o rótulo é correto, pois é perfeitamente sabido o que as quadrilhas fazem para intimidar os moradores e forçar seu silêncio.

A maioria dos equívocos, contudo, deriva do vicio de abordar o fenômeno da criminalidade sob uma leitura de luta de classes marxista. Bradam: os lideres das quadrilhas não estão nas favelas. Por que a policia não os procura na Faria Lima?

Ocorre que os líderes das quadrilhas não estão na Faria Lima, Isso é lenda. Os chefões do tráfico estão na favela mesmo, conforme ficou bem visível poucos anos atrás, quando foi flagrado Fernandinho Beira-Mar na Colômbia negociando diretamente com os fornecedores. O crime tem que ser combatido pelo topo, bradam. Quem diz isso não conhece a dinâmica do crime, onde a queda de um chefe provoca de imediato uma reorganização nas bases e o surgimento de novos chefes ou novas quadrilhas para ocupar o espaço deixado. O crime só pode ser combatido pela base, favela a favela.

Não adianta combater nas favelas, dizem, é preciso evitar que as drogas entrem no país, vigiando as fronteiras. É uma sugestão ideal para quem não quer resolver o problema. Nossas fronteiras são vastíssimas e despovoadas. Se nem os EUA conseguem evitar a entrada de drogas por sua fronteira ultra fortificada, como podemos nós? No Brasil, país consumidor de drogas (e não produtor, e pouco importante como rota) a base material do tráfico - as quadrihas, os arsenais, os estoques - reside onde estão localizados os pontos de venda, ou seja, nas favelas. Apenas nas favelas o tráfico pode ser combatido.

Se não restam mais argumentos para negar a necessidade da ação da policia, pode-se afirmar que a repressão não é o suficiente, é preciso dar escola e oportunidades aos jovens das favelas. Postura de quem se compraz de imaginar as favelas como locais onde se está na estaca zero do desenvlvimento. Os bandidos tiveram, sim, escola e outras opções de vida, mas preferiram o crime porque este proporciona mais lucro que um emprego, e boas chances de impunidade. O comum é o menino ser preso de manhã e solto à tarde. Então, a escolha pelo crime é a simples consequência de uma vantagem comparativs. Não cessará, a menos que essa vantagem comparativa deixe de existir, aumentando-se as penaidades, e consequentemente o risco de se optar pelo crime.

De resto, o crime não tem uma solução cartesiana, o que significa que não pode nunca ser elimiando, apenas controlado. Mas não se pode chamar, tecnicamente, de fracasso uma operação onde apenas quatro policiais morreram para mais de uma centena de criminosos, e centenas de fuzis foram apreendidos. Sem dúvida que as quadrilhas continuam lá. Mas que sofreram um duro golpe, é certo. Baixada a poeira, resta ver que o caminho é por aí.


domingo, 26 de outubro de 2025

O Traficante é Vítima do Usuário

Tem causado frisson a última declaração de Lula, manifestando-se contra a intervenção de Trump no Caribe, de que "o traficante é vítima do usuário". Logo em seguida ele desculpou-se afirmando ter sido uma declaração mal construída, e não poderia ter dito outra coisa para justificar tamanha sandice. Mas engraçada ou bizarra, a afirmação é instigante. O que teria se passado na cabeça do presidente? O que ele quis de fato dizer?
 
Minha opinião é de que ele quis dizer uma verdade, mas foi embotado pela armadilha do raciocínio viciado pela ideologia, o qual repete que o delinquente é sempre vítima do sistema injusto, e apenas a revolução que destruirá o sistema (capitalista) fará cessar o crime, ou antes, não ocorrerão mais crimes porque não haverá mais motivo para praticá-los. Mas no entanto, uma pequena correção na frase a torna uma expressão verdadeira, e provavelmente aquilo que Lula quis comunicar: ao invés de "o traficante é vítima do usuário", deveria ser dito "o traficante existe por causa do usuário".
 
É a indefectível Lei da Oferta e da Procura. Se alguém está disposto a pagar por um certo produto, logo surge alguém que quer fornecer aquele produto. Como se trata de um princípio do sistema capitalista, talvez por isso haja uma repulsa instintiva da parte dos indivíduos formados na ideologia marxista, daí o lapso de Lula. Mas se ele queria acusar os EUA de fomentar o narcotráfico por comprar drogas, está totalmente certo. Os EUA são, de longe, o maior mercado consumidor de drogas do mundo.
 
O gigantismo do negócio da droga nis EUA pode bem ser medido comparando os traficantes que abastecem aquele país com os traficantes que abastecem outro consumidor, possivelmente o segundo maior, mas ainda assim a léguas do primeiro colocado - o Brasil. Aqui, os traficantes têm "fortalezas" no topo das favelas. Lá, os traficantes são multimilionários, como o lendário El Chapo no México, e o insuperável Pablo Escobar da Colômbia. No Brasil, os traficantes não dominam o país - dominam as favelas. Se aqui algum Fernandinho Beira-Mar declarar que não desejaria ser presidente porque tem mais poder que o presidente, todos achariam uma piada de mau gosto. Quando El Chapo disse a mesma coisa no México, ninguém achou graça.
 
O perfil do crime relaciuonado ao negócio da droga é determinado pelas fases daquele negócio que são cumpridas naquele local. Nas regiões produtoras, as quadrilhas dominam várias áreas rurais e até pequenas cidades relacionadas à produção e ao roteamento das drogas, empregando variados colaboradores. O Brasil não produz drogas, exceto pequena quantidade de maconha de má qualidade, e como rota, é secundário se comparado a outras rotas que passam pelos países andinos. O Brasil é consumidor, e portanto, o crime relacionado ao negócio da droga aqui está relacionado à distribuição no varejo - ou seja, aos pontos de venda. Mais especificamente, às favelas. Aqwui, os traficantes têm domínio absoluto nas favelas ainda não tomadas por milícias, mas seu poder cessa abruptamente onde a favela acaba.
 
E a riqueza dos traficantes é determinada pelo tamanho de seu mercado, que aqui é muito menor que o dos EUA. Trump necessita entender que a guerra contra as drogas não será vencida enquanto os EUA gastarem milhões para combater as drogas, e bilhões para comprar drogas. Esses bilhões, injetados em países pobres, chegando a representar uma receita superior até à de seu principal produto de exportação, são capazes de cooptar multidões de colaboradores ao negócio criminoso. Muito mais grave que a corrupção de centenas de funcionários, é a corrupção de milhares de jovens que passam a considerar o trabalho para os traficantes uma opção lucrativa e com boas chances de impunidade e promoção social.
 
Mas Trump prefere encenações custosas, como enviar o maior porta-aviões de sua frota ao Caribe, evocando a piada do tiro de canhão para matar passarinho. Combater o narcotráfico com equipamento bélico pesado é como dar um tiro em uma colméia de abelhas - o dano é mínimo, e as abelhas vem todas para cima. A guerra às drogas não é uma guerra contra um exército regular, é algo mais semelhante à eliminação de uma praga. Acaso Trump cogita reprimir o usuário americano?
 
Lula com certeza disse uma coisa errada. Mas talvez tenha pensado o certo.

domingo, 21 de setembro de 2025

Trump pode estar ressuscitando Lula

Um artigo publicado por Marcelo Zero, acessor da liderança do PT no senado, tem um título instigante: "Não há alternativa: em 2026, o Brasil terá que escolher, de novo, entre Lula e Bolsonaro". Explica o sociólogo:
 
"Tarcísio, Zema, Caiado etc. não sãoalternativas ao bolsonarismo. São simplesmente o bolsonarismo sem Bolsonaro, como o governador de São Paulo já deixou abundantemente claro"

 
A maldição continua: entre Lula e Bolsonaro, permanecemos presos ao passado, como um filme eternamente reprisado. Mas se pode haver um bolsonarismo sem Bolsonaro, poderia haver um lulismo sem Lula?
 
Não será preciso, é o próprio presidente que vai se candidatar novamente, e todas as projeções já o apontam como favorito. Até poiucos meses atrás, a carreira de Lula era vista como encerrada após o presente mandato. Quem ressuscitou Lula?
 
Foi o presidente norte-americano Donald Trump, com seus ataques ao Brasil e à Venezuela, o que permitiu a Lula reunir em torno de si um lampejo de fervor patriótico. Temos de volta o velho imperialismo americano combatido pelas esquerdas desde muitas décadas. Trump é um histrião, e a encenação bélica em torno da Venezuela dificilmente evoluirá para uma guerra real. Mas se esta guerra ocorrer, provavelmente nosso papel será fornecer asilo a Maduro, reforçando nosso rótulo de refúgio preferido por bandidos foragidos.
 
Atualmente, Bolsonaro e Lula são os esmaecidos rostos visíveis de duas correntes políticas anacrônicas que nos mantém presos ao passado. O próximo pleito será entre um bolsonarismo sem Bolsonaro, mas mantido por um mandatário bem saudável, contra um lulismo com um Lula já periclitante, com grande probabilidade de não terminar o mandato. Um embate entre a ideia e o carisma. Já sabemos que existe um bolsonarismo sem Bolsonaro, mas até agora nenhum petista conseguiu adquirir o carisma de Lula. Não parece viável um lulismo sem Lula. É de fato grande irresponsabilidade da parte de Lula candidatar-se novamente, pois não sabemos o que virá "no dia seguinte".
 
Mas o dia seguinte virá, inevitavelmente. Resta saber quando conseguiremos quebrar o ciclo Lulismo X Bolsonarismo, e finalmente andar para frente.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

De Novo o Velho Filme

O assunto da hora é a ameaça de Donald Trump à Venezuela, prontamente reagida com a convocação anunciada de 5 milhões de milicianos para defender o país. É claro que não vai haver guerra nenhuma. Meros três navios de guerra enviados pelos EUA não trazem um corpo expedicionário. E obviamente a Venezuela não tem condições de fornecer armamento e treinamento nem para 5% dos supostos 5 milhões convocados. Mas o teatro serve a ambos os protagonistas, pois tanto Donald Trump quanto Nicolas Maduro são parlapatões, e o truque de criar um inimigo externo para cooptar os inimigos internos é mais velho do que andar para frente.
 
De resto, não faz o menor sentido. Trump acusa Maduro de ser um traficante de drogas, mas mantém uma embaixada no país do suposto traficante, e autoriza a Chevron a operar ali. Mas o que tem me chamado a atenção desde o começo do imbroglio é a enxurrada de artigos, publicados até em veículos de mídia sérios, trazendo de volta uma retórica que parecia pertencer a décadas passadas. Os textos abundam de termos cunhados no século 19, época da Revolução Industrial e do Manifesto Comunista: "imperialismo", "colônia", "burguesia", "proletariado", "trabalhador", "camponês", parecendo folhas secas emergindo do fundo de um tanque onde se agitou a água.
 
Quem tem a minha idade com certeza já ouviu essa verborragia muitas vezes, repetida por pretensos intelectuais-militantes de classe média que nunca tiveram contato com operários ou camponeses, e enxergam o mundo pela óptica de modelos abstratos criados décadas atrás por pensadores socialistas, atualmente extintos no mundo desenvolvido. Acreditam piamente que ainda existem impérios coloniais, que Trump quer o petróleo da Venezuela, como se o petróleo da Venezuela já não estivesse no mercado global, e uma companhia norte-americana já não atuasse na Venezuela. O tempo, para eles, parece haver congelado naquela imagem passada por seus professores e líderes estudantis. Essa garotada até tentou fazer uma revolução brancaleônica décadas atrás, com grupos guerrilheiros compostos por não mais que poucas dezenas de militantes recrutados em ambientes urbanos, que se perderam naquele ambente rural do qual nada sabiam, que imaginavam povoados por massas de camponeses prontos a pegar em armas. Nada a ver com as FARC´s na Colômbia, grupo efetivamente formado por camponeses, que se contavam aos milhares e chegou a controlar boa parte do território do país.
 
Do sonho fuleiro fracasssado restou o palavreado que ainda povoa a retórica de inúmeros articulistas e intelectuais universitários. É tão inócuo quanto a guerra fingida de Trump e Maduro, mas escancara tristemente nossa incapacidade de assumir um papel no tempo histórico atual: parece que ainda estamos estacionados nos anos sessenta do século passado, repetindo chavões e palavras-de-ordem, presos a modelos abstratos criados na Europa de cem anos antes. De novo o velho filme.

domingo, 27 de julho de 2025

América Latina: Lado B

Estou lendo o livro América Latina: Lado B, de Ariel Palacios, onde o autor rememora inumeráveis episódios bizarros, lamentáveis e folclóricos que permearam a história de nosso continente. Não é uma obra de historiografia, mas não deixa de ter a utilidade de fazer pensar sobre o lado mórbido de nossa civilização. Mórbido é a palavra certa.
 
Mas fica a pergunta no ar: por que autor excluiu o Brasil de seu apanhado? Acaso também não temos um lado B?
 
Pode-se criticar, mas eu dou razão ao autor. Por mais coisas baixas e lastimáveis que tenham acontecido aqui, não, o Brasil não se nivela a nossos vizinhos hispânicos. Tivemos nossos ditadores, mas nenhum deles renomeou cidades com o seu nome em vida. Temos nossos corruptos, mas nenhum deles se tornou dono do país inteiro junto com sua família. Tivemos nossos episódios de violência política, mas o número de mortos e desaparecidos é bastante baixo se comparado a nossos vizinhos. Tivemos manifestações reprimidas a bala, mas nenhuma deixou o saldo de dezenas de mortos.
 
Temos nossos bandidos, mas eles não são bilionários, não dominam cidades inteiras nem vastas áreas rurais, como é comum nos países onde os criminosos controlam a produção e o roteamento de drogas para os principais mercados consumidores. Nossos bandidos dominam, no máximo, as favelas, e sua riqueza se expressa, no máximo, na construção de fortalezas no topo das favelas. Somos consumidores, e não produtores de drogas, e como rota somos secundários. A criminalidade derivada das drogas está concentada nos pontos de varejo, ou seja, nas favelas. Aqui soaria ridículo um mega-traficante oferecer-se para pagar a dívida externa do país, como aconteceu na Colômbia. Igualmente piada sem graça seria outro mega-traficante declarar que não pretende ser presidente do país, porque manda mais que o presidente. Quando El Chapo fez essa declaração no México, ninguém achou graça.
 
Basicamente, nossas baixarias carecem de uma morbidez que está presente em nossos vizinhos. Por que foi assim? Penso que tratou-se da consequência da maneira negociada com que foi obtida nossa independência, sem o trauma de uma longa guerra que naturalizou a violência política extrema na América Hispânica dominada por caudilhos. Historicamente, nós preferimos a negociação. Não sei se é a melhor teoria, mas é a que eu tenho.

domingo, 15 de junho de 2025

O Quintal de Trump


"Vamos retomar o o nosso quintal", declarou Peter Hesseth, secretário de defesa dos EUA, conforme citado nesse artigo. Obviamente está se referindo à América Latina, alegando que a influência da China tem crescido demais nessa região que os EUA sempre consideraram sua área de influência.

A comparação desperta alguns gatilhos nos brasileiros. Afinal, a imagem de "quintal dos EUA" sempre foi recorrente da parte de nacionalistas de esquerda para denunciar o pretenso imperialismo norte-americano e nossa suposta subserviência. Mas como bem diz o autor do artigo, o Brasil não cabe no quintal de ninguém. O Brasil nem é um dos alvos principais de Trump. Mas a forma que Trump tem agido é inquietante.

O presidente dos EUA já mostrou que não é um mero parlapatão, e está disposto a fazer o que disse que faria. É imprevisível, e dá sinais de desequilíbrio mental. Sua divisa é "Fazer a América grande novamente", sendo pressuposto de que a América "não é mais grande". De fato, os EUA não possuem mais o mesmo poder de tempos atrás. Mas sua figura caricata, até grotesca, é uma evidência de que os EUA estão se apequenando.

Trump parece estar disposto a ressuscitar o imperialismo à moda antiga, com sanções, ameaças, e por que não, intervenção militar. Mas seus arroubos já esbarram no entorno - as póprias leis do país, que tornam ilegais várias providências já tomadas por ele; oa aliados tradicionais, irracionalmente atacados; o povo nas ruas, em um paós onde os imigrantes perseguidos se contal aos milhões, e por fim, as leis impessoais da economia, que fatalmente resultarão em prejuízos devido à guerra tarifária e a insistência em trazer de volta ao país indústrias que atuam no exterior com maior vantagem.Diz o autor do artigo:

O imperialismo à moda antiga era às vezes mais sutil. Theodore Roosevelt, que foi presidente dos EUA de 1901 a 1909 e executou política externa nacionalista e agressiva, tinha como lema: “Speak softly and carry a big stick” (“Fale suavemente e carregue um grande porrete”). Já Trump “speaks loudly and carries a doubtful stick” (“fala alto e carrega um porrete duvidoso”).

O soft power dos EUA está sendo destruído rapidamente. De certa forma, Trump, que não acredita em hipocrisias, desnuda a face problemática de um país historicamente violento, marcado por fissuras internas de conflitos étnicos e raciais, e por fissuras exteranas de um sem-fim de guerras. Aqui no Brasil, tudo o que podemos fazer é assistir. Mas também é o melhor que podemos fazer. Se estamos entrando na órbita da China, devíamos ao menos adotar a divisa chinesa: trabalhe e esconda sua força.