Muitos acharão inusitada essa colocação. Há alguma dúvida de que Lula é de esquerda?
Sim, há, e o próprio Lula tem incrementado essa polêmica de tempos em tempos. Ele surgiu na política brasileira como um outsider, sem passar pela matriz dos esquerdistas históricos nacionais, que é a universidade. Não acredito que Lula tenha alguma vez lido um autor marxista, e menos ainda se interessado pelo assunto.
O caso é que, nas últimas décadas, o sentido de "esquerda" ficou bastante difuso. O fenômeno deve-se sobretudo ao período durante e logo após o regime militar, quando havia um glamour em apresentar-se como de esquerda, mesmo por quem não era de esquerda, enquanto a direita era abominada, mesmo por quem era de direita, por ser associada à ditadura. O resultado é que na época atual, um direitista como Bolsonaro é facilmente definido e reconhecido, mas um esquerdista pode ser muita coisa. Eu vejo Lula como basicamente um líder personalista, cuja maior habilidade é reinventar-se conforme o contexto do momento. Assim, ele já repetiu discursos de esquerda no passado, bem como já foi capaz de declarar secamente "que não era de esquerda". Tem sido assim desde o tempo de sua primeira prisão, ainda na época do ABC, quando ao ser inquirido se era comunista, respondeu: "não senhor, sou torneiro-mecânico".
De resto, Lula é, estranhamente, uma criação da direita. Refiro-me ao regime de 1964, que afastou boa parte dos dirigentes sindicais de então. Antes de 1964, os sindicatos eram loteados pelos partidos, mais precisamente entre o Partido Trabalhista de Vargas e o PCB. O quadro sindical foi, então, renovado com uma nova geração de dirigentes aceitos pelo governo, submissos ao governo, sem dúvida. Mas ao menos originados do chão da fábrica, e não dos partidos políticos. Lula entrou nesse leva, e fez o caminho inverso: primeiro o sindicato, depois o partido político.
E não menos estranhamente, foi o regime de 1964, tido como de direita, o responsável pela liquidação da direita partidária no país, ao cassar Carlos Lacerda e outros líderes proeminentes, posto que não queria nenhuma alternativa civil ao poder. Nunca mais surgiria uma direita intelectualmente brilhante no país, e o espaço por ela deixado foi ocupado por políticos provincianos sem outra ideologia que a busca de favores do governo. A direita atual não tem raízes da era pré-1964, e parece motivada mais pelo desalento da população do que por alguma esperança concreta no futuro.
E o espaço deixado pela esquerda histórica, cujo tempo histórico já passou, será ocupado por Lula? Ele ainda tem um pouco de tempo, embora escasso. Bem, isso depende de saber se ele vai ou não vestir a roupagem de esquerda nessa legislatura. E após Lula, surgirá uma nova esquerda no país?
O futuro está difícil de prever.
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