segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A Antiga e a Nova Classe Média

Deparei-me outro dia com esse artigo no Jornal GGN, intitulado Pobre de Avião, o DNA da Ultra-direita Brasileira, que defende uma curiosa tese: a contra-revolução conservadora que se seguiu ao governo petista teria sido motivada pelo incômodo causado à classe média pela presença de pobres no aeroporto.

Certamente que não endosso tese tão primária, mas o dito artigo levantou certas suposições que eu já havia observado em outros contextos. A mais central delas é que não existiria apenas uma classe média, mas duas, uma "antiga" oriunda da classe alta em declínio, e uma "nova" originada da classe pobre em ascensão, e a hostilidade contra os pobres viria, por contraditório que pareça, precisamente desta nova classe média. Faz algum sentido. Observa o autor do artigo:

"Os muito ricos não se sentem ameaçados por pobres em nenhum espaço ou momento, a não ser em conflitos reais, como tumultos, vandalismo (...) Muitos bilionários têm visão social e praticam alguma forma de ação de apoio, menos no Brasil e mais nos países centrais, onde grandes fortunas criaram grandes fundações filantrópicas"


"Muitos ricos são de centro esquerda, alguns de direita, mas a ultra direita se concentra na classe média que vê perigo nos pobres chegando perto, física ou socialmente"


A velha classe média brasileira, realmente, originou-se da decomposição da antiga aristocracia luso-brasileira, à medida em que a propriedade comum era dividida por herança e os descendentes passaram a ter que ganhar a vida com suas profissões, mas conservando postura e hábitos herdados dos tempos antigos, tais como manter empregadas domésticas. Como bem apontou o autor do artigo, essa antiga classe média nunca se importou com a proximidade física dos pobres, e até fazia questão de mantê-los próximos enquanto serviçais. Isso porque os espaços físico e social eram muito bem delimitados - o pobre, como se dizia, "sabia o seu lugar". De fato, eventualmente os pobres eram até ajudados por seus patrões ou padrinhos.

Já a nova classe média brasileira originou-se sobretudo da grande onda de imigração ocorrida entre o fim do século 19 e o início do século 20, após a abolição do tráfico de escravos. Esses imigrantes experimentaram uma ascensão social à custa de muito esforço, o que lhes causa orgulho, e a lembrança do passado de pobreza serve como referência de tudo o que é mau e errado - talvez por isso não demonstrem nenhuma empatia por pobres, ao contrário da velha classe média. Mas há uma causa mais prosaica: a concorrência, fator crucial a quem ambiciona ascensão social à custa do próprio esforço.

É sabido que nos EUA, historicamente, o racismo se originou sobretudo da classe trabalhadora branca, como reação à presença de ex-escravos e imigrantes pobres disputando seus empregos. Os ricos não se importavam tanto, afinal raramente algum negro atravessava-lhes o caminho. Por aqui costumamos apresentar os EUA como contra-exemplo de tudo o que é o oposto de nossa realidade, mas o fato é que, histórica e socialmente, os EUA tem, sim, muitos paralelos com o Brasil, e este é um deles. Trump acusa os imigrantes de "roubar o trabalho" dos americanos. Ele está certo. Mas os imigrantes que de fato roubam o trabalho dos americanos não são aqueles que cruzam ilegalmente a fronteira - esses vão procurar serviços recusados pelos próprios americanos - e sim os descendentes deles, já com estudo e cidadania, que querem disputar empregos qualificados.

Já no Brasil, por ter uma dinâmica social mais lenta, nunca se viu um racismo declarado de imigrantes brancos contra pretos ex-escravos, mas um aforismo que veio dos tempos da escravidão era aquele que afirmava que não havia dono de escravos mais cruel do que o ex-escravo. A tese do Pobre de Avião faz algum sentido, sim. Ainda que irônico. Então, contrariando o ideário da luta de classes marxista, o pior inimigo do pobre não é o rico, mas o outro pobre? Com certeza algo embaraçoso de admitir.

Mas uma diatribe antiga da esquerda intelectual contra a classe média sempre existiu, uma espécie de grito primal de revolta, originado até do próprio ambiente doméstico desses militantes, geralmente oriundos da classe média. Os pais representavam, para eles, o establishment, sempre "caretas" e insistindo para que se formassem e fossem trabalhar para os ricos. A classe média era entendida como o esteio da ordem social, sempre conservadora, medíocre e alvo de caricatura. Em determinado momento durante o governo petista esta antiga diatribe tornou-se declarada - o manifesto de ruptura foi aquele famoso discurso da filósofa petista Marlena Chauí, Eu Odeio a Classe Média.

E no entanto, esse mesmo PT foi quem alardeou haver incluído milhões de cidadãos na classe média, e sempre declarou ter como objetivo criar um país de classe média. Como pode, então, odiar a sua própria criação? Ainda mais levando-se em conta que a maior repulsa contra os pobres vem justamente da nova classe média recém-incluída, conforme é reconhecido. A explicação, a meu ver, vem daquele grito de revolta primal, reprimido durante anos pelos militantes. O PT não se originou dos extratos mais pobres da população, mas da classe média intelectualizada e politizada de São Paulo, muitos com histórico de militância desde os anos 60. Durante um bom tempo o eleitorado petista reduziu-se a este núcleo, enquanto as massas pobres continuavam fiéis aos políticos tradicionais com seus laços de clientelismo. A partir do momento em que o PT obteve o apoio desse eleitorado pobre majoritário, percebeu que não dependia mais da classe média que havia sido o seu esteio, e pôde então renegá-la ostensivamente - a partir daí, os inimigos eram os "coxinhas", sobretudo os paulistas.

Mas não se percebeu uma coisa: o eleitorado pobre não é ideologizado. Limita-se a dar o voto a quem tem a chave do cofre no momento, e pode conceder benefícios de imediato. Por conseguinte, a massa do eleitorado pobre não é fiel. Já o eleitorado da classe média vota de acordo com suas ideia, e não gostou do repúdio que o PT lhes dedicou. Muitos eleitores da classe média que eram neutros, e até simpatizavam com o PT, migraram para a direita, ao mesmo tempo em que o eleitorado pobre dava as costas a este partido tão logo percebeu que a crise esvaziara o saco de bondades. Foi essa a verdadeira causa da guinada conservadora que derrubou o PT, e não a suposta raiva da classe média contra os pobres no aeroporto.

Não creio que a esquerda voltará ao poder enquanto não superar sua diatribe contra a classe média.

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