Terminando a minha resenha do Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes, de Paulo Schmidt, chego João Goulart. O autor não diz sobre ele muito mais do que já sabemos: Goulart foi um desastrado playboy, mais bem sucedido entre as mulheres e em seus negócios pessoais do que na política. Jamais teve um projeto bem delineado, e sua atuação limitou-se quase que só aos palanques, empolgando a multidão mas nulo nos gabinetes, na verdade mais deixando-se levar do que conduzindo a multidão.
Ficou na memória a imagem algo melancólica de um presidente jovem e idealista, que não soube lidar com as forças que o cercaram. Seu fracasso foi mais do que o fracasso de um projeto político, mas também o malogro de toda uma geração empolgada e ingênua, que sonhava e caiu das nuvens. Evoca a saudade de um tempo que nunca foi, mas poderia ter sido, e por isso mesmo pode ser imaginado conforme a vontade do freguês. Retornando à pessoa real de João Goulart, fica a pergunta: como indivíduo tão despreparado pôde ser ungido por Getúlio Vargas como seu sucessor? Não haveria melhores? O autor sugere que tudo aconteceu na segunda metade dos anos 40, quando Goulart começou a frequentar Vargas, então retirado em sua estância. Na ocasião Vargas estava deprimido por haver perdido seu filho mais novo, e Goulart havia perdido o pai, então, da carência de um e de outro, surgiu uma relação pai-filho. Parece-me explicação muito simplista, mas eu não consigo imaginar outra melhor.
Os generais-presidentes
Chegando aos presidentes do ciclo militar, o autor junta todos em um só capítulo, por não haver especificidades na biografia pessoal dos generais-presidentes além dos passos comuns da carreira militar. É verdade, mas é preciso denotar que houve, sim, características distintas entre um governo e outro. Não existiu apenas um governo militar, mas vários. Castelo Branco chegou ao poder em um golpe longamente tramado pela UDN e pelos oficiais que a cercavam, mas que ao contrário das expectativas, não conduziu ao poder a cúpula udenista, cujos líderes mais proeminentes como Carlos Lacerda foram cassados e os demais atirados na vala comum da ARENA. Castelo era um presidente já totalmente esvaziado de poder quando entregou o cargo a Costa e Silva, de quem não gostava. Antes mesmo da doença que o imobilizou, Costa e Silva já era um zumbi que não mais conseguia valer sua vontade. O que houve de fato a partir de 1964 não foi apenas um golpe, mas vários golpes dentro do golpe, que substituíram os antigos oficiais egressos do tenentismo e aliados aos udenistas por um outro grupo, gestado na ESG sob os ventos da guerra fria, este totalmente avesso à política partidária e de fato constituído por tecnocratas, que acreditavam que um país deve ser administrado de forma vertical e hierarquizada tal como uma grande empresa.
É nesse ponto que chegamos à figura enigmática de Emílio Médici, a própria síntese do período, por seu governo haver ocorrido bem no meio daqueles anos turbulentos e por haver encarnado em grau máximo o espírito da época: a repressão e o desenvolvimento. Foram os anos do "milagre brasileiro", mas paradoxalmente, ou não, foram também os anos de repressão mais intensa, muito embora o próprio Médici desfrutasse de boa aceitação popular em razão do bom momento da economia. Por que figura aparentemente tão central do regime foi também tão apagada, a ponto de sumir da vida pública após o fim de seu governo e não ter feito sucessores com seu perfil?
A explicação que encontro reside na própria personalidade de Médici, cujo perfil não era o de um líder político, mas de um burocrata autoritário: a ditadura servia-o na medida em que permitia-o fazer obras conforme a sua vontade, sem pedir permissão a ninguém e sem ouvir críticas de ninguém. No tocante à repressão, Médici era ao mesmo tempo favorável e indiferente a ela: todos os que o interpelaram na época, coisa que só podia ser feita no interior de gabinetes e narrada posteriormente, ouviram dele uma justificativa insolente das violências que eram cometidas, mas o próprio Médici não tocava no assunto por iniciativa própria. Estão ausentes de seus discursos exortações e bravatas a respeito da luta anti-subversiva, lembro-me bem, era como se nada daquilo estivesse acontecendo. Médici não tinha cara de mau, parecia um avô daqueles que gostam de jogar bola com os netinhos...
No aspecto econômico, entretanto, o período militar não divergiu do modelo nacional-estatista de Vargas e Kubitschek, ,também oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitscheck, Castelo). De fato, foi nesse período que o modelo nacional-estatista seria levado ao auge nos anos setenta e ao esgotamento nos anos oitenta. O pior legado dos militares, contudo, foi no aspecto político, com a liquidação das antigas cúpulas partidárias e sua substituição por políticos provincianos, reeditando as piores práticas da República Velha, que valorizava o interior atrasado em detrimento dos centros urbanos. O resultado foi o abastardamento de nossa classe politica, que prossegue até hoje.
João Baptista Figueiredo é hoje lembrado somente por seus cavalos e pela franqueza rude de suas declarações. Pediu para ser esquecido, e foi atendido.
José Sarney foi o perfeito retrato do abastardamento da classe política a que me referi, resultado da liquidação de todas as vanguardas durante o período militar, as de esquerda por certo, mas ironicamente também as de direita: acredito que nem o mais pessimista dos analista acreditaria, em 1964, que 20 anos depois a nova edição de Adhemar de Barros seria um Paulo Maluf, que Jânio Quadros deixaria saudades e que alguém como José Sarney seria um dia presidente. Um perfeito "coronel" do sertão, espécie de museu, Sarney, entretanto, surpreenderia: a desordem econômica na época era de tal monta que até esse coronelão pôde fazer pose de populista com seu Plano Cruzado e com a moratória da dívida externa, antigas reivindicações da esquerda, que ele fez o favor à nação de demonstrar que não prestavam. Ironia máxima, a única experiência genuinamente socialista da república brasileira aconteceu durante o seu governo, com o congelamento de preços, os fiscais do Sarney e a apreensão de bois no pasto, como uma ópera bufa.
De tanto em tanto, na política brasileira, surge um corpo estranho, que tem uma carreira meteórica, chega à presidência e em seguida desaparece tão rápido quanto surgiu. Foi o caso de Fernando Collor de Mello. O exemplo mais notável dessa estirpe foi Jânio Quadros, mas Collor esteve mais para um Jango de direita do que para um Jânio renascido. Tal como Jango, era jovem, rico, mulherengo e confundia imprudência com audácia. Oriundo do mais atrasado dos rincões da politica brasileira, emergiu com um discurso modernizante. Os resultados, contudo, foram desastrosos, e como é o destino dos corpos estranhos, foi expelido pelo organismo. Mas alguma coisa ficou. Aquela sua declaração de que os carros brasileiros "eram umas carroças" soa hoje como aquela palavra que quebra o encanto e faz despertar do sono, no caso, o sono do esgotado nacional-estatismo.
Itamar Franco é hoje mais lembrado por haver aparecido na foto com aquela modelo sem calcinha, e no entanto, fez um governo discreto mas sensato. Fernando Henrique Cardoso é hoje o mais vituperado dos ex-presidentes, mas vindo de quem vem, isso é um sinal de que ele saiu melhor do que a encomenda. Diga-se o que disser, para o bem ou para o mal, foi FHC o construtor do Brasil do século 21. Tal como Vargas, ele pertence àquela categoria de personagens que faz a transição entre duas eras distintas, no casa de FHC, justamente a transição entre a Era Vargas e a modernidade, transição esta que, infelizmente, não foi de todo concluída. FHC foi o herege máximo da política brasileira: encolheu o Estado, abriu a economia, privatizou estatais. Com isso fez o país sair do atoleiro da estagflação onde estava desde os anos 80, e entregou de bandeja a seu sucessor um país com as contas equilibradas. Nada disso, é claro, ocorreu sem percalços: FHC valorizou em excesso o método fácil da âncora cambial, também apreciado pelos argentinos, que dá resultados rápidos a curto prazo mas é extremamente arriscado a longo prazo. Todos sabemos o que aconteceu com a Argentina na virada do ano 2000, quando a corda da âncora cambial finalmente arrebentou, e parecia que o mesmo aconteceria no Brasil. Mas em 1999 FHC desatrelou o câmbio, provocando uma recessão na economia que desgastou o seu prestígio, mas impediu a explosão inflacionária. Agindo assim, inviabilizou a eleição de seu sucessor e deu os frutos para serem colhidos por Lula. Houvesse seguido o caminho argentino, FHC teria eleito Serra como seu sucessor, mas no colo dele teria deixado uma bomba prestes a explodir. É possível que se seguisse uma convulsão social tal como na Argentina, Serra seria forçado a renunciar e o PT chegaria ao poder com muito mais força do que chegou em 2002. Mas FHC não fez isso.
De Lula e Dilma não falarei, pois tenho falado sobre eles todos os dias, e ainda não pertencem ao passado.
sexta-feira, 12 de agosto de 2016
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes - III
Terminei de ler o Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes, de Paulo Schmidt. O autor repete algumas informações já bem sabidas e destaca alguns pontos obscuros que podem ser uma chave para quem quer entender a personalidade complexa de tais personagens, alternando críticas contundentes com observações bem humoradas. Como certeza foi um livro gostoso de ler, mas que deixa alguma tristeza. Continuando minha resenha, vou abordar os presidentes um a um.
Getúlio Vargas
Até hoje muito controverso, sempre desperta paixões, isso porque ele não pertence de todo ao passado - sob certos aspectos, a Era Vargas continua até hoje. Mas o autor não faz mais que sua obrigação ao reconhecer que Vargas pertence àquela categoria de personagens que fazem a História caminhar, passando de uma etapa a outra. Bem ou mal, certo ou errado, Vargas foi o fundador do Brasil moderno, urbano, industrial, que rompeu com o passado colonial de mero exportador de café. Um homem que tinha um projeto e cumpriu-o até o fim. Vale destacar sua personalidade forte e sua honradez pessoal, atributos que ficam ainda mais valorizados quando se recorda seu contexto familiar desfavorável - seus truculentos irmãos agiam como pistoleiros e ele tinha tudo para ter sido mais um filho de coronel do sertão.
Não discordo desses atributos. Mas a mitificação da figura de Vargas decorre de uma circunstância que acomete outros personagens considerados mártires, como Salvador Allende do Chile: quase toda a ideia que hoje se faz dele origina-se de seu último dia de vida. Ficou na memória coletiva o Vargas heroico que dá sua vida pelo povo e não transige de seus ideais. Os demais dias de sua vida, porém, mostram um homem muito mais complexo e contraditório, que já foi inimigo dos que hoje o enaltecem, que já foi amigo dos que hoje o condenam, que traiu e foi traído, que sofreu violências e cometeu violências. Ele era indiscutivelmente um ditador, cria do positivismo gaúcho que rendeu outros caudilhos menos brilhantes. Fez sua obra tal como um trator que passa abrindo caminho à sua frente e joga para os lados, indistintamente, tudo o que for obstáculo, formando um monturo que mistura coisas que não deveriam ser misturadas. Foi o caso da UDN, seu inimigo figadal. Esse partido reacionário reunia remanescentes da velha república oligárquica demolida por Vargas, mas também democratas sinceros que haviam sofrido toda sorte de perseguição durante o Estado Novo. O notório golpismo da UDN foi, em grande medida, uma reação ao golpismo que o próprio Vargas sempre exercitou em sua trajetória. Se podemos extrair daí uma lição, é a de que nenhuma ditadura, nem mesmo uma "boa" ditadura, consegue fazer uma obra perene: em algum momento do futuro está marcado um ajuste de contas.
Gaspar Dutra
Não é necessário dizer muito mais do que a brilhante definição do autor: Dutra foi o mais coerente de todos os presidentes, pois tinha cara de tolo, fama de tolo, agia como tolo e era tolo. Típico peão de tabuleiro, fez a ponte entre Vargas e Vargas; quando tentou ter algum protagonismo, em 1964, foi rapidamente descartado. Medíocre em quase todos os aspectos, é hoje mais lembrado pela Via Dutra, mas deveria ser lembrado também por sua desastrosa política econômica, que torrou em bobagens o saldo da balança comercial que veio da guerra, e pelo fracasso do Plano Salte.
Juscelino Kubitschek
O autor foi bastante elogioso com esse que é hoje lembrado como "o Pelé dos presidentes", o homem que governou um país com altíssimo astral, que anistiou seus inimigos, que fez o país progredir 50 anos em 5 sob a mais plena democracia. Não discordo de nada disso. Mas os aspectos negativos de seu governo são indissociáveis dos aspectos positivos, pois são, de fato, a outra face destes.
Dentro do modelo nacional-estatista que predominou no Brasil dos anos 30 aos 80, Kubitschek foi o necessário contraponto de Vargas: de fato, esse modelo teve duas vertentes, uma nacionalista e estatizante, outra "entreguista" e aberta ao capital estrangeiro. Vargas foi o representante máximo da primeira vertente, e Kubitschek o da segunda. O nacional-estatismo, foi, assim, tocado a duas mãos. Mas onde foi que o presidente tão bem intencionado errou?
O autor não diz explicitamente, mas tropeça na resposta. Em determinado trecho ele manifesta surpresa e admiração por haver Juscelino conseguido fazer tudo o que fez dentro de um regime plenamente democrático. Mas de certa forma, ainda que inconscientemente, Juscelino recorreu a poderes ditatoriais quando instituiu a emissão de moeda como meio de financiar seus projetos extraordinariamente custosos: esse artifício nada mais é do que confiscar o dinheiro da população sem a necessidade de criar um novo imposto. Os rombos das contas do governo são pagos com a perda do poder aquisitivo do povo. Ora, a constituição proíbe a criação de novos impostos sem a devida aprovação do legislativo, bem como que salários sejam abaixados; quem recorre a esse expediente está sendo arbitrário, tanto que não admira que ele tenha sido repetido, principalmente, durante o governo ditatorial que veio em seguida.
Tal como o aprendiz de feiticeiro, Juscelino começou a mágica, mas não soube para-la. Cumpriu seus projetos, mas deixou o país em uma perigosa espiral inflacionária que pavimentaria o caminho para a queda dos dois presidentes que vieram em seguida. O próprio Juscelino abriu as portas para a ditadura ao apoiar a candidatura de Castello Branco, julgando que assim obteria apoio para ser o próximo presidente em 1965. Pagou caro, e o país também.
Jânio Quadros
O presidente de mais complexa personalidade merece, de fato, uma análise cuidadosa. Funcional ou disfuncional, tudo nele é singular. Não se parece com nada que tenha vindo antes ou que veio depois. Não era de família rica, nem tinha ligações com pessoas importantes; surpreende ter sido o primeiro líder político brasileiro a chegar ao topo valendo-se única e exclusivamente de seu carisma pessoal. Como ele conseguia isso, trata-se de mistério ainda não decifrado, pois parece incompreensível que ele tenha catalisado o apoio das massas populares, não falando o mesmo linguajar dessas massas como fazem os demagogos até hoje, mas usando uma linguagem rebuscada e erudita que parecia mais apropriada às elites, e de fato tão castiça que só podia ser compreendida mesmo por estudiosos do idioma. Talvez as massas tenham se deixado hipnotizar justamente por não compreenderem suas palavras, mas por identificarem-nas como o sinal da autoridade de um líder messiânico.
Pouco sociável e de difícil trato pessoal, tendo-se incompatibilizado até com membros de sua própria família, Jânio tinha extraordinária empatia com a multidão. Muito se especulará ainda sobre o que ele poderia ter feito com tão extraordinário dom, mas os comentários a seu respeito sempre serão muito mais sobre o que poderia ter sido do que sobre o que foi. Como jogador temerário, no momento mais crucial de sua carreira, Jânio apostou todas as suas fichas. E perdeu.
Getúlio Vargas
Até hoje muito controverso, sempre desperta paixões, isso porque ele não pertence de todo ao passado - sob certos aspectos, a Era Vargas continua até hoje. Mas o autor não faz mais que sua obrigação ao reconhecer que Vargas pertence àquela categoria de personagens que fazem a História caminhar, passando de uma etapa a outra. Bem ou mal, certo ou errado, Vargas foi o fundador do Brasil moderno, urbano, industrial, que rompeu com o passado colonial de mero exportador de café. Um homem que tinha um projeto e cumpriu-o até o fim. Vale destacar sua personalidade forte e sua honradez pessoal, atributos que ficam ainda mais valorizados quando se recorda seu contexto familiar desfavorável - seus truculentos irmãos agiam como pistoleiros e ele tinha tudo para ter sido mais um filho de coronel do sertão.
Não discordo desses atributos. Mas a mitificação da figura de Vargas decorre de uma circunstância que acomete outros personagens considerados mártires, como Salvador Allende do Chile: quase toda a ideia que hoje se faz dele origina-se de seu último dia de vida. Ficou na memória coletiva o Vargas heroico que dá sua vida pelo povo e não transige de seus ideais. Os demais dias de sua vida, porém, mostram um homem muito mais complexo e contraditório, que já foi inimigo dos que hoje o enaltecem, que já foi amigo dos que hoje o condenam, que traiu e foi traído, que sofreu violências e cometeu violências. Ele era indiscutivelmente um ditador, cria do positivismo gaúcho que rendeu outros caudilhos menos brilhantes. Fez sua obra tal como um trator que passa abrindo caminho à sua frente e joga para os lados, indistintamente, tudo o que for obstáculo, formando um monturo que mistura coisas que não deveriam ser misturadas. Foi o caso da UDN, seu inimigo figadal. Esse partido reacionário reunia remanescentes da velha república oligárquica demolida por Vargas, mas também democratas sinceros que haviam sofrido toda sorte de perseguição durante o Estado Novo. O notório golpismo da UDN foi, em grande medida, uma reação ao golpismo que o próprio Vargas sempre exercitou em sua trajetória. Se podemos extrair daí uma lição, é a de que nenhuma ditadura, nem mesmo uma "boa" ditadura, consegue fazer uma obra perene: em algum momento do futuro está marcado um ajuste de contas.
Gaspar Dutra
Não é necessário dizer muito mais do que a brilhante definição do autor: Dutra foi o mais coerente de todos os presidentes, pois tinha cara de tolo, fama de tolo, agia como tolo e era tolo. Típico peão de tabuleiro, fez a ponte entre Vargas e Vargas; quando tentou ter algum protagonismo, em 1964, foi rapidamente descartado. Medíocre em quase todos os aspectos, é hoje mais lembrado pela Via Dutra, mas deveria ser lembrado também por sua desastrosa política econômica, que torrou em bobagens o saldo da balança comercial que veio da guerra, e pelo fracasso do Plano Salte.
Juscelino Kubitschek
O autor foi bastante elogioso com esse que é hoje lembrado como "o Pelé dos presidentes", o homem que governou um país com altíssimo astral, que anistiou seus inimigos, que fez o país progredir 50 anos em 5 sob a mais plena democracia. Não discordo de nada disso. Mas os aspectos negativos de seu governo são indissociáveis dos aspectos positivos, pois são, de fato, a outra face destes.
Dentro do modelo nacional-estatista que predominou no Brasil dos anos 30 aos 80, Kubitschek foi o necessário contraponto de Vargas: de fato, esse modelo teve duas vertentes, uma nacionalista e estatizante, outra "entreguista" e aberta ao capital estrangeiro. Vargas foi o representante máximo da primeira vertente, e Kubitschek o da segunda. O nacional-estatismo, foi, assim, tocado a duas mãos. Mas onde foi que o presidente tão bem intencionado errou?
O autor não diz explicitamente, mas tropeça na resposta. Em determinado trecho ele manifesta surpresa e admiração por haver Juscelino conseguido fazer tudo o que fez dentro de um regime plenamente democrático. Mas de certa forma, ainda que inconscientemente, Juscelino recorreu a poderes ditatoriais quando instituiu a emissão de moeda como meio de financiar seus projetos extraordinariamente custosos: esse artifício nada mais é do que confiscar o dinheiro da população sem a necessidade de criar um novo imposto. Os rombos das contas do governo são pagos com a perda do poder aquisitivo do povo. Ora, a constituição proíbe a criação de novos impostos sem a devida aprovação do legislativo, bem como que salários sejam abaixados; quem recorre a esse expediente está sendo arbitrário, tanto que não admira que ele tenha sido repetido, principalmente, durante o governo ditatorial que veio em seguida.
Tal como o aprendiz de feiticeiro, Juscelino começou a mágica, mas não soube para-la. Cumpriu seus projetos, mas deixou o país em uma perigosa espiral inflacionária que pavimentaria o caminho para a queda dos dois presidentes que vieram em seguida. O próprio Juscelino abriu as portas para a ditadura ao apoiar a candidatura de Castello Branco, julgando que assim obteria apoio para ser o próximo presidente em 1965. Pagou caro, e o país também.
Jânio Quadros
O presidente de mais complexa personalidade merece, de fato, uma análise cuidadosa. Funcional ou disfuncional, tudo nele é singular. Não se parece com nada que tenha vindo antes ou que veio depois. Não era de família rica, nem tinha ligações com pessoas importantes; surpreende ter sido o primeiro líder político brasileiro a chegar ao topo valendo-se única e exclusivamente de seu carisma pessoal. Como ele conseguia isso, trata-se de mistério ainda não decifrado, pois parece incompreensível que ele tenha catalisado o apoio das massas populares, não falando o mesmo linguajar dessas massas como fazem os demagogos até hoje, mas usando uma linguagem rebuscada e erudita que parecia mais apropriada às elites, e de fato tão castiça que só podia ser compreendida mesmo por estudiosos do idioma. Talvez as massas tenham se deixado hipnotizar justamente por não compreenderem suas palavras, mas por identificarem-nas como o sinal da autoridade de um líder messiânico.
Pouco sociável e de difícil trato pessoal, tendo-se incompatibilizado até com membros de sua própria família, Jânio tinha extraordinária empatia com a multidão. Muito se especulará ainda sobre o que ele poderia ter feito com tão extraordinário dom, mas os comentários a seu respeito sempre serão muito mais sobre o que poderia ter sido do que sobre o que foi. Como jogador temerário, no momento mais crucial de sua carreira, Jânio apostou todas as suas fichas. E perdeu.
sábado, 23 de julho de 2016
Meritocracia, palavra maldita
Eu que frequento habitualmente diversos forum's de discussão política, venho observando cada vez mais uma disposição em condenar a meritocracia, sobretudo no que se refere à educação e à disputa por vagas. Isso me causa certa apreensão. Meritocracia era até pouco atrás um termo erudito raramente mencionado, agora está jogado na lama. Conheço essa tática: para se destruir um conceito, muda-se o sentido da palavra que o define. O adjetivo meritocrático, originalmente elogioso, deve tornar-se uma ignomínia. Para isso o termo é usado vezes sem conta em contextos depreciativos, irônicos e misturado com outros xingamentos, e isso repetido vezes sem conta até que se estabeleça no senso comum a noção de que a meritocracia é uma coisa ruim.
O truque já deu certo com outras palavras, por exemplo, higienismo, que no princípio do século passado denotava uma elogiosa disposição para o saneamento urbano, e hoje evoca discriminação e racismo. Ignoro se vai funcionar com a meritocracia - o sentido elogioso do mérito é muito cristalino. Tentar eles tentam. Uns limitam-se aos xingamentos; outros, mais elaborados, tecem teses para demonstrar que a meritocracia é um truque usado pelas classes mais ricas para manter seu status quo. Um exemplo desses argumentos pode ser encontrado nesses textos de Renato Santos de Souza (UFSM/RS) aqui e aqui. Junto com a meritocracia, demoniza-se a classe média brasileira.
Quanto a mim, prefiro passar ao largo dessa discussão sociológica. Mesmo porque discutir a justiça da meritocracia é inútil desde o princípio, uma vez que a meritocracia jamais foi um valor moral, mas simplesmente um método de gestão. Como tal, seu propósito não é fazer justiça, mas produzir um resultado. O próprio conceito de mérito é subjetivo: alguns indivíduos, com certeza, se acham cheios de virtudes e merecedores de prêmio, já outros discordam. Mas há uma logicidade autoevidente na meritocracia: é o que eu chamo o Axioma do Time de Futebol. Em uma equipe de futebol, todos evidentemente querem ser os titulares, mas se não puderem sê-lo, preferem que os titulares sejam os melhores entre eles, pois é melhor ser reserva de um time vencedor do que de um time perdedor. Tal dilema se repete na vida prática. Em qualquer ramo de atividade de interesse geral para o país inteiro - por exemplo, na seleção de alunos para uma universidade ou para vagas de um emprego - a dita atividade será melhor desempenhada se forem favorecidos aqueles que têm melhor condição de desempenhá-la, independente de sua raça ou classe social. Se a atividade for desempenhada por indivíduos menos qualificados, o resultado será mais fraco, e isso, em algum grau, prejudicará a população como um todo, independente de raça ou classe social. Difícil é dizer em que grau isso ocorrerá, mas que haverá um resultado pior, isso haverá. É líquido e certo, independente de ideologias ou do juízo moral que se faça da meritocracia.
É justo? Não, não é. Também não é justo que o fogo queime e a água molhe, mas o caso é que o fogo queima e a água molha. A meritocracia não é justa, mas é racional. O destino inevitável de todos os países que desprezam a meritocracia é afundar na mediocridade e na pobreza - dizer isso chega a ser um pleonasmo, porque a mediocridade sempre se traduz em pobreza. Simetricamente, o talento atrai a riqueza, então sempre se poderá invocar o argumento de que o mérito é uma impostura dos ricos para preservar seus privilégios. Mas os fatos históricos estão à vista: os únicos exemplos de países que saltaram do terceiro mundo para o primeiro mundo são os países do sudeste asiático, que conseguiram esse resultado graças a uma rígida meritocracia que começa na escola e segue pela vida profissional afora. A receita é trabalhosa, mas simples em sua concepção: privilegiando os indivíduos mais talentosos, o trabalho deles potencializará a geração de riquezas, o que beneficiará a todos, inclusive aqueles que não são talentosos.
Mas a História também mostra abundantes exemplos de grupos e classes de indivíduos que mostraram total incapacidade de enxergar as mudanças que se processavam bem à sua frente, e foi assim que o Brasil e a América Latina deixaram de ser a região emergente do globo por excelência, posto que hoje cabe aos meritocráticos países do leste asiático. O ódio à meritocracia é mais uma faceta do profundo ódio de nossos intelectuais à toda e qualquer desigualdade que se apresente em um eixo superior/inferior, ainda que essa desigualdade seja resultado de fatores inatos que nada tenham a ver com posição social - afinal, o pobre também consegue coisas com seu esforço. Ignoro se a atual campanha de desonra ao mérito vai conseguir seu objetivo de subverter a conotação elogiosa deste vocábulo, mas é uma aposta perigosa: se não der certo, o efeito pode ser o oposto, como cuspir para o céu. Podem grudar na própria testa as etiquetas invejoso e recalcado.
Veremos.
O truque já deu certo com outras palavras, por exemplo, higienismo, que no princípio do século passado denotava uma elogiosa disposição para o saneamento urbano, e hoje evoca discriminação e racismo. Ignoro se vai funcionar com a meritocracia - o sentido elogioso do mérito é muito cristalino. Tentar eles tentam. Uns limitam-se aos xingamentos; outros, mais elaborados, tecem teses para demonstrar que a meritocracia é um truque usado pelas classes mais ricas para manter seu status quo. Um exemplo desses argumentos pode ser encontrado nesses textos de Renato Santos de Souza (UFSM/RS) aqui e aqui. Junto com a meritocracia, demoniza-se a classe média brasileira.
Quanto a mim, prefiro passar ao largo dessa discussão sociológica. Mesmo porque discutir a justiça da meritocracia é inútil desde o princípio, uma vez que a meritocracia jamais foi um valor moral, mas simplesmente um método de gestão. Como tal, seu propósito não é fazer justiça, mas produzir um resultado. O próprio conceito de mérito é subjetivo: alguns indivíduos, com certeza, se acham cheios de virtudes e merecedores de prêmio, já outros discordam. Mas há uma logicidade autoevidente na meritocracia: é o que eu chamo o Axioma do Time de Futebol. Em uma equipe de futebol, todos evidentemente querem ser os titulares, mas se não puderem sê-lo, preferem que os titulares sejam os melhores entre eles, pois é melhor ser reserva de um time vencedor do que de um time perdedor. Tal dilema se repete na vida prática. Em qualquer ramo de atividade de interesse geral para o país inteiro - por exemplo, na seleção de alunos para uma universidade ou para vagas de um emprego - a dita atividade será melhor desempenhada se forem favorecidos aqueles que têm melhor condição de desempenhá-la, independente de sua raça ou classe social. Se a atividade for desempenhada por indivíduos menos qualificados, o resultado será mais fraco, e isso, em algum grau, prejudicará a população como um todo, independente de raça ou classe social. Difícil é dizer em que grau isso ocorrerá, mas que haverá um resultado pior, isso haverá. É líquido e certo, independente de ideologias ou do juízo moral que se faça da meritocracia.
É justo? Não, não é. Também não é justo que o fogo queime e a água molhe, mas o caso é que o fogo queima e a água molha. A meritocracia não é justa, mas é racional. O destino inevitável de todos os países que desprezam a meritocracia é afundar na mediocridade e na pobreza - dizer isso chega a ser um pleonasmo, porque a mediocridade sempre se traduz em pobreza. Simetricamente, o talento atrai a riqueza, então sempre se poderá invocar o argumento de que o mérito é uma impostura dos ricos para preservar seus privilégios. Mas os fatos históricos estão à vista: os únicos exemplos de países que saltaram do terceiro mundo para o primeiro mundo são os países do sudeste asiático, que conseguiram esse resultado graças a uma rígida meritocracia que começa na escola e segue pela vida profissional afora. A receita é trabalhosa, mas simples em sua concepção: privilegiando os indivíduos mais talentosos, o trabalho deles potencializará a geração de riquezas, o que beneficiará a todos, inclusive aqueles que não são talentosos.
Mas a História também mostra abundantes exemplos de grupos e classes de indivíduos que mostraram total incapacidade de enxergar as mudanças que se processavam bem à sua frente, e foi assim que o Brasil e a América Latina deixaram de ser a região emergente do globo por excelência, posto que hoje cabe aos meritocráticos países do leste asiático. O ódio à meritocracia é mais uma faceta do profundo ódio de nossos intelectuais à toda e qualquer desigualdade que se apresente em um eixo superior/inferior, ainda que essa desigualdade seja resultado de fatores inatos que nada tenham a ver com posição social - afinal, o pobre também consegue coisas com seu esforço. Ignoro se a atual campanha de desonra ao mérito vai conseguir seu objetivo de subverter a conotação elogiosa deste vocábulo, mas é uma aposta perigosa: se não der certo, o efeito pode ser o oposto, como cuspir para o céu. Podem grudar na própria testa as etiquetas invejoso e recalcado.
Veremos.
terça-feira, 19 de julho de 2016
O PT caiu em sua esparrela?
No incerto momento atual, um mistério que ainda não foi desvendado é: qual foi o real agente causador da rápida queda (até agora) do PT, o partido que poucos anos atrás governava o país com amplo respaldo? O mistério fica ainda mais intrigante quando se contata que os principais protagonistas dessa queda foram indivíduos que foram imbuídos de poder pelo próprio PT, indivíduos que em teoria seriam aliados - gente como o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa e as turmas do Ministério Público e da Polícia Federal.
O caso é esse: uma das características fundamentais dos governos de esquerda sempre foi o crescimento do setor estatal, o aumento do número de burocratas, o aparelhamento de todos os órgãos da administração pública com funcionários estritamente fiéis ao governo, visando ampliar o controle da autoridade do Estado - ou do partido - sobre todas as esferas da sociedade. O PT promoveu vários concursos públicos e incrementou sobretudo o pessoal do MPF e da PF. Mas ao contrário do previsto, esses funcionários não reproduziram a tradicional subserviência ao governo. Em alguns casos, mostraram-se mesmo como algozes do governo. O que aconteceu de errado? Ou deveríamos perguntar, o que aconteceu de certo?
Mudou o país ou mudaram os funcionários?
Um artigo publicado aqui procura analisar esse fenômeno, atribuindo-o a uma nova geração de "concurseiros", jovens que, na apreciação do autor, entraram no serviço público atraídos pelos altos salários iniciais e pela autoridade do cargo. Essa nova geração teria, então, quebrado os valores tradicionais do funcionalismo público, substituindo-os pelos valores "coxinhas". Por valores tradicionais entenda-se a mentalidade do antigo barnabé, aquele que começava a carreira por baixo, ganhando menos do que na iniciativa privada, e ia subindo devagar à medida em que assimilava os valores da corporação, agindo sempre como um dócil peão da inteira confiança do governo.
O artigo é bastante preconceituoso e foi contestado inclusive por muitos comentaristas de esquerda, como pode ser observado por quem seguir o link. Mas uma questão fica no ar. Como pôde o PT ser traído justamente por seus favoritos, a turma que almeja viver do Estado, aqueles que só entraram no Estado graças aos concursos que o próprio PT lançou?
A resposta não é fácil, e acredito que ainda levará algum tempo para ser encontrada. Por enquanto fica só a impressão de que o PT caiu em sua esparrela: montou a máquina e perdeu o controle sobre ela. Tal como o aprendiz de feiticeiro, começou a mágica e não soube pará-la. Uma coisa, porém, é certa: funcionários públicos nunca devem ter poder excessivo, e sobretudo, nunca devem ganhar mais do que seus símiles da iniciativa privada. Isso é uma contradição, pois não são os servidores públicos que produzem a riqueza do país - sua função não é essa - mas os cidadãos e empresas privados que pagam impostos. Por conseguinte, só há recursos para concursos e bons salários para o funcionalismo onde e quando os cidadãos e empresas privados são prósperos. Do contrário, se estará criando uma situação que não é sustentável indefinidamente, como sempre ocorre quando o gasto supera a provisão. Qualquer governo que embarque nessa onda, de um modo ou de outro, cedo ou tarde, acabará caindo em sua esparrela.
O caso é esse: uma das características fundamentais dos governos de esquerda sempre foi o crescimento do setor estatal, o aumento do número de burocratas, o aparelhamento de todos os órgãos da administração pública com funcionários estritamente fiéis ao governo, visando ampliar o controle da autoridade do Estado - ou do partido - sobre todas as esferas da sociedade. O PT promoveu vários concursos públicos e incrementou sobretudo o pessoal do MPF e da PF. Mas ao contrário do previsto, esses funcionários não reproduziram a tradicional subserviência ao governo. Em alguns casos, mostraram-se mesmo como algozes do governo. O que aconteceu de errado? Ou deveríamos perguntar, o que aconteceu de certo?
Mudou o país ou mudaram os funcionários?
Um artigo publicado aqui procura analisar esse fenômeno, atribuindo-o a uma nova geração de "concurseiros", jovens que, na apreciação do autor, entraram no serviço público atraídos pelos altos salários iniciais e pela autoridade do cargo. Essa nova geração teria, então, quebrado os valores tradicionais do funcionalismo público, substituindo-os pelos valores "coxinhas". Por valores tradicionais entenda-se a mentalidade do antigo barnabé, aquele que começava a carreira por baixo, ganhando menos do que na iniciativa privada, e ia subindo devagar à medida em que assimilava os valores da corporação, agindo sempre como um dócil peão da inteira confiança do governo.
O artigo é bastante preconceituoso e foi contestado inclusive por muitos comentaristas de esquerda, como pode ser observado por quem seguir o link. Mas uma questão fica no ar. Como pôde o PT ser traído justamente por seus favoritos, a turma que almeja viver do Estado, aqueles que só entraram no Estado graças aos concursos que o próprio PT lançou?
A resposta não é fácil, e acredito que ainda levará algum tempo para ser encontrada. Por enquanto fica só a impressão de que o PT caiu em sua esparrela: montou a máquina e perdeu o controle sobre ela. Tal como o aprendiz de feiticeiro, começou a mágica e não soube pará-la. Uma coisa, porém, é certa: funcionários públicos nunca devem ter poder excessivo, e sobretudo, nunca devem ganhar mais do que seus símiles da iniciativa privada. Isso é uma contradição, pois não são os servidores públicos que produzem a riqueza do país - sua função não é essa - mas os cidadãos e empresas privados que pagam impostos. Por conseguinte, só há recursos para concursos e bons salários para o funcionalismo onde e quando os cidadãos e empresas privados são prósperos. Do contrário, se estará criando uma situação que não é sustentável indefinidamente, como sempre ocorre quando o gasto supera a provisão. Qualquer governo que embarque nessa onda, de um modo ou de outro, cedo ou tarde, acabará caindo em sua esparrela.
terça-feira, 5 de julho de 2016
Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes - II
Prosseguindo a leitura do Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes, de Paulo Schmidt, o autor classifica Rodrigues Alves entre os raros bons presidentes do país. Parece-me correto. Rodrigues Alves se encaixa naquela categoria dos que foram muito combatidos em sua época, mas a quem a posteridade fez justiça. Tomou enérgicas providências para sanear e dotar de infraestrutura urbana a capital, e teve que enfrentar a triste Revolta da Vacina, gesto de desespero de um povo ignorante habilmente manipulado por líderes ambiciosos que nada tinham de ignorante - foi o último suspiro do nefasto positivismo que assolou o governo Floriano. Por pouco os professores de História livraram-se do vexame de ter que ensinar a seus alunos que um presidente foi deposto por haver querido livrar seu povo das doenças. Vendo-se hoje os resultados das obras de Rodrigues Alves, nota-se que os sacrifícios que impôs à população foram amplamente compensatórios. E ele conta ainda com o mérito de haver-se oposto ao Convênio de Taubaté, vergonhoso arranjo que transformou o contribuinte brasileiro em avalista dos cafeicultores.
Seu sucessor , o mineiro Afonso Pena, foi uma figura ambígua. Procurou separar política e administração, dando preferência a essa última, mas deixou-se enredar por Pinheiro Machado, sob cujos auspícios foi eleito, mas que ao final de seu governo já tinha tomado as rédeas da sucessão, deixando o presidente isolado. Afonso Pena provavelmente julgou que se fizesse as concessões que seus aliados queriam, eles o deixariam livre para tocar a administração do jeito que ele desejava. Mas a História ensina que sempre que administração e política entram em conflito, prevalece esta última. Outro erro foi ter ratificado o Convênio de Taubaté, o que deixou a economia condenada a longo prazo.
Seu sucessor, Nilo Peçanha, é outro que pertence à categoria dos injustiçados. De origem modesta, procurou fazer um bom governo, mas tal como Afonso Pena, caiu no erro de julgar que podia enredar Pinheiro Machado. Merecia da História um tratamento mais benigno.
A figura mais poderosa da época, entretanto, não foi um presidente, mas o senador Pinheiro Machado, que soube habilmente juntar em suas mãos as cartas marcadas do jogo político da República Velha. Seu propósito era derrubar o esquema do café-com-leite, apelido dado à hegemonia dos estados de São Paulo e Minas Gerais, e substituí-lo pela hegemonia de um partido nacional totalmente controlado por ele próprio. Para esse fim, fez presidente o marechal Hermes da Fonseca, astro sem luz própria que prestava-se bem como joguete. Hermes reintroduziu as ações armadas na política, sob o nome de Política das Salvações, depondo pela força numerosos governadores que não haviam entrado para o partido fundado por Pinheiro Machado. Mas quando quis estender as "salvações" ao estado do Ceará, governado por um aliado de Pinheiro Machado, não tardou a ver quem mandava ali. Derrotado e desmoralizado, saiu do governo como figura caricata. Só teve uma coisa boa: sua derrocada foi de tal modo fragorosa, que acabou arrastando junto seu patrono, o senador Pinheiro Machado.
Wenceslau Braz chegou ao governo para restabelecer o café-com-leite, pondo fim ao pinheirismo. Correspondendo bem ao estereótipo do político mineiro, foi discreto, mas fez coisas importantes. Politicamente conservador, mas moderado, adepto dos acordos em lugar das intervenções nos estados tão a gosto de seu antecessor. Mostrou-se eficiente em gestão de crises, e não teve refresco: seu governo foi conhecido como o governo dos três G´s: Guerra, Gripe e Greve. Em razão de sua habilidade como negociador, deixou a seu sucessor um país com um grau maior de paz política, que no entanto não duraria muito tempo. Penso que seu maior mérito foi não ter querido ser mais do que era.
Delfim Moreira foi o único louco diagnosticado a governar o país. Penso que tivemos outros presidentes loucos, mas não diagnosticados.
Epitácio Pessoa foi o típico político medíocre. Chegou ao poder somente porque paulistas e mineiros não chegaram a um acordo quando ao candidato. Colecionador de mordomias e aposentadorias, autoritário, marcou o início do declínio da República Velha. Nas palavras de Paulo Schmidt, substituiu a política dos governadores pela política dos presidentes, dando início ao ciclo de presidentes autoritários que elevariam a temperatura política até a incineração final do regime.
Artur Bernardes foi uma figura sombria, o que se deixa perceber até em sua fisionomia, com aquele olhar duro e os lábios tão inexpressivos que parecem desenhados a lápis. Violento e mesmo cruel, governou quase o mandato inteiro sob estado de sítio, e mandava seus prisioneiros para um campo de concentração próximo à fronteira com a Guiana Francesa, não distante da Ilha do Diabo, aquela mesma do Papillon. Em sua defesa, pode ser dito que teve que enfrentar inimigos bem sujos. Antes mesmo de ser eleito, conspiradores divulgaram cartas falsas procurando indispô-lo com os militares. Não deu certo, e pela segunda vez (a primeira foi na revolta da vacina) nossos professores de História escaparam de um vexame, este de ter que ensinar que no Brasil basta um falsário para derrubar um presidente. Em seu governo eclodiu também o movimento tenentista, visto na época como idealista e regenerador. Mas os antigos tenentes viriam e embicar por utopias totalitárias, entre o fascismo e o comunismo, e já convertidos em coronéis e generais despidos do idealismo da juventude, atravessariam o século 20 conspirando contra diversos governos, e terminando por impor uma ditadura em 1964. Por aí vê-se que Artur Bernardes não deixou de ter motivos para bater neles com tanta força.
Washington Luiz foi uma figura algo melancólica, própria para assinalar o fim de uma dinastia. Credenciado por um bom governo em São Paulo, assumiu sob um clima de otimismo, embora possa ser dito que depois de Artur Bernardes, qualquer presidente seria bem vindo. Mas procurou fazer um governo de pacificação e realizações. Atingido em cheio pela crise de 1929, mudou o rumo em direção ao endurecimento, e pau que não verga, quebra.
Depois falarei da Era Vargas.
Seu sucessor , o mineiro Afonso Pena, foi uma figura ambígua. Procurou separar política e administração, dando preferência a essa última, mas deixou-se enredar por Pinheiro Machado, sob cujos auspícios foi eleito, mas que ao final de seu governo já tinha tomado as rédeas da sucessão, deixando o presidente isolado. Afonso Pena provavelmente julgou que se fizesse as concessões que seus aliados queriam, eles o deixariam livre para tocar a administração do jeito que ele desejava. Mas a História ensina que sempre que administração e política entram em conflito, prevalece esta última. Outro erro foi ter ratificado o Convênio de Taubaté, o que deixou a economia condenada a longo prazo.
Seu sucessor, Nilo Peçanha, é outro que pertence à categoria dos injustiçados. De origem modesta, procurou fazer um bom governo, mas tal como Afonso Pena, caiu no erro de julgar que podia enredar Pinheiro Machado. Merecia da História um tratamento mais benigno.
A figura mais poderosa da época, entretanto, não foi um presidente, mas o senador Pinheiro Machado, que soube habilmente juntar em suas mãos as cartas marcadas do jogo político da República Velha. Seu propósito era derrubar o esquema do café-com-leite, apelido dado à hegemonia dos estados de São Paulo e Minas Gerais, e substituí-lo pela hegemonia de um partido nacional totalmente controlado por ele próprio. Para esse fim, fez presidente o marechal Hermes da Fonseca, astro sem luz própria que prestava-se bem como joguete. Hermes reintroduziu as ações armadas na política, sob o nome de Política das Salvações, depondo pela força numerosos governadores que não haviam entrado para o partido fundado por Pinheiro Machado. Mas quando quis estender as "salvações" ao estado do Ceará, governado por um aliado de Pinheiro Machado, não tardou a ver quem mandava ali. Derrotado e desmoralizado, saiu do governo como figura caricata. Só teve uma coisa boa: sua derrocada foi de tal modo fragorosa, que acabou arrastando junto seu patrono, o senador Pinheiro Machado.
Wenceslau Braz chegou ao governo para restabelecer o café-com-leite, pondo fim ao pinheirismo. Correspondendo bem ao estereótipo do político mineiro, foi discreto, mas fez coisas importantes. Politicamente conservador, mas moderado, adepto dos acordos em lugar das intervenções nos estados tão a gosto de seu antecessor. Mostrou-se eficiente em gestão de crises, e não teve refresco: seu governo foi conhecido como o governo dos três G´s: Guerra, Gripe e Greve. Em razão de sua habilidade como negociador, deixou a seu sucessor um país com um grau maior de paz política, que no entanto não duraria muito tempo. Penso que seu maior mérito foi não ter querido ser mais do que era.
Delfim Moreira foi o único louco diagnosticado a governar o país. Penso que tivemos outros presidentes loucos, mas não diagnosticados.
Epitácio Pessoa foi o típico político medíocre. Chegou ao poder somente porque paulistas e mineiros não chegaram a um acordo quando ao candidato. Colecionador de mordomias e aposentadorias, autoritário, marcou o início do declínio da República Velha. Nas palavras de Paulo Schmidt, substituiu a política dos governadores pela política dos presidentes, dando início ao ciclo de presidentes autoritários que elevariam a temperatura política até a incineração final do regime.
Artur Bernardes foi uma figura sombria, o que se deixa perceber até em sua fisionomia, com aquele olhar duro e os lábios tão inexpressivos que parecem desenhados a lápis. Violento e mesmo cruel, governou quase o mandato inteiro sob estado de sítio, e mandava seus prisioneiros para um campo de concentração próximo à fronteira com a Guiana Francesa, não distante da Ilha do Diabo, aquela mesma do Papillon. Em sua defesa, pode ser dito que teve que enfrentar inimigos bem sujos. Antes mesmo de ser eleito, conspiradores divulgaram cartas falsas procurando indispô-lo com os militares. Não deu certo, e pela segunda vez (a primeira foi na revolta da vacina) nossos professores de História escaparam de um vexame, este de ter que ensinar que no Brasil basta um falsário para derrubar um presidente. Em seu governo eclodiu também o movimento tenentista, visto na época como idealista e regenerador. Mas os antigos tenentes viriam e embicar por utopias totalitárias, entre o fascismo e o comunismo, e já convertidos em coronéis e generais despidos do idealismo da juventude, atravessariam o século 20 conspirando contra diversos governos, e terminando por impor uma ditadura em 1964. Por aí vê-se que Artur Bernardes não deixou de ter motivos para bater neles com tanta força.
Washington Luiz foi uma figura algo melancólica, própria para assinalar o fim de uma dinastia. Credenciado por um bom governo em São Paulo, assumiu sob um clima de otimismo, embora possa ser dito que depois de Artur Bernardes, qualquer presidente seria bem vindo. Mas procurou fazer um governo de pacificação e realizações. Atingido em cheio pela crise de 1929, mudou o rumo em direção ao endurecimento, e pau que não verga, quebra.
Depois falarei da Era Vargas.
segunda-feira, 27 de junho de 2016
Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes - I
Estou lendo o Guia Politicamente Incorreto dos presidentes do Brasil, de Paulo Schmidt. Seguindo a linha dos guias politicamente incorretos lançada por Leandro Narloch, não se trata de historiografia - não lança nenhum dado novo - mas de uma sátira enfatizando determinados aspectos da biografia dos presidentes, que sempre foram conhecidos mas nunca propriamente destacados pela historiografia oficial.
É uma leitura leve e divertida, mas eu procuro extrair o que é pertinente. Quem procura motivos para escarnecer dos presidentes por certo encontrará aí um prato feito, mas isso não me admira: todos os vultos históricos, sejam brasileiros ou de qualquer outra nacionalidade, se examinados com a acuidade suficiente revelam-se não mais que pessoas comuns, com seus erros e fraquezas, muitos devendo sua notoriedade menos ao talento pessoal do que à circunstância de estar no lugar certo na hora certa. A diferença entre eles e o comum dos mortais é que a narrativa histórica preocupou-se mais com os efeitos duradouros de seus atos do que com suas personalidades, de modo que as mesquinhezas e defeitos de suas vidas privadas foram esquecidos. Mas há sempre uma correlação entre o público e o privado.
Começando por Deodoro da Fonseca, o autor expõe aquilo que sempre se soube: o fundador da república nunca foi um republicano. Movido por interesses mesquinhos e contendas pessoais com figurões da política, deixou-se servir de joguete para os cafeicultores paulistas que queriam ascender ao poder mas não tinham espaço no sistema eleitoral do império, viciado por fraudes e de renovação lenta, com muitos cargos vitalícios ocupados por indivíduos oriundos de regiões que haviam sido economicamente importantes no passado, mas que estavam decadentes. Homem medíocre, Deodoro saiu melancolicamente da presidência, jogando no colo de seu sucessor um país em crise econômica e guerra civil. O autor chama a atenção também para um episódio pouco conhecido do período: o último gabinete do império, do visconde de Ouro Preto, estava efetivamente engajado em um amplo projeto de reformas que poderiam ter revigorado a monarquia brasileira, e mesmo lançado o país vários passos à frente da república - o projeto incluía até reforma agrária! Falácia? Com certeza. Mas dez anos antes, a abolição da escravatura mediante votação no parlamento também era falácia...
Floriano Peixoto, embora enaltecido com portentosos adjetivos nos livros escolares - o Marechal de Ferro - é mostrado em toda a extensão de sua mediocridade: um soldado rude, desprovido de ideias ou projetos, que embora tenha deixado um bom séquito de seguidores autodenominados florianistas, desconhece-se qual corpo de ideias os embasava - se Floriano deixou algum, não foi por escrito.
Prudente de Morais frequentemente "passa batido" nos livros escolares, mas o autor expõe a importância de seu papel em por fim às lutas despertadas por seus antecessores e organizar uma precária institucionalidade. Seu mandato ficou manchado pelo massacre de Canudos, mas o autor destaca que o recrudescimento do conflito ocorreu quando Prudente estava afastado por doença e o governo estava nas mãos de seu vice, Manoel Vitorino. Quando Prudente reassumiu o cargo, toda solução pacífica já havia se tornado inviável. Ao final de seu mandato, Prudente mostrou autoridade e mandou para a cadeia os últimos renitentes conspiradores florianistas.
O autor é bem crítico em relação a Campos Salles, o verdadeiro fundador da República Velha, leia-se o criador dos protocolos da política viciada que prevaleceram até o final deste período, da política dos governadores ao café com leite. Agindo como um aristocrata e oligarca na mais legítima acepção do termo, desta forma Campos Salles matou no nascedouro qualquer viabilidade democrática para a nascente república. Mas faltou destacar seu papel em reconstruir a economia e a credibilidade internacional do país após a fenomenal desordem legada pelo "encilhamento" de Ruy Barbosa, cujos efeitos nefastos ainda se faziam sentir.
Estou lendo agora Rodrigues Alves.
É uma leitura leve e divertida, mas eu procuro extrair o que é pertinente. Quem procura motivos para escarnecer dos presidentes por certo encontrará aí um prato feito, mas isso não me admira: todos os vultos históricos, sejam brasileiros ou de qualquer outra nacionalidade, se examinados com a acuidade suficiente revelam-se não mais que pessoas comuns, com seus erros e fraquezas, muitos devendo sua notoriedade menos ao talento pessoal do que à circunstância de estar no lugar certo na hora certa. A diferença entre eles e o comum dos mortais é que a narrativa histórica preocupou-se mais com os efeitos duradouros de seus atos do que com suas personalidades, de modo que as mesquinhezas e defeitos de suas vidas privadas foram esquecidos. Mas há sempre uma correlação entre o público e o privado.
Começando por Deodoro da Fonseca, o autor expõe aquilo que sempre se soube: o fundador da república nunca foi um republicano. Movido por interesses mesquinhos e contendas pessoais com figurões da política, deixou-se servir de joguete para os cafeicultores paulistas que queriam ascender ao poder mas não tinham espaço no sistema eleitoral do império, viciado por fraudes e de renovação lenta, com muitos cargos vitalícios ocupados por indivíduos oriundos de regiões que haviam sido economicamente importantes no passado, mas que estavam decadentes. Homem medíocre, Deodoro saiu melancolicamente da presidência, jogando no colo de seu sucessor um país em crise econômica e guerra civil. O autor chama a atenção também para um episódio pouco conhecido do período: o último gabinete do império, do visconde de Ouro Preto, estava efetivamente engajado em um amplo projeto de reformas que poderiam ter revigorado a monarquia brasileira, e mesmo lançado o país vários passos à frente da república - o projeto incluía até reforma agrária! Falácia? Com certeza. Mas dez anos antes, a abolição da escravatura mediante votação no parlamento também era falácia...
Floriano Peixoto, embora enaltecido com portentosos adjetivos nos livros escolares - o Marechal de Ferro - é mostrado em toda a extensão de sua mediocridade: um soldado rude, desprovido de ideias ou projetos, que embora tenha deixado um bom séquito de seguidores autodenominados florianistas, desconhece-se qual corpo de ideias os embasava - se Floriano deixou algum, não foi por escrito.
Prudente de Morais frequentemente "passa batido" nos livros escolares, mas o autor expõe a importância de seu papel em por fim às lutas despertadas por seus antecessores e organizar uma precária institucionalidade. Seu mandato ficou manchado pelo massacre de Canudos, mas o autor destaca que o recrudescimento do conflito ocorreu quando Prudente estava afastado por doença e o governo estava nas mãos de seu vice, Manoel Vitorino. Quando Prudente reassumiu o cargo, toda solução pacífica já havia se tornado inviável. Ao final de seu mandato, Prudente mostrou autoridade e mandou para a cadeia os últimos renitentes conspiradores florianistas.
O autor é bem crítico em relação a Campos Salles, o verdadeiro fundador da República Velha, leia-se o criador dos protocolos da política viciada que prevaleceram até o final deste período, da política dos governadores ao café com leite. Agindo como um aristocrata e oligarca na mais legítima acepção do termo, desta forma Campos Salles matou no nascedouro qualquer viabilidade democrática para a nascente república. Mas faltou destacar seu papel em reconstruir a economia e a credibilidade internacional do país após a fenomenal desordem legada pelo "encilhamento" de Ruy Barbosa, cujos efeitos nefastos ainda se faziam sentir.
Estou lendo agora Rodrigues Alves.
sexta-feira, 10 de junho de 2016
Gigantes do Brasil
O canal History, que já apresentou uma série de reportagens intitulada Gigantes da Indústria contando a trajetória dos pioneiros industriais e mega-empresários norte-americanos, agora está apresentando uma produção contando a história de nossos empreendedores pioneiros, Gigantes do Brasil.
Vem em boa hora nesse momento em que o país está em crise e está sendo questionado, mais do que um governo, um modelo de desenvolvimento. Agora que vivemos o ocaso do desenvolvimentismo nacional-estatista varguista, é oportuno recordar o que acontecia antes desta fase histórica, e como se conduziam nossos pioneiros visionários. A produção é bem cuidada, a reconstituição de época muito bem feita, e são mostrados detalhes biográficos de quatro personagens escolhidos: Matarazzo, Martinelli, Farquhar e Guinle. Esta amostra já permite algumas inferências: o que os tais gigantes do Brasil tinham em comum uns com os outros? Quais são as semelhanças e as diferenças entre eles e os gigantes da indústria norte-americanos mostrados anteriormente?
Duas características que notei logo nos personagens brasileiros foram, primeiro, que a maioria deles começou pobre, ou ao menos vinda de um patamar bem mais modesto; segundo, que a maioria deles nasceu fora do país: Matarazzo e Martinelli eram italianos, e Farquhar norte-americano. Vale dizer que durante boa parte de suas carreiras eles conheceram o capitalismo mais elementar, aquele onde o contato entre comerciante e cliente é pessoal, separados apenas por um balcão, ou nem isso quando trabalhavam como mascates. Não há interferência de políticos. Mesmo depois quando já eram magnatas e frequentavam gabinetes de altas autoridades, a impressão que fica é que eram mais joguetes do que manipuladores, e nesse aspecto eles se diferenciam dramaticamente dos gigantes da indústria norte-americanos, os famosos Barões Ladrões que floresceram na Gilded Age com a política na mão e os políticos no bolso, dando origem a numerosos trustes que desfilariam seu poder pelo século 20 adentro.
É uma conclusão curiosa: então os industriais brasileiros, que hoje vivem na parceria com o Estado dirigista, terminaram por onde os norte-americanos começaram? É preciso analisar com cuidado para não se cair na armadilha de falsas analogias. No final do século 19, os políticos já eram corruptos, mas o Estado ainda não era dirigista. Os empreendedores norte-americanos não podiam se esquivar de ter boas relações com os políticos, mesmo porque em boa parte atuavam em áreas que dependiam de concessões do governo, como ferrovias e petróleo. Sem dúvida que estavam cientes de representar o Poder Econômico na mais legítima acepção do termo, naqueles anos de auge da revolução industrial. O mesmo não se diz dos seus equivalentes brasileiros, que na mesma época atuavam geralmente em áreas estritamente privadas e ignoradas pelo poder público, e com certeza estavam cientes de que o verdadeiro Poder Econômico do país não era representado por aqueles industriais incipientes, mas pelos fazendeiros de café que povoavam os gabinetes. Tal como seu distante predecessor, o Barão de Mauá, estavam tão sujeitos aos humores da política quanto um barquinho de papel no mar, e podiam passar da riqueza à pobreza mediante uma decisão de um ministro qualquer.
Fossem esses homens heróis ou vilões, esta fase por assim dizer heróica do capitalismo brasileiro esvaneceu-se a partir da Era Vargas. Desde então a indústria brasileira experimentou um desenvolvimento extraordinário, mas impessoal, sem "gigantes". O Estado tornou-se o indutor do desenvolvimento, e para os empresários grandes ou pequenos a fórmula do sucesso passou a ser o bom trânsito junto às autoridades governamentais. Não se ouviu mais falar de histórias de meninos que começavam como mascates e legavam a seus herdeiros um vasto império - de fato, quando os sobrenomes desses capitães de indústria voltaram a frequentar os noticiários, foi para informar escândalos de corrupção e prisões. O último grande capitalista brasileiro, Eike Batista, soçobrou junto com o nacional-estatismo ao qual devera sua ascenção, na verdade puxado pelo pai, Eliézer.
No início da Era Vargas, poucos duvidavam de que a ação de um Estado forte era indispensável para se alavancar o crescimento industrial em um país agrário e dominado por oligarquias provinciais. Hoje, porém, observando-se a economia e os escândalos, poucos também duvidam que o nacional-estatismo já deu tudo de bom que podia dar. Nossa elite industrial agora é um séquito de empresários amigos-do-rei, compondo-se com uma elite política de burocratas de empresas estatais à qual se junta uma elite de sindicalistas cooptados, imitando pateticamente as antigas nomenklaturas dos antigos países soviéticos.
Diante deste quadro desalentador, fica comigo a impressão de que a idade de ouro da indústria nacional foi mesmo aquele tempo em que um imigrante chegava aqui sem tostão, montava uma fabriqueta, trabalhava feito um mouro (expressão antiga!) e morria deixando a seus filhos um vasto império. Mas os netos deste empreendedor hoje preferem viver nas abas do Estado. Seja romântica ou não a visão que hoje se tem desses gigantes do passado, sob um aspecto não há dúvida de que eles se diferenciam radicalmente dos empresários atuais: a disposição de correr riscos. A biografia desses senhores mostra que em várias ocasiões eles não hesitaram em apostar todas as suas fichas para lançar um novo empreendimento inédito no país, mesmo quando já estavam razoavelmente estabelecidos em seus negócios. Não foram prudentes, com certeza. Mas nessa hora lembro-me da anedota contada por David Landes em A Riqueza e a Pobreza das Nações. Em meados do século 19, quando a Alemanha ainda era uma região predominantemente agrária, um grupo de empresários locais recorreu à consultoria de um eminente economista britânico. Após uma série de estudos, o consultor expôs sua conclusão: a melhor opção para eles era plantar trigo e centeio, exportá-lo para a Grã-Bretanha e importar manufaturas inglesas.
Tivessem seguido o conselho desse senhor, comenta Landes, os alemães estariam sendo bastante racionais, mas hoje em dia seriam bem pobres. E no entanto, seus cálculos estavam corretos. Só que a opção mais lucrativa do presente pode não ser a do futuro. E redundante é dizer, nada acontece se não há um esforço para que aconteça.
Contemplando os empresários atuais, totalmente avessos ao risco e ávidos pelo guarda-chuva estatal, noto uma enorme semelhança com o cenário de 200 anos atrás, antes da abertura dos portos de Dom João VI: naqueles tempos pré-capitalistas vigorava o sistema conhecido como mercantilismo, no qual apenas o comércio da colônia com a metrópole era permitido, inexistia a livre empresa e a livre concorrência, e toda atividade econômica só era possível com a autorização (alvará régio) e o apoio do rei, que concedia monopólios a seus protegidos. Será que o Brasil chegou ao passado antes de chegar ao futuro?
Vem em boa hora nesse momento em que o país está em crise e está sendo questionado, mais do que um governo, um modelo de desenvolvimento. Agora que vivemos o ocaso do desenvolvimentismo nacional-estatista varguista, é oportuno recordar o que acontecia antes desta fase histórica, e como se conduziam nossos pioneiros visionários. A produção é bem cuidada, a reconstituição de época muito bem feita, e são mostrados detalhes biográficos de quatro personagens escolhidos: Matarazzo, Martinelli, Farquhar e Guinle. Esta amostra já permite algumas inferências: o que os tais gigantes do Brasil tinham em comum uns com os outros? Quais são as semelhanças e as diferenças entre eles e os gigantes da indústria norte-americanos mostrados anteriormente?
Duas características que notei logo nos personagens brasileiros foram, primeiro, que a maioria deles começou pobre, ou ao menos vinda de um patamar bem mais modesto; segundo, que a maioria deles nasceu fora do país: Matarazzo e Martinelli eram italianos, e Farquhar norte-americano. Vale dizer que durante boa parte de suas carreiras eles conheceram o capitalismo mais elementar, aquele onde o contato entre comerciante e cliente é pessoal, separados apenas por um balcão, ou nem isso quando trabalhavam como mascates. Não há interferência de políticos. Mesmo depois quando já eram magnatas e frequentavam gabinetes de altas autoridades, a impressão que fica é que eram mais joguetes do que manipuladores, e nesse aspecto eles se diferenciam dramaticamente dos gigantes da indústria norte-americanos, os famosos Barões Ladrões que floresceram na Gilded Age com a política na mão e os políticos no bolso, dando origem a numerosos trustes que desfilariam seu poder pelo século 20 adentro.
É uma conclusão curiosa: então os industriais brasileiros, que hoje vivem na parceria com o Estado dirigista, terminaram por onde os norte-americanos começaram? É preciso analisar com cuidado para não se cair na armadilha de falsas analogias. No final do século 19, os políticos já eram corruptos, mas o Estado ainda não era dirigista. Os empreendedores norte-americanos não podiam se esquivar de ter boas relações com os políticos, mesmo porque em boa parte atuavam em áreas que dependiam de concessões do governo, como ferrovias e petróleo. Sem dúvida que estavam cientes de representar o Poder Econômico na mais legítima acepção do termo, naqueles anos de auge da revolução industrial. O mesmo não se diz dos seus equivalentes brasileiros, que na mesma época atuavam geralmente em áreas estritamente privadas e ignoradas pelo poder público, e com certeza estavam cientes de que o verdadeiro Poder Econômico do país não era representado por aqueles industriais incipientes, mas pelos fazendeiros de café que povoavam os gabinetes. Tal como seu distante predecessor, o Barão de Mauá, estavam tão sujeitos aos humores da política quanto um barquinho de papel no mar, e podiam passar da riqueza à pobreza mediante uma decisão de um ministro qualquer.
Fossem esses homens heróis ou vilões, esta fase por assim dizer heróica do capitalismo brasileiro esvaneceu-se a partir da Era Vargas. Desde então a indústria brasileira experimentou um desenvolvimento extraordinário, mas impessoal, sem "gigantes". O Estado tornou-se o indutor do desenvolvimento, e para os empresários grandes ou pequenos a fórmula do sucesso passou a ser o bom trânsito junto às autoridades governamentais. Não se ouviu mais falar de histórias de meninos que começavam como mascates e legavam a seus herdeiros um vasto império - de fato, quando os sobrenomes desses capitães de indústria voltaram a frequentar os noticiários, foi para informar escândalos de corrupção e prisões. O último grande capitalista brasileiro, Eike Batista, soçobrou junto com o nacional-estatismo ao qual devera sua ascenção, na verdade puxado pelo pai, Eliézer.
No início da Era Vargas, poucos duvidavam de que a ação de um Estado forte era indispensável para se alavancar o crescimento industrial em um país agrário e dominado por oligarquias provinciais. Hoje, porém, observando-se a economia e os escândalos, poucos também duvidam que o nacional-estatismo já deu tudo de bom que podia dar. Nossa elite industrial agora é um séquito de empresários amigos-do-rei, compondo-se com uma elite política de burocratas de empresas estatais à qual se junta uma elite de sindicalistas cooptados, imitando pateticamente as antigas nomenklaturas dos antigos países soviéticos.
Diante deste quadro desalentador, fica comigo a impressão de que a idade de ouro da indústria nacional foi mesmo aquele tempo em que um imigrante chegava aqui sem tostão, montava uma fabriqueta, trabalhava feito um mouro (expressão antiga!) e morria deixando a seus filhos um vasto império. Mas os netos deste empreendedor hoje preferem viver nas abas do Estado. Seja romântica ou não a visão que hoje se tem desses gigantes do passado, sob um aspecto não há dúvida de que eles se diferenciam radicalmente dos empresários atuais: a disposição de correr riscos. A biografia desses senhores mostra que em várias ocasiões eles não hesitaram em apostar todas as suas fichas para lançar um novo empreendimento inédito no país, mesmo quando já estavam razoavelmente estabelecidos em seus negócios. Não foram prudentes, com certeza. Mas nessa hora lembro-me da anedota contada por David Landes em A Riqueza e a Pobreza das Nações. Em meados do século 19, quando a Alemanha ainda era uma região predominantemente agrária, um grupo de empresários locais recorreu à consultoria de um eminente economista britânico. Após uma série de estudos, o consultor expôs sua conclusão: a melhor opção para eles era plantar trigo e centeio, exportá-lo para a Grã-Bretanha e importar manufaturas inglesas.
Tivessem seguido o conselho desse senhor, comenta Landes, os alemães estariam sendo bastante racionais, mas hoje em dia seriam bem pobres. E no entanto, seus cálculos estavam corretos. Só que a opção mais lucrativa do presente pode não ser a do futuro. E redundante é dizer, nada acontece se não há um esforço para que aconteça.
Contemplando os empresários atuais, totalmente avessos ao risco e ávidos pelo guarda-chuva estatal, noto uma enorme semelhança com o cenário de 200 anos atrás, antes da abertura dos portos de Dom João VI: naqueles tempos pré-capitalistas vigorava o sistema conhecido como mercantilismo, no qual apenas o comércio da colônia com a metrópole era permitido, inexistia a livre empresa e a livre concorrência, e toda atividade econômica só era possível com a autorização (alvará régio) e o apoio do rei, que concedia monopólios a seus protegidos. Será que o Brasil chegou ao passado antes de chegar ao futuro?
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