domingo, 23 de fevereiro de 2025

A Garotinha Alemã e o Menino Brasileiro

Recentemente causou discussão um vídeo mostrando um livro didático alemão para crianças, que exibe em uma página dois exemplos: uma garotinha alemã, aí de uns oito anos, que estuda na escola, faz aula de guitarra depois da classe, e quer ser professora quando crescer; e um menino brasileiro da mesma idade, que não estuda, passa os dias catando comida no lixo e quer ser jogador de futebol quando crescer. Brasileiros que vivem na Alemanha se queixaram que seus filhos foram alvo de zombaria de seus coleguinhas, que até lhes trouxeram comida para caçoar deles.

Normalmente eu não deveria dar importância a um caso assim, mas tem tudo a ver com o momento atual, aliás não apenas na Alemanha.

Até acredito que a intenção dos autores fosse atrair a simpatia das crianças alemãs para os brasileiros pobres, vítimas de graves problema sociais. Mas se o resultado foi atrair o desprezo e o deboche, então esse objetivo não foi atingido. E o motivo fica claro na forma como o assunto foi abordado, estabelecendo um paralelismo: a menina alemã é estudiosa, emprega o seu tempo em coisas úteis e tem propósitos edificantes para o futuro; o menino brasileiro não estuda, prefere catar comida no lixo a trabalhar, e quer ser jogador de futebol. A mensagem sub-reptícia, nada sutil, é que o menino brasileiro é pobre porque é vagabundo.

Os comentários dos brasileiros ao vídeo dividiram-se entre a indignação e a aceitação patética: "é assim mesmo, aquilo existe, os brasileiros estão catando comida no lixo".

Sim, gente fuçando lixo no Brasil existe realmente. Adultos e crianças. A única incorreção é que não catam comida, pois dificilmente encontrariam algo ainda aproveitável em meio ao lixo, mas sim procuram materiais recicláveis para vender. Contudo, se não há dúvida de que isso existe, fica a dúvida se alardear isso para o estrangeiro contribui de alguma maneira para resolver o problema. Muita gente acha isso edificante, tipo fazer uma grave denúncia e revelar ao mundo nossa miséria, como se o mundo a ignorasse, ou talvez apenas experimentem aplacar o sentimento de culpa ao bater no peito. Mas a reação das crianças alemãs escancara bem que tipo de sentimento essa visão induz ao estrangeiro. Se eles se chocassem com a pobreza alheia, não pagariam para fazer tours em nossas favelas.

Esse afã de expor nossa miséria ao estrangeiro é comum sobretudo ao pessoal de esquerda, inclusive nosso presidente, que já chegou a exibir estatísticas afirmando que 37% dos brasileiros passam fome. Querem aforntar as elites, ou talvez cutucar os imperalistas dando a entender que eles têm culpa disto. Fariam melhor se estudassem com mais cuidado o fenômeno do imperialismo no século 19: as potências procuravam retratar os povos colonizados como miseráveis, ignorantes e irresponsáveis, a fim de justificar moralmente sua dominação. Acredito que esse sentimento ainda habita muitos europeus comuns nos dias de hoje.

Com o ar envenenado por antagonismo, racismo e xenofobia em um mundo onde é crescente a tensão contra imigrantes, decididamente não é a hora certa de abordar esses assuntos para crianças.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Deportando Imigrantes

O assunto após a posse de Donald Trump é a deportação de imigrantes ilegais, com direito a imagens de deportados desembarcando algemados em aeroportos brasileiros, relatando maus tratos sofridos. Os clamores variaram de "Aquilo é um atentado aos direitos humanos" até "Eles não são criminosos para serem algemados". Mas aí entramos em um terreno de subjetividade. É incorreto colocar algemas em deportados? Mas tem sido assim desde sempre, inclusive no Brasil, a diferença é que agora há imagens e atenção. Algemas são apenas para criminosos? Bem, tecnicamente, um imigrante ilegal cometeu um crime, pois cruzou a fronteira sem estar autorizado a fazê-lo.
 
Mais proveitoso do que discutir essas questões, é conceituar de maneira isenta o problema da imigração ilegal. Que na verdade não é um problema, mas uma característica indelével do mundo moderno - historicamente, fluxos migratórios são fenômenos persistentes, e não o resultado de crises ocasionais. Só podem ser entendidos à luz da ciência econômica, a Lei da Oferta e da Procura. Alguém quer dar emprego àqueles imigrantes. A situação geral do terceiro mundo, hoje, não é pior do que era a trinta ou cinquenta anos atrás, foi o primeiro mundo que mudou - antes, havia oferta de mão-de-obra local para as ocupações hoje dadas a imigrantes, agora esta oferta desapareceu. A engrenagem-mor deste processo é a transição demográfica, que fez cair o número de nascimentos e escasseou a oferta de mão-de-obra para trabalhos menos especializados, que tradicionalmente são feitos pelos mais jovens e menos experientes. Os imigrantes vem ocupar esses nichos.
 
Mas quem são, afinal, esses imigrantes?
 
A princípio, indivíduos pobres, perseguidos políticos ou fugitivos da violência. Mas os imigrantes oriundos do Brasil parecem ter um perfil diferente, a julgar por este artigo. A entrevistada não é pobre, é formada em administração e largou um emprego em uma multinacional. Sei de brasileiros que pagaram a contrabandistas até cem mil reais, quantia suficiente para inicar um pequeno negócio no Brasil. Entendo que os imigrantes brasileiros tenham um nível sócio-econômico mais alto que os centro-americanos, pois estão bem distantes da fonteira dos EUA e têm que pagar muito mais. Mas se continuam a fazer isso, então é preciso concluir que o que recebem compensa o que pagam - há muita gente ali interessada em lhes dar emprego, como o patrão trumpista da entrevistada.
 
Mas se a imigração é fenômeno antigo nos EUA, as coisas não são mais como antes. É digno de nota que a entrevistada, embora afirme trabalhar na área financeira, não deixa de fazer serviços de babá. Nos tempos da Estátua da Liberdade, os imigrantes subiam rapidamente e se integravam à sociedade. A diferença vem do fato da atual imigração ter como motor a transição demográfica, que ao mesmo tempo que encurta a oferta local de mão-de-obra pouco qualificada, aumenta a presença de indivíduos mais idosos e já estabelecidos no mercado - as vagas para esses empregos de mão-de-obra bem qualificada continuarão exclusivas para os americanos de velha cepa. A consequência é a formação de um vasto setor da população descendente de imigrantes que permanecem não integrados, dando origem a tensões sociais.
 
O atual fenômeno migratório só pode ser compreendido se abordado pelos prismas econômico e demográfico. Se os norte-americanos quisessem mesmo se livrar dos imigrantes, bastaria que começassem a lavar pratos em lanchonetes, recolher lixo, fazer faxinas e cuidar de crianças. Então não seria necessário deportar os estrangeiros, eles iriam embora por conta própria por não terem emprego.