Estamos assistindo agora ao esgotamento do fenômeno iniciado cinco anos atrás, o Fenômeno Bolsonaro, com o ocaso do personagem que há poucos meses esteve a escassos votos de se tornar pela segunda vez presidente do país. Não causa espanto, exceto talvez para o próprio e para seus apoiadores mais próximos, que todo o apoio que supostamete tinha para aventuras golpistas se revelasse pura ilusão. Ignoro que rumo tomará a direita nacional daqui por diante, pois ao que tudo indica, o bolsonarismo morrerá com seu criador, posto que todo movimento político calcado no personalismo se acaba quando se extingue o carisma do personagem.
De fato, desde o início Bolsonaro pareceu uma figura fora de seu tempo, como um holograma projetado de outra época - o extinto regime de 1964, do qual Bolsonaro não participou por não ter idade, mas que sempre idealizou, assim como o fizeram seus apoiadores. O fenômeno em si pode ser considerado o último eco de uma expectativa erigida há mais de 100 anos atrás, desde pouco antes da proclamação da república: a crença de que os militares seriam a reserva moral da nação, cabendo-lhes assumir a função de Poder Moderador sucedendo ao imperador.
Durante todo o período republicano, essa idealização impregnou o imaginário nacional. Formalmente desligados das lides políticas, os militares seriam, portanto, guiados apenas por devoção à pátria. Enquanto exercessem o Poder Moderador, o país estaria livre de impasses sangrentos e guerra civis. Os militares sempre apareceriam para salvar o país de uma situação de perigo, impressão recorrente em diversos momentos da história republicana, o último deles ao final dos governos petistas, quando apareceu Bolsonaro para assumir o papel salvacionista.
Mas se os militares eram tão bons assim, por que não assumiam o poder de uma vez, sucedendo aos políticos profissionais e seus interesses pessoais escusos, ao invés de permanecerem somente no papel de mediadores?
Conforme é sabido, isso aconteceu em 1964. Neste período a mística do poder militar chegou ao auge, mas também foi o início de seu declínio. De fato, o regime começou com um pico - o "milagre", com enorme sucesso econômico, mas que também foi o pico da repressão, e a face feia dos militares não pôde mais ser ocultada. Seguiu-se a crise econômica dos anos 80, a "década perdida", com o desprestígio e o fim do regime, então o encanto foi quebrado. As últimas ações dos militares foram atentados terroristas perpetrados por membros dos órgãos de repressão, na tentativa de recriar um clima de instabilidade que justificasse a manutenção do regime de ditadura. Ficou evidente que o lendário "poder moderador" já se encontrava irremediavelmente corrompido, e seus últimos atores tardios foram em geral oficiais de baixa patente, avessos à disciplina, cujo modo de ação pouco diferia daquele de terroristas, com marcada tendência ao envolvimento com o crime comum, repetindo o que desde muito acontece com a baixa oficialidade das polícias militares.
Foi exatamente neste grupo que Bolsonaro surgiu, ainda capitão, durante o governo Sarney. Avesso à disciplina, chegou a declarar em uma entrevista seu projeto de explodir bombas para chamar a atenção do Ministro do Exército às demandas dos colegas de farda. Abandonando ele próprio a farda e entrando para a política, ficou por longo tempo um outsider, até que a conjunção de fatores políticos criou o fenômeno que o levou à presidência. Foi provado que a mística dos militares "salvadores do país contra os políticos irresponsáveis" ainda estava viva, embora em estado latente, mas seu ressurgimento encarnou com precisão a velha narrativa do drama que se repete como farsa. Bolsonaro teve sua época, ela passou, e cabe-lhe o julgamento da História. Bom ou mau, para o país foi indiscutivelmente um progresso: a crença do "poder moderador" exercido pelos militares é mais um dente-de-leite que cai da boca.
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