sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

O Ministro Nazista e o Sinal dos Tempos

Os últimos dias reservaram ao país uma revelação sensacional: temos um secretário da cultura nazista. E não se trata de mero xingamento, mas de uma acusação comprovada: ele parafraseou um trecho inteiro de um discurso feito por Josef Goebbels em um pronunciamento.

"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada"


O episódio foi um prato cheio para os detratores do presidente Bolsonaro, que teve que demitir o secretário. Então, após tantas vezes a pecha de nazista ser lançada contra o governo, surge a prova cabal!

Pessoalmente não acredito que o secretário fosse um leitor de Goebbels. Ele provavelmente copiou aquele trecho de uma fonte secundária, sem saber que o original era do ministro da propaganda de Hitler. Tampouco alguém, mesmo inimigo ferrenho do governo, leva a sério a acusação de ser o presidente Bolsonaro um nazista. Para início de conversa, a postura de alinhamento da política externa aos EUA nada tem a ver com o afã ultranacionalista e belicista do nazismo. A pecha é apenas uma caricatura. No entanto, o dito episódio aconteceu efetivamente, e se não é uma prova do caráter nazista do governo, é com certeza um sinal dos tempos em que vivemos.

Para bem entender de onde surgiu esta afinidade de um membro do governo atual com um ministro de um regime criado 80 anos atrás na Alemanha, precisamos nos transportar para o contexto histórico em que surgiu o nazismo. Não foi o produto de uma mera crise política ou econômica, mas de algo mais profundo. Uma crise moral e existencial, que acomete um povo inteiro quando este sente estar perdendo seus referenciais e seu destino histórico. Quando isto acontece, a sensação de desamparo leva a população a buscar uma tábua de valores supostamente genuínos, bem como aspirar um futuro glorioso e denunciar traidores e bodes expiatórios supostamente responsáveis pelo estado atual de decadência. As consequências, todos puderam ver após Hitler subir ao poder.

Há alguma semelhança entre a Alemanha dos anos 30 e o Brasil atual? Não se trata certamente do mesmo fenômeno no mesmo grau, mas é forçoso reconhecer, alguma analogia há, sim. Eu já apontei aqui em um artigo passado Afinal, em que Ponto a nossa Cultura de Trumbicou, que a crise brasileira tampouco é meramente política, mas deriva fundamentalmente da cultura. O declínio de nosso nível cultural é flagrante, e isso nada tem a ver com a escolaridade, que todas as estatísticas confirmam só haver aumentado nas últimas décadas, como aliás não poderia deixar de ser. A questão é de qualidade, e não de quantidade. Temos a nítida sensação de que já fomos bem melhores.

O declínio cultural de um povo concomitante ao aumento de sua escolaridade não é fenômeno exclusivo do Brasil da época atual. O caso mais emblemático foi o da União Soviética. Se alguém pedir a um brasileiro de cultura mediana que enumere alguns russos que se destacaram nos campos da ciência, das artes ou da literatura, ele dirá talvez uns cinco ou seis nomes, mas todos serão personagens que viveram nos tempos do czar, quando boa parte da população da Rússia era analfabeta. Na época do comunismo, quando o analfabetismo foi zerado, dificilmente alguém poderá apontar algum nome de destaque. Como se o aumento da instrução houvesse, ao mesmo tempo, secado a imaginação criativa da população.

No Brasil, alguém de meia idade pode facilmente recordar-se de tempos quando o povo era mais otimista, e havia o consenso de que o país tinha um futuro promissor. A despeito dos altos índices de analfabetismo, havia escritores, artistas e intelectuais de renome, líderes políticos mais idealistas, as pessoas mesmo pareciam mais inspiradas. A música era excelente. E é claro, havia muito menos crime e o país crescia a altas taxas. Tudo isso acontecia sem que fosse preciso um governo dirigista que moldasse a cultura a um formato "heroico, nacional e imperativo", como desejava o secretário demitido, mas antes decorria naturalmente da comunhão de ideais e valores culturais bem definidos, que a partir de algum momento foram dilapidados, levando o país à situação atual.

Quando o povo sente que perde seus referenciais, agarra-se aos líderes messiânicos que prometem um renascimento. Esse líder não é necessariamente político, mas pode ser um religioso, e de fato, o fundamentalismo religioso tem sido a resposta de muitos países que passam por crise semelhante. Mas no âmbito da cultura, o político e o religioso se confundem à medida em que ambos se propõem a moldar a cultura, ditando quais valores devem ser seguidos. No Brasil, o crescimento da igrejas evangélicas das periferias é uma óbvia reação do povo contra a violência e a dissolução de seus valores morais. Nosso futuro, será, então, algo entre Hitler e o ayatollah Khomeini?

Melhor não deixar a imaginação disparar. Donald Trump e Jair Bolsonaro não são Hitler, nem o bispo Crivella é Khomeini, com certeza. Mas os sinais do tempo estão aí.

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