A revista Leituras da História surgiu no último número com um artigo que me surpreendeu, por eu julgar que juntava fatos que não tinham correlação entre si: Ideais Republicanos de Kardec.
Acredito que a maioria das pessoas não terá dificuldade em identificar Alan Kardec, o fundador do Espiritismo, doutrina religiosa de larga difusão entre os brasileiros. Mas pergunte a um francês quem foi Kardec. Provavelmente ele não saberá. O mesmo ocorreu com Auguste Comte, filósofo criador do Positivismo, doutrina que igualmente tinha pretensões religiosas, de grande influência no Brasil ao final do século 19, mas de pouco sucesso na França onde Comte nasceu. O pouco comentado Jean-Christophe Rufin, de O Império e os Novos Bárbaros, já comentava o fenômeno de ideias já esquecidas na Europa onde nasceram terem um reavivamento extemporâneo em países do Terceiro Mundo, por vezes assumindo uma forma bem diferente de sua versão original.
O referido artigo mostra como Espiritismo e Positivismo floresceram lado a lado na segunda metade do século 19, ambos brandindo um discurso pró-república, pretensamente esclarecido e oposto ao obscurantismo monárquico e católico, sem cair no revolucionarismo socialista que vicejava no mesmo período. Não espanta que fosse assim, pois tanto um quanto outro eram praticados pela mesma classe de intelectuais imbuídos do cientificismo característico da época. Havia a crença de que o progresso apagaria as nódoas da ignorância, do fanatismo e da superstição, e elevaria o padrão de vida de todas as classes sociais.
Esta crença era generalizada em todo o mundo ocidental, mas no Brasil tornou-se particularmente aguda, posto que aqui as diferenças sociais eram enormes, os intelectuais percebiam o chocante contraste entre seu pensamento esclarecido e as massas ignaras, a culpava-se a doutrina católica pela manutenção do povo no obscurantismo. Foi nesse contexto que tanto o Positivismo quanto o Espiritismo encontraram solo fértil, e irmanaram-se na luta em prol de uma república, que pensava-se, viria tirar o país do atraso.
Mais de um século depois, podemos ver o quanto a história do país foi marcada pela adesão a estas doutrinas. Ficou particularmente marcada a dicotomia Superior X Inferior, enfatizada pelo espiritismo, que narrava uma evolução de espíritos rumo a um plano superior, bem como pelo positivismo, que pregava o governo de homens superiores na forma de uma "ditadura científica". Este homem superior, esclarecido, detentor de conhecimento, seria necessariamente também um homem solidário, praticante da caridade e tendo em vista o bem comum. A massa ignara seria apenas um objeto passivo que deveria ser moldado conforme a evolução a ser conduzida pelos homens superiores. Mesmo que com outras palavras, essas ideias penetraram fundo na mentalidade dos brasileiros por todo o século 20, e só no presente século deram sinal de esgotamento.
O que dizer do presente governo? Seria um herdeiro dessa tradição cientificista-autoritária, ou um restaurador do obscurantismo que essa tradição quis sepultar ainda no século 19? Difícil dizer, e quero crer que não seja nem um nem outro, mas que possa abrir caminho para uma nova leitura da realidade nacional, a ser feita pelos que vierem depois. Que nunca mais tenhamos que catar na lata de lixo velhas ideias para reciclar,
Mais um ótimo texto, Mundim! Infelizmente não sou tão otimista.
ResponderExcluirTambém não estou. Mas pode-se sempre aprender com os erros.
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