sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Colonialismo e Sociedade Civil

É recorrente afirmar-se que a má formação de nossa sociedade civil origina-se no colonialismo pautado em violências e escravidão. Mas sempre ficam alguns tópicos mal explicados: por que o mesmo não ocorreu nas colônias britânicas do norte? Recentemente li um artigo na revista Leituras da História a respeito da obra do abade francês Guillaume-Thomas Raynal, História Filosófica e Política dos Estabelecimentos e dos Comércios dos Europeus nas Duas Índias, que me chamou a atenção.

Não conhecia esse autor. Suas conjecturas não diferem muito das de outros autores humanistas, sobretudo religiosos, acerca das violências da colonização europeia do Novo Mundo, mas algumas colocações são originais. Em linhas gerais, o autor questiona: como haveria progresso em uma sociedade dividida entre dominadores cruéis e dominados apáticos e improdutivos?

Pelo que Raynal observou, a violência dos colonos não apenas abatia aos nativos, mas também desumanizava os próprios colonos: "As molas de sua alma foram quebradas", escreveu, referindo-se aos nativos. Já os colonos eram constituídos por indivíduos "descontentes de sua sorte", ou seja, a escória de sua sociedade, que tinham a oportunidade de enriquecer à custa da rapina em um local onde o governo civil era fraco e incapaz de contê-los. Seus descendentes, escreveu, tornavam-se "tiranos". Isso deu origem a uma sociedade "destituída de virtudes cívicas".

Raynal se pergunta se o europeu, uma vez liberto dos constrangimentos das leis e dos costumes, não é mais perverso que o selvagem. Compara os colonos portugueses a "tigres domesticados que retornam à floresta". Nada disso é novidade. Mas uma observação de Raynal me chamou a atenção. Ao afirmar que os descendentes dos primeiros colonos, aventureiros, tornavam-se pequenos tiranos, ele afirma que a chusma de pequenos tiranos é mais danosa que um grande tirano.

Penso que aí pode estar a chave para entender as diferenças entre a colonização ibérica e a britânica na América do Norte. Diferenças quanto aos resultados, pois quanto aos métodos, há mais semelhanças que diferenças. Também no norte a ocupação do território por europeus foi marcada pela brutalidade. Também ali havia aventureiros, escravidão e opressão aos nativos. Mas não se distinguem ali os pequenos tiranos a que Raynal se referiu. Havia apenas um grande tirano - o governo colonial inglês - do qual os colonos se livraram de um golpe só, o fazerem a revolução.
A administração colonial portuguesa era tirânica, mas fraca. No vasto interior, a multidão de pequenos tiranos, os "homens bons" das câmaras, fazia o que queria. Repetidamente desobedeciam, ameaçavam e corrompiam os funcionários do governo. Aqueles senhores de terras e escravos sabiam que a manutenção de suas posses dependia muito mais de sua capacidade de ter homens armados sob seu comando, do que da investidura de um rei tão distante que parecia lendário. Mas na América do Norte, a administração colonial mostrou-se capaz de conter os excessos dos colonos, e assim originar virtudes cívicas. Suas instituições, em grande medida, foram conservadas pelo governo independente que se instalou em seguida.

De fato, no Brasil, os colonos chegados só começaram a manifestar um comportamento parecido com os da América do Norte após a independência. Mas aí já não se chamavam colonos, e sim imigrantes. Os imigrantes de diversas origens foram os primeiros exemplos de virtudes cívicas do país, nem sempre reconhecida, mas bastante presente no imaginário nacional: a união familiar e a organização de comunidades, a devoção ao trabalho, a educação das crianças. Foram esses imigrantes os responsáveis pelos primeiros estabelecimentos de agricultura familiar no país, bem como das primeiras indústrias. E no entanto, eram constituídos pelo mesmo grupo humano dos antigos colonos, aqueles a quem Raynal denominou "os descontentes com sua sorte".

Mas se o colono era como um tigre domesticado que retornava à vida selvagem, o imigrante foi um tigre domesticado que se tornou um manso gatinho. O motivo é bastante evidente: eles não aportavam no país como aventureiros, nem era tolerado que fizessem o que quisessem. Tinham locais delimitados para se estabelecer. Eles não compunham câmaras de "homens bons" capazes de todos os desmandos, na verdade a entrada na política esteve praticamente vedada a eles até meados do século 20 Tiveram que concentrar-se em sua vida e seus projetos pessoais.

Se quisermos realmente cultivar virtudes cívicas, temos que liquidar o passivo dos descendentes dos aventureiros que aqui aportaram, e penso que isso só pode ser feito com o endurecimento da legislação e penalidades severas. Antes um só tirano que uma chusma de pequenos tiranos.

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