Por que estudar História? Para saber do passado? Sim, mas também para entender o presente. Não é possível discernir os fatos que estão acontecendo diante de nossos olhos, muito menos fazer previsões para o futuro, se não estivermos cientes da cadeia de fatos passados que conduziram aos fatos presentes. Como em todas as ciências, o esforço de discernir a História consiste basicamente de identificar padrões que se repetem, dar o mesmo nome a coisas que parecem distintas a um observador desatento, e dar nomes distintos a coisas que parecem iguais. Com frequência, acontecimentos que muitos acham novidade nada mais são que a repetição de mesmos fatos que aconteceram no passado. Podem ser uma imitação deliberada - daí o conhecido dito de que a História acontece duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa - mas também podem ter moto próprio, produtos de cadeias causa & consequência que se repetem em contextos distintos. É aí que se requer atenção.
Vou falar hoje do tenentismo, fenômeno de polarização política de jovens militares no início do século 20, que deu origem a diversos movimentos e produziu inúmeros protagonistas que atuaram em vários momento de nossa história até o fim do século. O ciclo parecia haver se esgotado após a constituição de 1988, mas acontecimentos recentes como o impasse político, a crise de segurança e declarações de altos oficiais reclamando um espaço maior de atuação das forças armadas têm um ar de dejà vu. O tenentismo está voltando, ou pelo menos quer voltar nesse momento de crise? A pergunta foi feita pelo historiador Marco Antonio Villa em sua coluna. A História vai se repetir?
Para responder a essa pergunta, é preciso retornar às origens. O protagonismo de militares na política brasileira data de fins do século 19. Até então o militarismo era um problema que acometia somente nossos vizinhos. A forma como o Brasil obteve sua independência preservou intactas instituições herdadas do tempo da colônia, sem grandes lutas internas que urdissem oportunidades a líderes militares de se tornarem atores políticos. Diferente do que sucedeu ao antigo império espanhol, fracionado e dilacerado por rebeliões comandadas por chefetes locais que vestiam uniforme de general. Coisa semelhante também ocorreu aqui, mas ao contrário do caudilhismo de nossos vizinhos, o coronelismo brasileiro permaneceria um fenômeno provinciano, sem invadir as esferas centrais do poder, que permaneceram ocupadas pelo "estamento burocrático" que cercava o monarca desde dom João VI. Durante o império, os militares não constituíram um poder paralelo no Brasil. A maioria dos ministérios militares foi ocupada por civis, e embora fosse verdade que muitos militares tivessem carreiras políticas, eles eram homens do governo junto ao exército, e não homens do exército junto ao governo.
Não coincidentemente, esta também foi a fase áurea do exército e da marinha nacionais. Todos os heróis militares brasileiros datam deste período. Mas ao final do século 19, um descontentamento difuso passou a tomar conta da classe militar. Após a guerra do Paraguai, o exército se tornara grande demais para as combalidas finanças do país. A nova geração se indispõe cada vez mais contra os ministros nomeados e contra seus antigos comandantes, tidos como comprometidos com a velha política e desinteressados de seus companheiros. Nesse contexto, ganha bastante penetração uma doutrina espalhada por um pequeno grupo de oficiais intelectualizados, o positivismo do filósofo francês Auguste Comte, que descria do parlamentarismo e pregava o exercício do poder por uma casta de homens superiores e desligados de partidos ou facções específicas. O governo deveria ser uma "ditadura republicana, racional e científica". Muitos acharam então que os militares eram os personagens melhor talhados para este papel.
O golpe republicano marcou o início do protagonismo dos militares brasileiros na política. Mas o bom governo sonhado pelos intelectuais não se concretizou. Tanto a estabilidade política quanto a estabilidade econômica mantidas pelo segundo império foram destruídas, e abriu-se um decênio de crise econômica, inflação descontrolada e guerras civis nas províncias. Um brasileiro que tivesse 40 anos de idade em 1889 poderia afirmar que passou toda a sua vida sob a regra de uma unica constituição, e jamais presenciou uma ditadura, uma revolução ou um golpe de estado. Nunca mais um brasileiro seria capaz de fazer a mesma afirmação. Os governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, de longe os mais ruinosos de nossa História, são considerados os primeiros governos militares do país, embora naquela época houvesse mais militares na cadeia do que no poder. Por fim, a elite dos cafeicultores paulistas decidiu dar um basta na desordem, impondo a candidatura de Prudente de Morais. Sem espaço no quadro partidário que se formou então, os remanescentes do florianismo, denominados jacobinos, passaram a conspirar enquanto destilavam suas opiniões sectárias e antidemocráticas em pasquins que hoje podem ser lidos na Biblioteca Nacional e causam espanto por sua virulência. O atentado contra o presidente, que vitimou seu ministro da guerra, forneceu o pretexto ao governo para reprimir e por fim aos remanescentes do florianismo. Os militares foram alijados do poder.
Ficou claro que no cenário social da República Velha, o verdadeiro poder residia nos proprietários rurais, os coronéis do sertão, que podiam arregimentar quando o quisessem tropas de jagunços bem mais numerosas que as tropas regulares do exército - não tão bem armadas, por certo, mas conhecedoras do terreno e que podiam se acoitar nas fazendas quando necessário. A estabilidade só podia ser mantida mediante pactos que dividissem o poder entre essa oligarquia rural, e houve pactos em vários níveis, da política dos governadores ao café-com-leite. Nesse quadro, o exército parecia fora de lugar enquanto força política. Mas no início dos anos vinte um novo descontentamento difuso começou a manifestar-se entre oficiais de baixa patente - os tenentes.
Jovens, em sua maioria originários da nascente classe média, esses tenentes de vinte e poucos anos pareciam lançar uma lufada de ar novo sobre o cenário envelhecido e acomodado da república dos fazendeiros. Houve um renascimento da mística que apontava os militares como patriotas despidos de ambições pessoais e regeneradores da corrupção dos políticos. Um exame mais atento, contudo, mostra uma grande semelhança com os antigos positivistas, sobretudo o desdém pelas prática democráticas e a crença em um estado forte conduzido por homens superiores. Os tenentes dos anos vinte iriam se juntar a correntes extremistas, tanto à direita quanto à esquerda.
Provavelmente já não liam Auguste Comte nesta época, mas como bem observou certo comentarista, o sucesso de uma doutrina não se mede pelo número dos que leem seus textos, mas pelo número dos que seguem seus preceitos sem havê-los lido, incorporados que estão a seus hábitos mentais. O positivismo do século 19 iria se propagar pelo século 20 adentro, e os tenentes dos anos 20, já promovidos a generais, iriam protagonizar toda sorte de manifesto, rebelião e golpes até o final do século. O protagonismo dos militares na política tornou-se uma realidade palpável, cabendo aos comentaristas, mais que julgá-lo bom ou mau, dar-lhe uma definição. Uma corrente muito repetida afirmava que os militares constituíam o novo poder moderador, aquele que era exercido por Pedro II durante o império e supostamente essencial para conferir a estabilidade característica do período. Sob esta ótica, os militares não deveriam exercer o poder diretamente, mas intervir nos crises, dando ganho esta ou aquela corrente. Desta forma, o poder militar seria legítimo e indispensável ao país: enquanto os militares exercessem seu poder moderador, o Brasil estaria livre de impasses sangrentos e guerras civis.
Diversas passagens do século findo podem ser interpretadas à luz deste poder moderador exercido pelos militares, dando aparente razão aos defensores desta tese. Mas é esquecido que o poder moderador original era regulamentado pelo constituição de 1824, e cada vez que era exercido pelo imperador, fortalecia esta mesma constituição, ao passo que o poder moderador informal dos militares, cada vez que era exercido, abalava não só a constituição vigente como a própria disciplina castrense, originando novas crises que demandariam novo exercício do poder moderador, em um ciclo sem fim. Muitos agradecem aos militares brasileiros por haverem salvo o país do comunismo em 1964. Mas se esquecem que o movimento comunista brasileiro originou-se do tenentismo dos anos 20. Das fileira do exército vieram Luiz Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Carlos Lamarca e muitos outros.
Bem ou mal, o exercício do poder moderador findou em 1964, quando os militares decidiram deixar os bastidores e passar à cena. Os tenentes, agora generais, puderam finalmente concretizar o projeto dos antigos positivistas de criar uma "ditadura republicana, racional e científica". De fato, o regime de 1964 concedeu plenos poderes aos presidentes mas manteve o formato republicano, com a substituição regular dos governantes ao final de seus mandatos, e os políticos foram substituídos em seu papel pelos tecnocratas, superministros cuja ação ia bem além do escopo original de suas pastas, e que exerciam uma administração exclusivamente orientada a projetos desenvolvimentistas. A crise final do regime nos anos 80 pôs fim à reputação dos militares como governantes mais competentes que os civis, e desde então, até recentemente, não se escutaram mais clamores para uma intervenção militar na política.
Em minha opinião, o tenentismo foi o fenômeno mais nefasto da História brasileira no século 20. Aparentemente esgotou-se com a constituição de 1988. Mas fica a pergunta: vai voltar?
Não é fácil responder. A porta aberta é a questão da segurança pública e a impotência da Polícia Militar estadual. Mas há um diferencial básico: os ministérios militares. Estes foram ocupados por civis durante o império, e por militares durante a república até o final do século passado. A meu ver, o real vetor da interferência militar na política é o cargo de ministro ocupado por um militar. Este cargo - originalmente Ministério da Guerra, depois Ministério do Exército, Marinha e Aeronáutica, e atualmente Ministério da Defesa - é de natureza política e administrativa, e portanto, deveria ser exercido por civis. Os verdadeiros comandantes das forças armadas são seus respectivos oficiais generais. Se o cargo de ministro é ocupado por um militar, cria-se desta forma um comando paralelo, que já nasce politicamente contaminado por aqueles que indicaram o ministro.
O fim do tenentismo no Brasil corresponde à criação do Ministério da Defesa e a sua entrega a um civil. O retorno do tenentismo vai depender da efetiva capacidade de um ministro civil comandar as forças armadas.
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