Por aqui costumamos acompanhar com interesse cada nova eleição da Argentina, primeiro por uma razão pragmática, posto que a linha do novo governo com certeza nos afetará de alguma maneira. Mas também por conta de um medo primal, originado da óbvia percepção de uma história comum: eu sou você amanhã. Será?
Mas toda eleição na Argentina tem um ar de dejà vu. Aparecem sempre os mesmos atores, com as mesmas propostas, conduzindo sempre aos mesmos resultados desastrosos. No fim das contas, a Argentina é um enigma nunca solucionado: por que um país que foi tão promissor no início do século 20 acabou desta maneira? Muitos têm procurado identificar em que ponto começou a derrocada argentina, como neste vídeo, que como tantos outros, só dá respostas incompletas. Uma conclusão, porém, é óbvia: só existe estabilidade econômica onde há estabilidade política.
Antes de mergulhar no ponto onde se liquidou a estabilidade política argentina, é preciso desconstruir um mito: de que a Argentina era um país desenvolvido na virada do século 19 para o século 20, e seria mesmo um dos mais ricos do mundo. Isso é verdade sob o ponto de vista das estatísticas, no caso, o PIB Per Capita. Mas conforme é sabido pelos matemáticos, as estatísticas costumam apresentar distorções quando calculadas sobre uma amostra de dados muito pequena. Uma dessas distorções foi aquela que apresentava o Canadá como tendo um PIB Per Capita duas vezes maior que o da Inglaterra na mesma época. Isso é verdade? Os canadenses eram mesmo duas vezes mais ricos que os habitantes das Ilhas Britânicas?
Não acho que a verdade fosse bem essa. O Canadá tinha uma população muito diminuta, o que puxava para cima o cálculo da renda per capita. Coisa semelhante ocorria com a Argentina, que conheceu uma grande valorização de seus produtos de exportação ao final do século 19, tendo também uma população muito pequena. Mas se os números eram os de um país desenvolvido, o panorama social não era. A maior parte da população era pobre e vivia no campo, as principais atividades econômicas se concentravam na exportação de bens primários, típicos de um país subdesenvolvido. Outrossim, os bons resultados na balança comercial faziam o país prosperar, induzindo ao crescimento da classe média urbana, que mais e mais se tornava ator político. O partido União Cívica Radical foi o primeiro partido político latino-americano a representar a classe média urbana, em uma época em que todos os demais países, inclusive o Brasil, eram governados pela elite rural.
Mas foi exatamente no ponto em que esta nova classe média urbana preparava-se para assumir as rédeas da nova nação que a cadeia se quebrou, em 1930, com a crise econômica mundial e o golpe militar que pôs fim à estabilidade política da república argentina que durava desde o século 19. Ao invés da moderna democracia ocidental sustentada por partidos, assumiram o poder os militares, onde permaneceram pelos próximos 50 anos. De golpe em golpe, dali saíram o peronismo e o anti-peronismo, as desastrosas intervenções do Estado na economia bem como as fúteis tentativas de abrir a economia, sem que jamais houvesse continuidade na política econômica, apenas guinadas radicais que inevitavelmente destruíam o que a gestão anterior conseguira construir. Fechado o jogo político pelas ditaduras, os contendores passaram a pegar em armas: da ala esquerda do peronismo saiu o grupo guerrilheiro conhecido como Montoneros, e da ala direita, chefiada pelo superministro Lopes Rega, saiu o grupo terrorista AAA, Aliança Anticomunista Argentina. A estes juntou-se outro grupo de esquerda, o ERP, Exército Revolucionário do Povo, guevarista.
Não há dúvida de que foram os militares que arruinaram a Argentina. Mas a tragédia não estará completamente explicada se não for acrescentado este traço mórbido: a obsessão de ressuscitar cadáveres. Refiro-me ao quadro econômico do primeiro governo peronista logo após o fim da Segunda Guerra, quando a Argentina dispunha de um grande superavit em sua balança comercial por haver suprido os países beligerantes, o qual proporcionou uma breve era de fartos gastos sociais com a finalidade de atrair o apoio da classe trabalhadora ao regime, tudo feito sob a hábil encenação de que as benesses eram concedidas pela ação da primeira-dama Eva Perón, a Evita, transformada em líder espiritual da nação pela propaganda oficial. Quando o dinheiro acabou, coincidentemente Evita morreu, e logo depois Perón era derrubado. Então, para os trabalhadores, ficou a ilusão de que os maus tempos pelos quais passavam seriam produto da ausência de sua líder espiritual e de seu pai dos pobres.
Foi quando que teve início o pendor de ressuscitar aquele modelo econômico já totalmente esgotado, posto que era resultado de uma conjuntura que existira somente na época. A obsessão, verdadeiramente doentia, foi consubstanciada no esforço absurdo para ressuscitar a própria Evita, primeiro preservando seu cadáver, e depois tentando fabricar uma nova Evita na pessoa da terceira esposa de Perón, Isabel Martínez, a Isabelita, esta sim sem qualquer capacitação para a política, cujo desastroso governo precipitou o país ao fundo de seu poço.
Nos dias de hoje, há muito a cortina já baixou para os militares, mas os políticos e os eleitores continuam obstinados em reviver aquele momento do fim dos anos 40, convictos de que a fórmula da prosperidade consiste de gastar o que não têm. Os presidentes "neoliberais" tentam consertar a economia quebrada, reencenando em um ciclo sem fim os governos que sucederam o peronismo deposto nos anos 50, produzindo austeridade e o consequente desejo da população de mais uma dose de peronismo. Parece ser mais um caso para psicanalistas do que para economistas.