sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O Futuro Era Assim?

Não sei se foi uma época de otimismo em alta, ou eu que era novo e deslumbrado, mas tenho a impressão de que lá pelo anos 60 havia uma sólida e otimista expectativa quando ao futuro. Talvez puxada pelas viagens espaciais, a fascinante novidade de então, esperava-se que ali pelo ano 2000 teríamos um futuro a la Jetsons, com carros voadores, robôs e casas arejadas no alto de torres.

Mas se gosto tanto de pesquisar a História, é porque o futuro teima em repetir o passado. Até mesmo nos Jetsons, produto de entretenimento inteiramente moldado às ideias dos roteiristas, temos um robô empregada doméstica. Quer dizer que as hierarquias sociais do presente continuarão a existir no futuro, apenas substituindo a pessoa pela máquina, mas mantendo íntegro todo o simbolismo inerente -  a empregada-robô está estritamente paramentada como tal.

E no fim, o futuro chegou, pois o futuro, bom ou ruim, sempre chega. Mas tenho dúvidas se o mundo realmente melhorou. A impressão que fica é que houve melhoras, mas não no essencial. Muitas coisas previstas mostraram-se fantasiosas, como os carros voadores. Bem, o carro voador já existe, chama-se helicóptero, mas ninguém imagina um congestionamento de helicópteros, seria desastre certo. Hoje em dia, se você é rico o suficiente, pode ir de helicóptero da casa para o trabalho, mas nem o homem mais rico do mundo é capaz de ir voando ao cinema ou a seu restaurante preferido, como previam os futurólogos de mais de cem anos atrás. Santos Dumont gostava de ir voando em seus balões até os cafés que frequentava, foi o primeiro homem a fazer isso. E o último também.
 
Por outro lado, certos inventos não previstos nem mesmo pelos mais fantasistas surgiram efetivamente. Lembro-me de uma cena do filme 2001, Uma Odisseia No Espaço, feito em 1968, onde os astronautas percorrem a nave ultra-tecnológica conferindo os equipamentos, mas trazem nas mãos pranchetas e caneta, nada de palm-top. Lembro também do desenho de Speed Racer, com aquele automóvel cheio de funcionalidades que contrariavam as leis da física, todas acionadas por um botão no volante. Na minha opinião, a mais absurda de todas era acionada pelo botão G, bem no centro: uma portinhola se abria e saía uma pomba-robô voando com suas asas de metal, para levar mensagens e buscar socorro. Essa nem eu na época engolia. E foi a única que se materializou no futuro: chama-se drone. A única diferença é que voa com hélices, e não com asas de metal.
 
Outra previsão que se concretizou foi o trabalho remoto. O escritor Monteiro Lobato, lá pelos anos vinte do século passado, no livro O Presidente Negro, já previa um mundo de ruas vazias, manso de tráfego, pois a maioria das pessoas ficava em casa e transmitia por ondas de rádio seu trabalho ao escritório. Mas ironicamente, para que essa realidade se concretizasse, foi preciso a quarentena em consequência da pandemia do coronavírus. O que mostra que não era uma necessidade assim tão 
premente, afinal. Descobri que posso perfeitamente trabalhar em casa e transmitir meu trabalho pela internet, mas meu rendimento não melhorou por causa disto. E pergunto-me se a falta de exercício de quem fica em casa dias seguidos não vai causar um aumento das doenças inerentes ao sedentarismo.
 
Mas de modo geral, a impressão que tenho é que as grandes conquistas tecnológicas do futuro que chegou são amaldiçoadas pela palavra virtual. Não têm consistência material, se puxar a tomada, 
desaparecem. No visor do GPS, tudo está limpo e claro (e olha que eu nem previa GPS 30 anos atrás). Mas da janela do carro, vejo ruas esburacadas me conduzindo a favelas, e por este motivo que raramente uso o GPS. A eletrônica digital, tecnologia que de longe foi a que mais evoluiu, é 90% voltada para o entretenimento, e não tenho paciência para jogar videogame. Os 10% restantes foram voltados para aumentar a conectividade  e encurtar distâncias, originando o atual mundo globalizado. Mas quanto a casas, roupas, comida, segurança, meio ambiente, trânsito, infra-estrutura urbana, enfim, essas coisas palpáveis e essenciais à qualidade da vida, reais e não virtuais, melhoraram?
 
Acho que não.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Social Democracia e Fascismo

 Um dos obstáculos para o bom entendimento do momento político e econômico brasileiro é o emprego de terminologias importadas de outros contextos, que não se aplicam aqui como se aplicaram alhures. Na verdade, as palavras trocam de sentido ao mudar de latitude e de época. Se a chave para a compreensão do presente continua sendo o passado - ou seja, a História - não é possível apreciar a História apartada de seu contexto histórico, e aqui temos uma redundância. Aquelas definições que fizeram sentido naqueles países e naquelas épocas, podem ganhar um sentido diferente no país da época atual.

Uma dessas definições é o conceito de Social Democracia, hoje uma bandeira comum dos partidos de esquerda, ou que se dizem de esquerda. Mas em suas origens, a social democracia surgiu no quarto final do século 19 urdida por um governo conservador, aquele do chanceler Bismark no então segundo império alemão. Tinha como objetivo combater os movimentos socialistas ao contrapor reformas que atraíssem o apoio dos trabalhadores. E assim foi exportada para outros países. Lenin, vitorioso na primeira revolução socialista da História, definia a social-democracia como a tropa de choque da burguesia, que vinha combater os socialistas em seu próprio meio e disputando seu próprio público, maliciosamente transformando os trabalhadores em pretensos pequeno-burgueses.

Passadas muitas décadas e transplantada para essas terras, a Social Democracia adquiriu acepções diferentes. Primeiro compôs o nome de partidos sem ideologia definida, que eram social-democratas pro forma. O primeiro partido brasileiro que se propôs social-democrata de raiz foi o PSDB. Mas no poder, fez o oposto do que pregava, e paradoxalmente teve sucesso, com a vitória do Plano Real. Já o PT, em seus primórdios, coerente com o discurso de Lenin, condenava a Social Democracia, mas no poder fez um arquetípico governo social-democrata. Tudo fruto da conjuntura política e econômica que molda a ação dos políticos: o PSDB foi um partido social-democrata que por força das circunstâncias tornou-se liberal. E o PT foi um partido revolucionário que por força das circunstâncias tornou-se social-democrata, e hoje louva o legado varguista.

Um desdobramento desta mutação de conceitos foi a mutação de mais um conceito, o de neoliberalismo, termo muito repetido nos anos 80. Relatado na época à Inglaterra de Thatcher e aos EUA de Reagan, desde os anos 90 tem grudado como uma cola ao PSDB e suas ações de diminuição do Estado e privatizações de estatais. Já em desuso no resto do mundo, entre nós virou quase um palavrão. Em seu contexto original, o neoliberalismo foi uma reação aos excessos do chamado Estado de Bem-Estar Social, cujo alto custo limitava o poder de investimento do Estado e causava a estagnação da economia. Daí a revalorização de princípios clássicos do liberalismo econômico, severamente criticados por outros. Mas entre nós, tal como em nosso entorno latino-americano, jamais existiu um Estado de Bem-Estar Social, e o que se chama de neoliberalismo em geral refere-se aos cortes que qualquer governo se vê obrigado a fazer quando as despesas superam as receitas. Até presidentes de esquerda podem se tornar "neoliberais" se as circunstâncias o exigem, como foi o caso de Menem na Argentina.

Outro conceito desvirtuado, também transformado em xingamento e atirado sobretudo contra o governo Bolsonaro, é aquele grito: fascista! Fascista! Tudo que parece truculento ou reacionário é "fascismo". Mas o que foi o fascismo em seu contexto original?

Foi um regime totalitário, antiliberal, ultra-nacionalista e belicista, surgido na Europa do início do século 20, propondo a superação da democracia liberal, vista como ineficaz, e ao mesmo tempo um apresentando-se como um substitutivo ao socialismo revolucionário. Com esta finalidade, o fascismo substituía o internacionalismo operário pelo nacionalismo étnico e racial, e a expropriação pelo Estado dos meios de produção pela colocação do Estado como mediador entre o capital e o trabalho. O legado da Social-Democracia foi encampado e ampliado pelos regimes fascistas, não sendo de admirar que a nossa Consolidação das Leis do Trabalho tenha sido de todo inspirado pela Carta Del Lavoro de Mussolini.

Mas então, o fascismo é de esquerda? Essa colocação maliciosa revolta muitos comentaristas viciados na dicotomia Direita X Esquerda. Certamente que fascismo e socialismo não são a mesma coisa. Mas o fascismo nasceu do mesmo tronco que o socialismo, ambos fruto da revolução industrial no velho continente, que trouxe o acirramento do antagonismo entre patrões e trabalhadores, bem como do antagonismo entre as potências industriais. Fora deste contexto, o fascismo foi imitado em várias partes do mundo, inclusive aqui.

As características do fascismo são o culto à personalidade do Líder Supremo, o Partido Único, organizações de massa, símbolos e rituais, um certo exoterismo, militarismo, dirigismo da economia pelo Estado, apresentação de um inimigo externo real ou imaginário para catalisar a mobilização popular a este alvo e desviá-la da crítica ao governo, a presença de milícias controladas pelo Partido, e não pelo Estado. O regime atual, próximo de nós, que mais abarca essas características, é justamente o bolivarianismo venezuelano, sobretudo no que se refere ao culto à personalidade do líder vivo, culto místico à personalidade do líder morto Simon Bolivar (que nunca foi socialista) e a presença das milícias bolivarianas, controladas pelo partido, tal como as organizações de massa. Para quem tem conhecimento da História latino-americana, isso não surpreende: o bolivarianismo venezuelano do século 21 é um sucessor do peronismo argentino dos anos 40, lembrando que Perón era um admirador declarado de Mussolini.

Portanto, não se pode concluir que o fascismo seja o antípoda do socialismo. O verdadeiro antípoda do socialismo é a democracia liberal com seus parlamentos, que Marx afirmava serem o balcão de negócios da burguesia. O fascismo inverte esta relação entre burguesia e Estado: se nas democracias liberais (ou democracias burguesas) a burguesia comanda o Estado, sob o fascismo é o Estado que comanda a burguesia (na realidade os regimes fascistas criam uma burguesia para seu uso, seja favorecendo empresários aliados ou enriquecendo seus próprios acólitos, ao mesmo tempo em que perseguem e expropriam os burgueses não cooptados, fenômeno bem encarnado pela chamada boliburguesia).

Essa deturpação de conceitos contribui decisivamente para o não entendimento de quem somos, aonde estamos e para onde vamos. Sem dúvida que estamos presos aos trilhos de nossa própria História, distinta daquela de quem nos emprestou os conceitos que deturpamos, mas é angustioso não ter discernimento da própria História.