Nosso continente é sujeito a tendências cíclicas, isso já é sabido. A derrota de Macri na Argentina, os distúrbios no Chile e no Equador, parecem indicar o fim do ciclo de governos conservadores que sucedeu ao ciclo populista da primeira década do século. Não obstante, o Brasil está tranquilo, assim como quem fica bem no olho do furacão. Isso apesar da posturas polêmicas que o governo Bolsonaro vem assumindo. A oposição é ruidosa, reunindo intelectuais, jornalistas, economistas e até ex-apoiadores do presidente, mas não empolga as massas.
A reação das massas nem sempre é fácil de prever. Isso ficou claro em 2013, quando um mês antes a aprovação de Dilma era de 70%, e de súbito despencou para menos de 30%, pondo a nu a frustração que vinha se acumulando silenciosamente contra seu governo. O caso do Chile parece ser análogo, mesmo porque começou, tal como aqui, com uma discussão em torno de centavos nas passagens do metrô. No Brasil, atribuo a atual pasmaceira, em primeiro lugar, à pasmaceira da economia. Não melhora, mas também não piora: a inflação está sob controle e não há pacotes econômicos à vista. Mas algumas coisas estão acontecendo devagar. A reforma da presidência foi aprovada sem estardalhaço, e o pacote anticrime avança entre percalços.
Penso que a ausência de manifestações violentas de repúdio à reforma da previdência se deve a esta reforma não haver sido colocada na forma de pacote, como é o costume nessa parte do mundo, mas ao invés disto haver sido alvo de longo debate. De qualquer modo, a queda do dólar nos últimos dias indica maior confiança na economia após a aprovação. O índice de desemprego também vem registrando ligeira queda, muito pequena para fazer diferença, mas sinalizando um cenário mais favorável daqui por diante. Foi anunciada uma redução no número de homicídios, também muito pequena para fazer diferença, mas que pode ter a ver com o pacote anticrime ora em debate.
Enfim, o povo parece haver dado um longo crédito de confiança ao governo. Estamos em compasso de espera enquanto nossos vizinhos se agitam. Mas o futuro, para eles, é previsível, e para nós é obscuro. A Argentina tem longa tradição de revezamento entre governos peronistas e conservadores, geralmente os primeiros arruinando a economia com gastos excessivos e os segundos entrando para consertar com medidas "neoliberais", mas o inverso também pode acontecer, como foi o caso do peronista Menem, além da tendência dos conservadores argentinos de promoverem desastres ainda piores que aqueles dos populistas. No Chile também é observado um bipartidarismo, mais recente que o argentino, porém menos turbulento, com governos socialistas e conservadores se sucedendo desde o fim da ditadura de Pinochet, sem contudo desmanchar o arcabouço que permitiu ao Chile ser o país mais estável do continente.
Mas no Brasil, o bipartidarismo que deveria ser entre PT e PSDB naufragou em razão da postura agressiva dos petistas ao conquistar o poder, e da falta de coragem dos tucanos em defender o legado de FHC. Por conseguinte, o que virá depois de Bolsonaro é uma incógnita total. Conseguirá Bolsonaro se reeleger ou fazer seu sucessor, contrariando a tendência atual pró-esquerda do continente? O PT irá voltar ao poder, mais moderado e compondo-se com os demais partidos? Ou o PT vai voltar ao poder rancoroso e partindo para um confronto que necessariamente terminará em ditadura?
O que se pode fazer, por enquanto, é contemplar ao redor do olho do furacão.
terça-feira, 29 de outubro de 2019
sexta-feira, 11 de outubro de 2019
Bacurau, Pensamento e Desejo
Uma expressão na língua inglesa que não tem tradução exata em português é "wishful thinking". Literalmente "pensamento desejoso", denota uma atitude tão movida pelo desejo de que uma certa premissa seja verdadeira, que se passa a tomar decisões e tirar conclusões embasadas por aquela premissa, cada vez desligando-se mais da realidade. Tal como a construção de teorias conspiratórias, abundam em épocas quando há grande desalento e frustração coletiva. Tudo a ver com o tempo presente, a partir da eleição de Bolsonaro, que significa utopia para uns e distopia para outros.
Tais pensamentos desejosos podem se manifestar por diversos canais, da produção de estudos ao cinema. Um filme recentemente lançado e muito comentado, que tem inspirado numerosas análises, é Bacurau, de Kléber Mendonça. Este artigo no Jornal GGN, de autoria de Guilherme Mello, mostra bem como o enredo une utopia e distopia aplicadas ao momento histórico atual no Brasil. Mas não é minha intenção fazer aqui uma resenha do filme, e sim mostrar o quanto as imagens exibidas expressam pensamentos e desejos frustrados do momento político de agora. Trata-se sem dúvida de uma história contada por cineastas de esquerda, onde estão facilmente identificáveis os representantes de sempre da luta de classes - o burguês, o imperialista, o trabalhador, o guerrilheiro, etc. Até aí sem novidade. Mas não é uma mensagem da esquerda cheia de alento dos anos sessenta, e sim da esquerda desalentada após a queda do PT, onde se nota agudamente o choque entre a utopia e a distopia, e brotam os "wishful thinkings".
O primeiro deles é a própria caracterização de Bacurau, a cidadezinha do interior do nordeste onde se passa a trama. Bacurau é ostensivamente apresentada como sendo a epítome do Brasil Autêntico, oposto ao Brasil Falso do sul estrangeirado. Portanto, deve ser aquilo que os intelectuais e militantes de esquerda acreditam que é o país autêntico: conforme descrição do autor do artigo do Jornal GGN,
Em Bacurau, a igreja existe, mas é usada como depósito, enquanto o orgulho da cidade é o museu que homenageia o passado cangaceiro do local. O uso de drogas na cidade também é livre.
O segundo wishful thinking, este representando a distopia, é a caricatura do sulista supremacista. Ele não se considera mais parte do mesmo país, e a televisão mostra cenas de execuções públicas em São Paulo, aplaudidas pela população. Já o estrangeiro invasor, este é alemão e comporta-se como um nazista em um campo de concentração, sem necessidade de explicação.
Entre a utopia e a distopia, onde fica o mundo real? Claramente, Bacurau não existe. As cidades pequenas do interior, muito pelo contrário, sempre encarnaram tudo aquilo que a esquerda mais abomina: universo rural sob o domínio de latifundiários, população religiosa e conservadora. Se a busca é por um "país autêntico", este pode ser encontrado muito mais em São Paulo, em razão de seu cosmopolitismo e de reunir indivíduos oriundos de todas as regiões do país, além de ser muito mais liberal em todos os sentidos. Lula nasceu no nordeste, mas teve que vir para São Paulo para construir sua carreira. O PT nasceu em São Paulo e desenvolveu-se no sul bem antes de penetrar no nordeste. Tampouco já ouvi falar de alguma cidade nordestina onde museus glorificassem cangaceiros - muito pelo contrário, o que eu já ouvi falar é de um museu em Mossoró dedicado à resistência armada feita pela população, que expulsou o bando de Lampião quando este tentou invadir a cidade para saqueá-la.
Ao final, a população de Bacurau reage com violência, esmaga os invasores e exibe suas cabeças cortadas, como os autores do filme desejariam que a população brasileira fizesse. As cabeças cortadas evocam velhas cenas do cangaço. Mas como bem observou Guilherme Mello:
A tipificação do cangaceiro como herói popular não é nova, vem do tempo de Glauber Rocha, que à falta de um bandido-revolucionário tipo Pancho Villa em nossa história, reciclou a figura do cangaceiro para este papel. De fundamento, há apenas a admiração de um populacho inserido em um meio social violento, que vê a coragem e a ousadia como valores - mesmo fenômeno que transformou em heróis cinematográficos os bandidos do velho oeste norte-americano. Mas se o zé-povinho admirava a macheza de Lampião, a recíproca nunca foi verdadeira. O Rei do Cangaço jamais teve qualquer consciência ou consideração pelos desfavorecidos, distinguia apenas aqueles que lhe eram leais daqueles que eram inimigos. O próprio Eric Hobsbawm foi reticente ao incluir Lampião em seu rol de "bandidos sociais". Já o "wishful thinking" que tipifica como revolucionários os marginais da sociedade - bandidos, desviantes, inconformistas, prostitutas - é fenômeno mais recente, consequência do abandono dos ideais revolucionários pela classe trabalhadora, cada vez mais incluída no capitalismo. Os intelectuais marxistas, então, têm procurado angariar seu novo público entre os marginais, aqueles a quem Marx denominava o lúmpen-proletariado, e tentam convencer-se de que os marginais farão a revolução que os trabalhadores se recusaram a fazer.
Outra mensagem que chama a atenção é a ênfase na cisão norte-sul, calcada em uma suposta cisão étnica entre um Brasil genuíno e um Brasil estrangeiro. Também é uma abordagem recente; até os anos sessenta o discurso da esquerda nacional reproduzia o puro modelo de luta de classes marxista - o país era dividido entre burgueses e trabalhadores, imperialistas e nacionalistas, e só. Conflitos étnicos e raciais eram característicos de outras paragens, sem relação com nossa idiossincrasia. Durante muito tempo esse foi o senso comum. A mudança na abordagem reflete a apropriação do discurso das esquerdas brasileiras por parte de ONG´s e "think tanks" globalistas, que desejam exportar para aqui os mesmos pontos de vista que aplicam no mundo inteiro: então devemos ser racistas e secessionistas, tal como os demais.
Um pormenor que poderia passar quase despercebido é o uso livre de drogas em Bacurau, mas Guilherme Mello percebe aí uma mensagem essencial:
Não é novidade: desde os anos sessenta os militantes de esquerda defendem o uso de drogas como iluminador para abrir a mente a novas ideias e afrontar o convencionalismo burguês. Mas o problema é que esse consumo de drogas sustenta um lucrativo comércio que absorve aqueles lúmpen-proletários a quem os drogados sonham fazer seu público revolucionário. Até aí o capitalismo triunfa... Guilherme Mello conclui:
Realmente é preciso muita droga para acreditar que bandidos podem sonhar com uma sociedade mais justa. Mas no desolador panorama político atual, é o que a esquerda nacional pode fazer, além de produzir na tela alegorias de um país imaginário. O medo que eu tenho é que decidam permanecer em definitivo no mundo da fantasia, deixando a cena política monopolizada por uma direita canhestra.
Tais pensamentos desejosos podem se manifestar por diversos canais, da produção de estudos ao cinema. Um filme recentemente lançado e muito comentado, que tem inspirado numerosas análises, é Bacurau, de Kléber Mendonça. Este artigo no Jornal GGN, de autoria de Guilherme Mello, mostra bem como o enredo une utopia e distopia aplicadas ao momento histórico atual no Brasil. Mas não é minha intenção fazer aqui uma resenha do filme, e sim mostrar o quanto as imagens exibidas expressam pensamentos e desejos frustrados do momento político de agora. Trata-se sem dúvida de uma história contada por cineastas de esquerda, onde estão facilmente identificáveis os representantes de sempre da luta de classes - o burguês, o imperialista, o trabalhador, o guerrilheiro, etc. Até aí sem novidade. Mas não é uma mensagem da esquerda cheia de alento dos anos sessenta, e sim da esquerda desalentada após a queda do PT, onde se nota agudamente o choque entre a utopia e a distopia, e brotam os "wishful thinkings".
O primeiro deles é a própria caracterização de Bacurau, a cidadezinha do interior do nordeste onde se passa a trama. Bacurau é ostensivamente apresentada como sendo a epítome do Brasil Autêntico, oposto ao Brasil Falso do sul estrangeirado. Portanto, deve ser aquilo que os intelectuais e militantes de esquerda acreditam que é o país autêntico: conforme descrição do autor do artigo do Jornal GGN,
"É um povoado pobre, mas marcado pela solidariedade entre seu povo, pelo respeito às diferenças (sociais, étnicas, sexuais, etc.), pela força feminina, pelas liberdades individuais e pelo respeito à história e conhecimento (...) Em suma, estamos diante de uma comunidade que pratica uma espécie de comunismo primitivo laico, com valorização da mulher e da diversidade"
Em Bacurau, a igreja existe, mas é usada como depósito, enquanto o orgulho da cidade é o museu que homenageia o passado cangaceiro do local. O uso de drogas na cidade também é livre.
O segundo wishful thinking, este representando a distopia, é a caricatura do sulista supremacista. Ele não se considera mais parte do mesmo país, e a televisão mostra cenas de execuções públicas em São Paulo, aplaudidas pela população. Já o estrangeiro invasor, este é alemão e comporta-se como um nazista em um campo de concentração, sem necessidade de explicação.
Entre a utopia e a distopia, onde fica o mundo real? Claramente, Bacurau não existe. As cidades pequenas do interior, muito pelo contrário, sempre encarnaram tudo aquilo que a esquerda mais abomina: universo rural sob o domínio de latifundiários, população religiosa e conservadora. Se a busca é por um "país autêntico", este pode ser encontrado muito mais em São Paulo, em razão de seu cosmopolitismo e de reunir indivíduos oriundos de todas as regiões do país, além de ser muito mais liberal em todos os sentidos. Lula nasceu no nordeste, mas teve que vir para São Paulo para construir sua carreira. O PT nasceu em São Paulo e desenvolveu-se no sul bem antes de penetrar no nordeste. Tampouco já ouvi falar de alguma cidade nordestina onde museus glorificassem cangaceiros - muito pelo contrário, o que eu já ouvi falar é de um museu em Mossoró dedicado à resistência armada feita pela população, que expulsou o bando de Lampião quando este tentou invadir a cidade para saqueá-la.
Ao final, a população de Bacurau reage com violência, esmaga os invasores e exibe suas cabeças cortadas, como os autores do filme desejariam que a população brasileira fizesse. As cabeças cortadas evocam velhas cenas do cangaço. Mas como bem observou Guilherme Mello:
"No entanto, o que há de mais realista em Bacurau é sua brasilidade, construída nas referências ao passado cangaceiro do povoado. A resistência não se dá de forma 'civilizada', com passeatas de classe média gritando palavras de ordem. Ela é organizada por bandidos, assassinos, guerrilheiros, mas também por mulheres, homens andróginos, professores, trabalhadores e prostitutas (...) Não são heróis virtuosos os que resistem, não é uma resistência branca, limpa, ideológica e civilizada. É uma resistência negra, mulata, desviante, pobre e bárbara..."
A tipificação do cangaceiro como herói popular não é nova, vem do tempo de Glauber Rocha, que à falta de um bandido-revolucionário tipo Pancho Villa em nossa história, reciclou a figura do cangaceiro para este papel. De fundamento, há apenas a admiração de um populacho inserido em um meio social violento, que vê a coragem e a ousadia como valores - mesmo fenômeno que transformou em heróis cinematográficos os bandidos do velho oeste norte-americano. Mas se o zé-povinho admirava a macheza de Lampião, a recíproca nunca foi verdadeira. O Rei do Cangaço jamais teve qualquer consciência ou consideração pelos desfavorecidos, distinguia apenas aqueles que lhe eram leais daqueles que eram inimigos. O próprio Eric Hobsbawm foi reticente ao incluir Lampião em seu rol de "bandidos sociais". Já o "wishful thinking" que tipifica como revolucionários os marginais da sociedade - bandidos, desviantes, inconformistas, prostitutas - é fenômeno mais recente, consequência do abandono dos ideais revolucionários pela classe trabalhadora, cada vez mais incluída no capitalismo. Os intelectuais marxistas, então, têm procurado angariar seu novo público entre os marginais, aqueles a quem Marx denominava o lúmpen-proletariado, e tentam convencer-se de que os marginais farão a revolução que os trabalhadores se recusaram a fazer.
Outra mensagem que chama a atenção é a ênfase na cisão norte-sul, calcada em uma suposta cisão étnica entre um Brasil genuíno e um Brasil estrangeiro. Também é uma abordagem recente; até os anos sessenta o discurso da esquerda nacional reproduzia o puro modelo de luta de classes marxista - o país era dividido entre burgueses e trabalhadores, imperialistas e nacionalistas, e só. Conflitos étnicos e raciais eram característicos de outras paragens, sem relação com nossa idiossincrasia. Durante muito tempo esse foi o senso comum. A mudança na abordagem reflete a apropriação do discurso das esquerdas brasileiras por parte de ONG´s e "think tanks" globalistas, que desejam exportar para aqui os mesmos pontos de vista que aplicam no mundo inteiro: então devemos ser racistas e secessionistas, tal como os demais.
Um pormenor que poderia passar quase despercebido é o uso livre de drogas em Bacurau, mas Guilherme Mello percebe aí uma mensagem essencial:
"A forma liberal com que é encarada o uso de drogas não é o elemento central do filme, como algumas críticas apontam. O uso das drogas aparece como um alerta de que o enfrentamento da realidade que ameaça os direitos e a existência de parte da sociedade exige pensar para além do real. Resistir no mundo atual exige sonho, utopia e alguma dose de delírio..."
Não é novidade: desde os anos sessenta os militantes de esquerda defendem o uso de drogas como iluminador para abrir a mente a novas ideias e afrontar o convencionalismo burguês. Mas o problema é que esse consumo de drogas sustenta um lucrativo comércio que absorve aqueles lúmpen-proletários a quem os drogados sonham fazer seu público revolucionário. Até aí o capitalismo triunfa... Guilherme Mello conclui:
"A virtude não está nas pessoas, mas na utopia. E quem disse que bandidos não podem sonhar com uma sociedade mais justa?"
Realmente é preciso muita droga para acreditar que bandidos podem sonhar com uma sociedade mais justa. Mas no desolador panorama político atual, é o que a esquerda nacional pode fazer, além de produzir na tela alegorias de um país imaginário. O medo que eu tenho é que decidam permanecer em definitivo no mundo da fantasia, deixando a cena política monopolizada por uma direita canhestra.
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