Diante as saída do mercado editorial das boas revistas de História que eu acompanhava desde muito - a História Viva, a revista de História da Biblioteca Nacional, e agora não encontro mais a da BBC - tenho comprado a Leituras da História. De qualidade bem sofrível se comparada às anteriores, mas tenho a impressão de que está melhorando. Gostei de uma matéria sobre Lampião e o fenômeno do banditismo rural.
Endossando as condições sociais que fizeram florescer o banditismo no nordeste, contudo a matéria não deixa de atacar certos mitos duradouros que o cangaço suscitou desde então. Vejo aí um bom sinal. A admiração que o bando de Lampião despertava no populacho é bem sabida, e literalmente cantada em verso e prosa no cordel. De fato, os cangaceiros tinham um senso de honorabilidade desconhecido em bandidos comuns, característica do fenômeno denominado banditismo social. O bandido social se acomoda ao quadro social vigente e é aceito pela população, tal como descrito por Eric Hobsbawm. Mas tão antiga e folclórica quanto as façanhas de Lampião são os atos de sadismo e crueldade perpetrados por ele, ressalva que Hobsbawm não deixou de fazer, a despeito de sua evidente simpatia pelos "bandidos sociais". A matéria de Leituras da História endossou o quanto Lampião estava longe de ser um herói: seu bando oprimia humildes trabalhadores e expulsava posseiros das terras dos coronéis aliados do rei do cangaço.
Isso vai na contramão de uma narrativa que tomou corpo desde os anos 60 - a apresentação de Lampião como um rebelde em luta contra as classes dominantes. Fazia parte do espírito a época, com a intelectualidade dominada por pensadores de esquerda, ávidos para criar um herói popular à feição de um Pancho Villa tupiniquim. Não existindo em nossa história personagem similar, o cangaceiro foi reciclado para este papel. Particularmente o cineasta Glauber Rocha foi responsável pela construção do mito. Mas bem observado de uma perspectiva distanciada no tempo, vê-se que não foi um fenômeno isolado: sobretudo desde o fracasso da luta armada, que não teve o apoio dos trabalhadores, os pensadores e produtores culturais de esquerda têm procurado angariar seu novo público entre os marginais, aqueles que Marx denominava o lumpen-proletariado, e com razão considerava imprestáveis como revolucionários, por seu caráter venal. E de fato, por toda a História os burgueses sempre compraram os lumpens por poucos tostões, inclusive para joga-los contra os trabalhadores.
Mas a substituição dos trabalhadores pelos marginais como público revolucionário tornou-se uma obsessão que só agora começa a ceder. Não se pode negar que faz um certo sentido: os bandidos são aguerridos, e quando querem, são até organizados - haja visto as facções criminosas que dominam as favelas. Só tem um problema: eles são capitalistas. Diria mais, hipercapitalistas, a julgar pelo consumismo e exibicionismo típicos dessa gente, e nesse aspecto distanciam-se irremediavelmente das massas tal como são idealizadas pelos intelectuais da esquerda. Enfim, desde o tempo de Lampião, se o zé povinho admirava o bandido, a recíproca não era verdadeira.
As leituras da História servem para dissolver os mitos.
domingo, 28 de maio de 2017
sexta-feira, 5 de maio de 2017
Antecipando o 13 de maio
Todo ano, ao se aproximar o 13 de maio - data em que é celebrada a abolição da escravatura - o assunto volta à baila, como um trauma não superado, ou dizendo em melhor linguagem, uma conta em aberto com o passado. Essa data já teve outros significados no último século e meio. No princípio era associada à pessoa da princesa Isabel e apresentada em tons rosados como uma redenção, uma dádiva concedida por uma princesa bondosa que teria virado em definitivo uma página de nossa História. Modernamente se procura dissociar o evento da figura edulcorada da princesa, e se enfatiza que, ao contrário do que diz a história oficial, a página não foi virada, pois os descendentes dos escravos continuam a sofrer as consequências da escravidão.
Antecipando a discussão e as mistificações de sempre, vou procurar levantar aqui o que realmente foi o período escravocrata e quais efeitos ainda se fazem sentir na época atual. Começando pelo verdadeiro papel da princesa Isabel no evento. É um assunto controverso entre os historiadores. Alguns apontam uma militância discreta mas resoluta da princesa em prol da abolição, outros afirmam que ela apenas não se opôs. Não tenho dados aqui a acrescentar, mas foi consenso entre os donos de escravos que Isabel teve um papel decisivo na queda do gabinete do Barão de Cotegipe, o último ministro escravocrata, e na subida do gabinete João Alfredo, que fez a abolição. A partir daí se verificaria uma adesão maciça dos elementos mais conservadores do império à república, que até então contava com poucos apoiadores, de modo que pode-se concluir que fosse qual fosse a motivação de Isabel, ela sofreu as consequências. Entretanto, a circunstância de haver sido ela quem assinou a lei, no lugar de seu pai, que estava doente na ocasião, serviu bem aos propósitos de quem queria revestir o episódio de tons edulcorados, como se a abolição houvesse sido uma bondade da parte do governo, e não uma decorrência de lutas e mobilização. De fato, Isabel chegou quase a ser transformada em uma santa popular por parte dos ex-escravos agradecidos, o que provocou queixas de velhos militantes da causa abolicionista, que lutaram nas ruas e sem dúvida tiveram um papel bem mais penoso do que meramente por uma assinatura em um documento.
Mas o que não fica muito claro é como foi realmente vivenciada a escravidão no país enquanto esteve vigente, e qual a real dimensão de suas consequências nos dias de hoje. A visão que temos hoje do passado escravocrata deriva mais da literatura e da TV do que dos livros. Afinal, os escravos eram brutalizados ou paternalmente bem tratados? Eram rebeldes, ou eram aquelas criaturas dóceis e devotadas a seus senhores? Existia mesmo aquele ambiente de promiscuidade entre senhores e escravos que se afirma ter sido a origem de nosso povo miscigenado?
Citar casos particulares não responde à questão, pois há exemplos de todos. Mas as leituras que fiz sobre o assunto permitem-me identificar, grosso modo, três categorias de escravos daqueles tempos.
Os primeiros chamarei de parentes de segunda classe. Eram escravos domésticos de pequenos senhores, que possuiriam no máximo um ou dois cativos. Dividiam o espaço físico e compartilhavam a rotina da família, tal como parentes e agregados, mas eram obviamente parentes de segunda classe. O que não os impedia de obter certa afeição dos donos da casa e ter algum espaço de manobra para conseguir regalias, eventualmente se envolvendo em intrigas da família. De modo geral bem tratados, mas sem muito futuro, pois ainda que conseguissem a promessa de uma carta de alforria, esta raramente era concedida, paradoxalmente porque seus donos os estimavam tanto, que desejavam deixá-los como herança aos filhos. Esses escravos agregados à família deram a origem a duradouros estereótipos, como o negro infantilizado que brincava com os sinhozinhos, mas também o negro ladino fofoqueiro, nunca confiável. A persistência de tais estereótipos criou a impressão de que essa categoria de escravo era a prevalente, quando na realidade era a menos numerosa, pois ter escravos domésticos não era muito compensador. Muitos acreditam que naqueles tempos ter escravos domésticos era tão comum para as famílias da classe média quanto ter hoje empregados domésticos, mas não era bem assim. As famílias da classe média utilizavam de fato o serviço de escravos, mas esses eram em geral alugados, os "negros de ganho" costumeiramente pertencentes a alguma viúva.
A segunda categoria chamarei de Bens Valiosos. Eram os escravos pertencentes a pequenos e médios fazendeiros. Esses habitavam as senzalas e já não compartilhavam o espaço da família. Deles era exigido bastante trabalho e estavam sujeitos a castigos, mas seu alto valor ainda impedia que fossem maltratados em excesso. Eram, de fato, os bens mais preciosos que aqueles pequenos senhores podiam ter, e como tal eram considerados. Mas a relativa proximidade entre eles e a família, combinada com sua condição coisificada, que dispensava qualquer deferência, mesmo as devidas a parentes de segunda classe, dava margem a situações imprevistas e bastante inconvenientes, para eles sem dúvida, mas também para seus senhores. Podiam despertar desejos e preencher carências afetivas da parte dos donos da casa, mas sua posição vulnerável também os tornava alvo de ciúme, ódio, sadismo e taras. Desta categoria originaram-se numerosos relatos macabros que até hoje compõem o folclore relacionado ao tempo da escravidão. O escritor Joaquim Manuel Macedo, mais conhecido como autor de A Moreninha, publicou também um livro hoje pouco conhecido, intitulado As Vítimas Algozes, no qual relata episódios onde escravos souberam virar o jogo e passaram de vítimas a algozes de seus senhores, sempre explorando as fraquezas destes e jogando com o alto valor que eles próprios tinham como propriedade. Merece destaque o caso do escravo envenenador, que quando descoberto, era vendido e então envenenava a família de seus novos senhores, e assim sucessivamente, sem jamais ser punido - uma prática comum na época, pois se um escravo cometia crimes, seu valor caía bastante, então era comum que os senhores ocultassem o ocorrido e o vendessem ao invés de entregá-lo à polícia.
A terceira categoria chamarei, simplesmente, de peças. Eram aqueles que trabalhavam nas grandes fazendas com centenas de escravos, e constituíam o grupo dominante da população cativa, considerando-se o regime de latifúndio vigente. Tinham pouco contato com seus senhores, pois os feitores serviam como intermediários, e eram vistos como peças de produção dentro de uma lógica puramente econômica. Isso significava que deveriam render o máximo antes de serem descartados. Estavam sujeitos a um regime severo de castigos, no entanto aplicados de forma rotineira, pois em sua condição de meros objetos não despertavam sentimento algum da parte de seus senhores e feitores, nem afeição e tampouco ódio. Seu sofrimento derivava mais do trabalho exaustivo do que dos castigos. Dada a riqueza de seus senhores, seu valor contava pouco e eram vistos não apenas como peças, mas como peças descartáveis. Embora tenham formado a categoria mais numerosa, são também a menos conhecida, pois em razão de sua condição estritamente impessoal, suas histórias pessoais raramente eram veiculadas, ao contrário do que acontecia com as duas primeiras categorias.
Mas a escravidão ficou no passado, e esses estereótipos não se aplicam à população atual descendente de escravos, embora permaneçam vivos no imaginário. A discussão seguinte é o efeito que a escravidão teria deixado em nosso quadro social marcado pela desigualdade. Parece algo bastante óbvio, mas toda obviedade esconde um raciocínio indolente. Olhando para os lados, vê-se que esse quadro de pobreza e desigualdade é típico também de nossos vizinhos, inclusive daqueles que tiveram bem menos escravidão do que nós e a aboliram ainda no princípio do século 19. De fato, é típico de todo o terceiro mundo, e quero concluir que suas causas são puramente econômicas e não relacionadas à duração do período escravocrata, algo que, aliás, não pertence apenas ao nosso passado, mas em maior ou menor grau, ao passado comum da humanidade. O tema deveria ser tratado com mais isenção e menos mistificação.
Antecipando a discussão e as mistificações de sempre, vou procurar levantar aqui o que realmente foi o período escravocrata e quais efeitos ainda se fazem sentir na época atual. Começando pelo verdadeiro papel da princesa Isabel no evento. É um assunto controverso entre os historiadores. Alguns apontam uma militância discreta mas resoluta da princesa em prol da abolição, outros afirmam que ela apenas não se opôs. Não tenho dados aqui a acrescentar, mas foi consenso entre os donos de escravos que Isabel teve um papel decisivo na queda do gabinete do Barão de Cotegipe, o último ministro escravocrata, e na subida do gabinete João Alfredo, que fez a abolição. A partir daí se verificaria uma adesão maciça dos elementos mais conservadores do império à república, que até então contava com poucos apoiadores, de modo que pode-se concluir que fosse qual fosse a motivação de Isabel, ela sofreu as consequências. Entretanto, a circunstância de haver sido ela quem assinou a lei, no lugar de seu pai, que estava doente na ocasião, serviu bem aos propósitos de quem queria revestir o episódio de tons edulcorados, como se a abolição houvesse sido uma bondade da parte do governo, e não uma decorrência de lutas e mobilização. De fato, Isabel chegou quase a ser transformada em uma santa popular por parte dos ex-escravos agradecidos, o que provocou queixas de velhos militantes da causa abolicionista, que lutaram nas ruas e sem dúvida tiveram um papel bem mais penoso do que meramente por uma assinatura em um documento.
Mas o que não fica muito claro é como foi realmente vivenciada a escravidão no país enquanto esteve vigente, e qual a real dimensão de suas consequências nos dias de hoje. A visão que temos hoje do passado escravocrata deriva mais da literatura e da TV do que dos livros. Afinal, os escravos eram brutalizados ou paternalmente bem tratados? Eram rebeldes, ou eram aquelas criaturas dóceis e devotadas a seus senhores? Existia mesmo aquele ambiente de promiscuidade entre senhores e escravos que se afirma ter sido a origem de nosso povo miscigenado?
Parentes de segunda classe, Bens valiosos, Peças
Citar casos particulares não responde à questão, pois há exemplos de todos. Mas as leituras que fiz sobre o assunto permitem-me identificar, grosso modo, três categorias de escravos daqueles tempos.
Os primeiros chamarei de parentes de segunda classe. Eram escravos domésticos de pequenos senhores, que possuiriam no máximo um ou dois cativos. Dividiam o espaço físico e compartilhavam a rotina da família, tal como parentes e agregados, mas eram obviamente parentes de segunda classe. O que não os impedia de obter certa afeição dos donos da casa e ter algum espaço de manobra para conseguir regalias, eventualmente se envolvendo em intrigas da família. De modo geral bem tratados, mas sem muito futuro, pois ainda que conseguissem a promessa de uma carta de alforria, esta raramente era concedida, paradoxalmente porque seus donos os estimavam tanto, que desejavam deixá-los como herança aos filhos. Esses escravos agregados à família deram a origem a duradouros estereótipos, como o negro infantilizado que brincava com os sinhozinhos, mas também o negro ladino fofoqueiro, nunca confiável. A persistência de tais estereótipos criou a impressão de que essa categoria de escravo era a prevalente, quando na realidade era a menos numerosa, pois ter escravos domésticos não era muito compensador. Muitos acreditam que naqueles tempos ter escravos domésticos era tão comum para as famílias da classe média quanto ter hoje empregados domésticos, mas não era bem assim. As famílias da classe média utilizavam de fato o serviço de escravos, mas esses eram em geral alugados, os "negros de ganho" costumeiramente pertencentes a alguma viúva.
A segunda categoria chamarei de Bens Valiosos. Eram os escravos pertencentes a pequenos e médios fazendeiros. Esses habitavam as senzalas e já não compartilhavam o espaço da família. Deles era exigido bastante trabalho e estavam sujeitos a castigos, mas seu alto valor ainda impedia que fossem maltratados em excesso. Eram, de fato, os bens mais preciosos que aqueles pequenos senhores podiam ter, e como tal eram considerados. Mas a relativa proximidade entre eles e a família, combinada com sua condição coisificada, que dispensava qualquer deferência, mesmo as devidas a parentes de segunda classe, dava margem a situações imprevistas e bastante inconvenientes, para eles sem dúvida, mas também para seus senhores. Podiam despertar desejos e preencher carências afetivas da parte dos donos da casa, mas sua posição vulnerável também os tornava alvo de ciúme, ódio, sadismo e taras. Desta categoria originaram-se numerosos relatos macabros que até hoje compõem o folclore relacionado ao tempo da escravidão. O escritor Joaquim Manuel Macedo, mais conhecido como autor de A Moreninha, publicou também um livro hoje pouco conhecido, intitulado As Vítimas Algozes, no qual relata episódios onde escravos souberam virar o jogo e passaram de vítimas a algozes de seus senhores, sempre explorando as fraquezas destes e jogando com o alto valor que eles próprios tinham como propriedade. Merece destaque o caso do escravo envenenador, que quando descoberto, era vendido e então envenenava a família de seus novos senhores, e assim sucessivamente, sem jamais ser punido - uma prática comum na época, pois se um escravo cometia crimes, seu valor caía bastante, então era comum que os senhores ocultassem o ocorrido e o vendessem ao invés de entregá-lo à polícia.
A terceira categoria chamarei, simplesmente, de peças. Eram aqueles que trabalhavam nas grandes fazendas com centenas de escravos, e constituíam o grupo dominante da população cativa, considerando-se o regime de latifúndio vigente. Tinham pouco contato com seus senhores, pois os feitores serviam como intermediários, e eram vistos como peças de produção dentro de uma lógica puramente econômica. Isso significava que deveriam render o máximo antes de serem descartados. Estavam sujeitos a um regime severo de castigos, no entanto aplicados de forma rotineira, pois em sua condição de meros objetos não despertavam sentimento algum da parte de seus senhores e feitores, nem afeição e tampouco ódio. Seu sofrimento derivava mais do trabalho exaustivo do que dos castigos. Dada a riqueza de seus senhores, seu valor contava pouco e eram vistos não apenas como peças, mas como peças descartáveis. Embora tenham formado a categoria mais numerosa, são também a menos conhecida, pois em razão de sua condição estritamente impessoal, suas histórias pessoais raramente eram veiculadas, ao contrário do que acontecia com as duas primeiras categorias.
Mas a escravidão ficou no passado, e esses estereótipos não se aplicam à população atual descendente de escravos, embora permaneçam vivos no imaginário. A discussão seguinte é o efeito que a escravidão teria deixado em nosso quadro social marcado pela desigualdade. Parece algo bastante óbvio, mas toda obviedade esconde um raciocínio indolente. Olhando para os lados, vê-se que esse quadro de pobreza e desigualdade é típico também de nossos vizinhos, inclusive daqueles que tiveram bem menos escravidão do que nós e a aboliram ainda no princípio do século 19. De fato, é típico de todo o terceiro mundo, e quero concluir que suas causas são puramente econômicas e não relacionadas à duração do período escravocrata, algo que, aliás, não pertence apenas ao nosso passado, mas em maior ou menor grau, ao passado comum da humanidade. O tema deveria ser tratado com mais isenção e menos mistificação.
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