quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Revendo Nosso "Melting Pot"

 Um dos mais conhecidos mitos fundadores de nosso país diz respeito à miscigenação: o Brasil seria peculiar em razão da mistura de portugueses, índios e negros. Alguns apresentam essa característica nacional em tons melífluos, afirmando ser ela a origem do (suposto) caráter cordial e da ausência de sentimentos racistas em nossa população. Outros veem essa assertiva como uma mal disfarçada tentativa de conciliação de classes, e afirmam que nossa miscigenação nada mais seria que o reflexo do caráter predatório do dominador português, que chegava aqui emprenhando índias e escravas para depois abandoná-las. Outros ainda introjetam o antigo olhar estrangeiro sobre a terra abaixo do equador onde "não existe pecado", e devolvem pela via da academia, da literatura e do cinema o retrato do Brasil como uma imensa senzala habitada por mulatas assanhadas e portugueses lúbricos.

No meio dessa discussão, é oportuno citar um alvará régio de 1755, incentivando a união legal entre portugueses(as) e índios(as) e protegendo seus descendentes:

(Marquês de Pombal) – Eu, El Rei. Faço saber aos que este meu Alvará de lei virem, que considerando o quanto convém que os meus reais domínios da America se povoem, e que para este fim pode concorrer muito a comunicação com os Índios, por meio de casamentos: sou servido declarar que os meus vassalos deste reino e da America, que casarem com as Índias dela, não ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos da minha real atenção; e que nas terras, em que se estabelecerem, serão preferidos para aqueles lugares e ocupações que couberem na graduação das suas pessoas, e que seus filhos e descendentes serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra, ou dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças, em que serão também compreendidas as que já se acharem feitas antes desta minha declaração: E outro sim proibido que os ditos meus vassalos casados com Índias, ou seus descendentes, sejam tratados com o nome de Caboucolos, ou outro semelhante, que possa ser injurioso; (...) O mesmo se praticara a respeito das Portuguesas que casarem com Índios: e a seus filhos e descendentes, e a todos concedo a mesma preferência para os ofícios, que houver nas terras em que viverem; e quando suceda que os filhos ou descendentes destes matrimônios tenham algum requerimento perante mim, me farão saber esta qualidade, para em razão dela mais particularmente os atender. E ordeno que esta minha real resolução se observe geralmente em todos os meus domínios da America. Pelo que mando ao vice-rei e capitão general de mar e terra do estado do Maranhão e Pará, e mais conquistas do Brasil, capitães mores delas, chanceleres, e desembargadores das Relações da Bahia e Rio de Janeiro, ouvidores gerais das Comarcas, juízes de fora e ordinários, e mais justiças dos referidos estados, cumpram e guardem o presente alvará de ley, e o façam cumprir e guardar na forma que nele se contém; o qual valerá como carta, posto que seu efeito haja de durar mais de um ano, e se publicará nas ditas comarcas, e em minha chancelaria mor da corte, e reino, onde se registrará, como também nas mais partes, em que semelhantes alvarás se costumam registrar; e o próprio se lançará na Torre do Tombo. Lisboa, quatro de abril de mil setecentos e cinquenta e cinco. – Rey

Então, nossa miscigenação não é exatamente produto do "Estupro Fundamental", como muitos denominam a chegada aqui dos portugueses. Mesmo porque o propósito do estupro não é produzir descendentes, embora isso possa acontecer. Nenhum historiador sério acredita que o atual povo francês seja o produto de mulheres gaulesas estupradas por invasores romanos, nem que o atual povo escocês é o produto de mulheres celtas estupradas por vikings, mas muitos acreditam que nossa vasta população morena tenha sido gerada por uma série de estupros de portugueses sobre índias e escravas. Tem a ver com os mitos fundadores que fazem o gosto das pré-suposições: os colonos da América do Norte eram puritanos que chegavam com suas famílias, dispostos a construir um novo país, enquanto os portugueses, povo meridional possuído pela sensualidade tropical, fizeram uma farra doida com as mulheres locais, originando assim dois países: um ordenado, porém racista; outro bagunçado, porém isento de racismo. Assim teriam surgido os EUA e o Brasil. Ponto.

Mas os cultores desta teoria omitem um dado histórico fundamental: ao contrário do que sucedeu nos EUA, as primeiras levas de colonos que aportaram aqui só traziam homens. Esses colonos não tinham outra alternativa senão desposar mulheres índias, mesmo porque eram só um punhado e não podiam sobreviver sem aliança com as tribos. É fácil de conceber que um colono que chega em uma terra desconhecida e despovoada, da qual não pode esperar qualquer proteção, sente a necessidade imperiosa de produzir descendentes o mais rápido e na maior quantidade possível, mesmo porque, sem os quais, não terá sequer como sustentar-se quando lhe faltarem forças para o trabalho.

Descendentes em grande quantidade e leais ao patriarca só podem ser concebidos via uniões estáveis. Conclui-se, portanto, que os colonos não saíam por aí emprenhando índias, mas ao invés disso se casavam com elas respeitando as convenções locais. Mesmo porque não teriam o favor das tribos se desrespeitassem suas mulheres. Outro fator que pode ter contribuído para a lenda do colono cafajeste que abandonava os filhos seria uma interpretação equivocada dos costumes dos índios, que aceitavam a poligamia, e cujos filhos só permaneciam na companhia dos pais até uns 8 anos, sendo criados coletivamente pela tribo após esta idade.

Foi assim nos primórdios da colonização. Depois começaram a chegar mulheres europeias nos navios, e já não havia necessidade de se casar com mulheres locais. Estando os colonos bem estabelecidos e com poder, diminuía a necessidade de alianças com as tribos. A partir de então os esporádicos enlaces entre colonos e mulheres índias assumiriam o caráter do que hoje chamamos de sexo casual, ou mesmo estupro, mas é duvidoso que um grande contingente populacional tenha sido formado por esta via, mesmo porque a maioria das tribos aceitava o infanticídio e não permitia o nascimento de nenhuma criança indesejada. Ademais, a massa de mestiços, chamados caboclos, já havia sido gerada nos primórdios da colonização, e reproduzia-se vegetativamente.

Outra lenda que precisa ser revista é aquela que afirma que a população de mulatos teria sido gerada exclusivamente pelo estupro de escravas. Estupros com certeza ocorreram, mas é preciso lembrar que os costumes da época podiam ser tolerantes com o abuso sexual das escravas, mas não eram tolerantes com crianças legítimas e bastardas convivendo sob o mesmo teto. Penso que maioria das crianças filhas das visitas do sinhôzinho à senzala era abortada, vendida para outra fazenda ou feita desaparecer por algum outro meio. Após o fim da escravidão, os negros recém-libertados começaram a se casar em número crescente com os antigos caboclos, que tinham uma condição social semelhante à deles, sendo essa a origem da maioria dos atuais mulatos (que a bem dizer, seriam cafuzos, descendentes de brancos, índios e negros). Uniões entre brancos puros e negros puros, possivelmente, eram tão raras naqueles tempos quanto hoje em dia.

Às vezes a História se constrói mais pela remoção de falsas suposições do que pelo adendo de novas descobertas.

Um comentário:

  1. Caro Pedro,
    Gostei de ler! Também gostei de outro anterior "O carater brasileiro".
    De Londres, onde agora há dezenas de milhares de brasileiros. E infelizmente muitos a darem mau nome à diáspora. (Não sou brasileiro, mas escrevo e falo também português.
    Se me permite, republico o texto. Com os melhores Cumprimentos, F.Graça

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