domingo, 24 de fevereiro de 2019

Carnaval é só Carnaval

Está chegando o carnaval, e esse foi o título de uma crônica publicada por Diogo Mainardi na revista Veja, e lá se vão mais de 10 anos. Não que eu seja um grande fã deste cronista, que sempre considerei amargo e repetitivo. Mas na ocasião admirei a sua disposição em refutar certos lugares-comuns que ao longo dos anos os brasileiros se acostumaram a ter como verdade acerca do carnaval. De fato, há pelo menos 80 anos insistimos em ver um significado antropológico profundo no carnaval brasileiro, que seria o emblema máximo da brasilidade, mesmo até a chave para o entendimento de como nossa sociedade funciona e se mantem a despeito da enorme desigualdade.

Não vou repetir aqui esses chavões um por um. Mas permito-me constatar que passados 80 anos, esses chavões materializaram uma imagem caricatural do país, veiculada sobretudo no exterior, onde carnaval é a primeira coisa que vem à cabeça do estrangeiro quando se fala em Brasil. Muitos não veem mal nisso. Ter a imagem do país associada a uma grande festa onde todos se divertem seria uma coisa positiva, ou no máximo uma tolice inócua. O problema surge quando se pretende enxergar aí um significado histórico e antropológico profundo, e isso é o que tem sido feito ao longo dos anos.

Tentando entender como essa imagem se solidificou, a principal pista é a grande aceitação dela no exterior. Claramente introjetamos uma leitura que os estrangeiros têm feito de nós ao longo dos anos, e se damos o que eles querem ver, temos em troca o reconhecimento. Desde o século 16 existe na Europa uma utopia a respeito dos trópicos do Novo Mundo, vistos como uma espécie de Jardim do Éden antes do pecado original - diz o provérbio, não existe pecado do lado de baixo do equador. O que queriam dizer era que do lado de baixo do equador, não seria errado fazer o que era errado fazer em casa. Ali podia-se fazer sexo com as mulheres índias e ter várias esposas, o que efetivamente aconteceu. E daí nasceu um mito fundador do Brasil relacionado ao sexo: o povo brasileiro, e por conseguinte o país, só pôde surgir mediante a supressão da moral cristã e à conjunção carnal ilimitada entre todas as raças, em uma enorme orgia até hoje celebrada no carnaval. Quem quiser entender o Brasil, portanto, deve entender o carnaval. Por isso que somos assim, sem culpa, enquanto os puritanos do norte reprimiam sua sexualidade e cultivavam o racismo.

Há algum fundamento nesta teoria? Ou ela é aceita apenas porque satisfaz as fantasias que os povos do norte têm historicamente alimentado a respeito dos trópicos? Na verdade, não há muito fundamento. Os portugueses católicos não tinham uma atitude em relação ao sexo muito diferente daquela dos ingleses protestantes, mas havia outra diferença, esta sim fundamental: quando chegaram aqui as primeiras levas de colonos, não havia mulheres. Ao contrário dos colonos da América do Norte, que sempre trouxeram mulheres em suas jornadas. Portanto, para os portugueses, coabitar com índias não era uma escolha, mas uma necessidade, não apenas para produzir descendentes, indispensáveis para quem está se estabelecendo em uma terra estranha e despovoada, mas também para firmar alianças com as tribos. Por conseguinte, essa coabitação não se deu na forma de uma desbragada orgia como é imaginada, mas tinha que amoldar-se aos costumes dos locais, que aceitavam a poligamia, mas não o abandono de esposa e filhos. Os colonos não saíam por aí a emprenhar índias e abandona-las, como afirma a caricatura; eles tinham que tratar suas esposas com deferência, se quisessem continuar a contar com o favor das tribos.

Foi assim nos primórdios. Algumas décadas depois, já estabelecidos no litoral e contando com mulheres europeias chegando em quantidade nos navios, os colonos puderam dispensar as alianças com as tribos e retomar a moral sexual cristã. A partir de então o sexo com nativas assumiu o caráter de entretenimento, senão de estupro, que se mantém até hoje. Mas os descendentes mestiços originados daquela fase de "intoxicação sexual", como se refere Gilberto Freyre, continuaram a produzir descendentes, e hoje oferecem ao mundo a imagem de um povo que não vê barreiras raciais quando se trata de fazer amor, e supostamente por este motivo, aqui "não existe racismo". E no carnaval todos festejam.

Não é difícil entender como o estrangeiro comprou uma imagem que endossava o que ele esperava ver. Mais difícil é entender porque o brasileiro tanto se esforçou para vender uma imagem que, bem considerada, era desairosa. É preciso lembrar que a noção da não existência de pecado nas colônias deriva de uma dicotomia Civilizado X Selvagem. O civilizado é regido por costumes, o selvagem se deixa levar por instintos. O civilizado tem uma moral, o selvagem não tem. Uma relação baseada em uma dicotomia Civilizado X Selvagem nunca é de fato amistosa, ainda que pareça. Para entender, é preciso retornar ao passado. Até o início do século 20, o carnaval era muito mal visto pelas "boas famílias", mas ali pelos anos 30, as coisas mudaram. O país passava por uma fase de autoafirmação e nativismo, buscando por mitos fundadores e o resgate de "coisas nossas" supostamente genuínas. Daí começou a glorificação do carnaval e a construção de teorias que afirmavam seu suposto significado antropológico. Queríamos exibir ao mundo uma imagem que fosse autenticamente nossa, e assim reconhecida pelo estrangeiro. Mas acabamos introjetando ideias que esses mesmos estrangeiros sempre nutriram a nosso respeito, e resgatamos o país da esbórnia sexual, festejado no carnaval.

Os principais responsáveis por esta construção foram intelectuais como Gilberto Freyre, apologista da mistura de raças, mas obcecado por sexo interracial, como ele deixou claro em um livro de memórias intitulada De Menino a Homem, onde narra diversas experiências sexuais bizarras de sua juventude. Mas também havia os políticos que consideravam a oficialização do carnaval como festa nacional uma maneira de domestica-lo, transformando as letras de samba em glorificação do regime, e os foliões em paradistas bem comportados. O fato é que, desde então, o carnaval perdeu muito de sua espontaneidade e de suas características originais.

Já outros comentaristas preferem apontar um significado social no carnaval - seria uma colossal confraternização entre as classes. Ao menos naqueles dias os papéis se inverteriam, o pobre poderia vestir-se de rei e festejar ao lado do rico. Sem essa válvula de escape o país supostamente explodiria em conflitos. Uns acham isso bom, porque permite a paz social, e outros acham isso ruim, porque retarda a revolução. Mas tem algum fundamento?

Muito pouco. Na Roma antiga, de onde se originou o carnaval, de fato havia o costume de se vestir um escravo como rei durante certa festividade. Mas no Brasil de hoje, o carnaval foi apossado pela indústria turística. Uma pequena parcela da população adora o carnaval, outra pequena parcela odeia-o, e para a maioria trata-se apenas de um feriado que aproveitam para viajar. Alguém acredita que se o carnaval for suspenso, haverá uma revolução?

Só podemos repetir a conclusão de Mainardi. Carnaval é só carnaval.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Para os historiadores do futuro explicarem

A História só pode ser devidamente apreciada com um mínimo de distanciamento no tempo. Como se diz, não se pode contemplar uma catedral estando dentro dela. E um fenômeno que os historiadores do futuro terão que explicar é a queda do PT, o partido dos trabalhadores que dez anos atrás exibia ampla aprovação, mas terminou rejeitado por esses mesmos trabalhadores.

Já dei minha opinião a respeito em outras oportunidades. Mas uma coisa que sempre me chamou a atenção é a capacidade de certas figuras populares, intelectualmente rasas, de sintetizar em poucas palavras a explicação para um fenômeno que os intelectuais não conseguem ou não querem explicar. Nesse artigo do Jornal GGN, intitulado o Povo Quer as Milícias no Poder, o rapper Mano Brown assim criticou o PT:

Deixou de entender o povão, já era. Se é Partido dos Trabalhadores, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar entender

Ele disse o mesmo que eu já repeti tantas vezes: o principal motivo do divórcio entre o Partido dos Trabalhadores e o trabalhador foi a negligência com a questão da segurança pública, que é a preocupação número um do povo das periferias assoladas pelo crime. Mas como um partido que sempre se disse antenado com o povo pôde ignorar uma demanda tão óbvia?

No mesmo artigo, a socióloga Angelina Peralva ressalta que a violência no Brasil se acentuou no período pós-ditadura. De fato, ela já vinha em ascensão durante a ditadura, negligenciada pelos militares, mas foi mesmo nos anos 80 que deu um salto. E esse salto está diretamente ligado à ascensão de governos de esquerda, sendo o exemplo mais notável Leonel Brizola no Rio de Janeiro. Como se sabe, Brizola proibiu a polícia de subir aos morros, e em consequência os traficantes se armaram e passaram a dominar seus territórios como um exército de ocupação. Em resposta, a população se cotizou para pagar guardas particulares, geralmente policiais ou ex-policiais, que depois se tornaram as milícias.

Como isso foi possível?

O equívoco fundamental, a meu ver, foi a própria abordagem da questão da segurança por parte dos petistas, em sua maioria indivíduos egressos de meios intelectuais sem contato com o povo nas ruas. Foi dado ao fenômeno da criminalidade uma leitura de luta de classes, sob a óptica marxista - por conseguinte, reprimir os criminosos é reprimir o povo. A abordagem marxista não enxerga o indivíduo, apenas a classe social. Como tanto os marginais quanto os trabalhadores pertencem à classe dos proletários, então, julgam os petistas, eles são a mesma coisa, e devem merecer o mesmo favor. Isso vai diametralmente contra o enfoque que o povo das periferias tem a respeito de si próprio e dos marginais: a dicotomia Trabalhador X Vagabundo. Uma vez que habita as mesmas paragens que os marginais, o trabalhador fica indefeso contra eles, exceto se contar com as milícias. Natural que busque apoio em quem promete dureza no combate ao crime.

Essa substituição dos trabalhadores pelos marginais, aqueles a quem Marx denominava o lúmpen-proletariado, na verdade vem desde o fim da luta armada, que não teve o apoio dos trabalhadores. O proletariado não ingressava na guerrilha, mas em contrapartida, as favelas cresciam. Daí que a esquerda foi buscar seu novo público entre esses lúmpens, aí entendidos não só como os marginais, mas como todo grupo de indivíduos desajustados e inconformistas. Isso escandalizou o povo das periferias, profundamente conservador, que correu para os pastores evangélicos e selou de vez o divórcio com o PT.

Frequentador que sou de forum´s da internet, chama-me a atenção, também, a resistência dos petistas em admitir seu equívoco. Isso se deve, a meu ver, ao DNA revolucionário do PT. O tópico foi debatido nesse artigo, também do Jornal GGN.

É certo que o PT nunca foi, formalmente, um partido revolucionário, como era o antigo pecebão. Mas foi constituído desde o princípio por elementos oriundos de movimentos revolucionários. O revolucionário não é igual ao político, eles não se vê como participante de um jogo onde pode ganhar ou perder, tampouco como porta-voz de demandas populares avulsas. Ele se vê como portador de uma verdade excelsa e definitiva, um sistema de ideias coerente e completo que deve substituir o que está aí, e iniciar uma nova etapa histórica onde será hegemônico - para ele não existe A ou B, mas Certo ou Errado. É a mesma atitude do pregador de uma nova religião. O profeta não pode admitir estar errado, ou perderá sua legitimidade.

E religião por religião, isso os pastores evangélicos sabem fazer melhor.