terça-feira, 30 de maio de 2023

Lula e o Compadre Maduro

O assunto do dia é a visita do presidente Nicolas Maduro ao Brasil, severamente criticada por quem vê aí uma aproximação de Lula com ditaduras. Algumas previsões catastrofistas podem ser feitas. Quanto a mim, não é surpreendente. Para Lula, é fácil afirmar que a Venezuela tem sido "vítima de uma narrativa", e que sua monumental crise econômica é consequência das sanções impostas. Não acredito que essa reaproximação do país com a Venezuela trará outras consequências nefastas além de mais dinheiro perdido em empréstimos que não serão pagos.

Mas o caso é que o episódio evidencia um traço do atual presidente, que tem sido bem marcante: Lula é um discípulo dileto do compadrio, atributo que foi bem dissecado em estudo sociológico por Sérgio Buarque de Holanda ao definir o conceito do Homem Cordial. Em outras palavras, Lula se reaproxima de Maduro, nem tanto por motivações políticas e econômicas, mas sobretudo porque Maduro é um compadre. A lógica é essa: o sujeito pode ter matado a mãe, estuprado a avó e explodido o quarteirão inteiro, mas se é compadre, então está colocado na categoria dos "boa gente".

Lula pode ser politicamente habilidoso, mas nunca conseguiu se libertar do vício do compadrio, que o vincula àquilo que o povo brasileiro tem de mais bruto e primitivo. Isso ficou bem claro quando ele concedeu asilo ao foragido Cesare Batisti, afirmando em alto e bom tom que o considerava um inocente perseguido pelo governo italiano, fato que causou grande embaraço ao país. E no fim, Batisti confessou-se culpado e está na prisão na Itália.

Mas o que importa é que Maduro é um compadre, e aos compadres se empresta dinheiro mesmo que não paguem. Com essa transfusão, Lula pode dar uma sobrevida ao regime chavista, sabidamente um desastre completo que tem inundado de refugiados os países vizinhos, inclusive o Brasil. Isso é triste, sobretudo quando lembramos que a Venezuela é dona da maior reserva de petróleo do planeta, e costumava ter um padrão de vida superior ao do Brasil. Agora é também foco de banditismo organizado, comandado pela temida gangue conhecida como Trem de Aragua, gestada nas superlotadas prisões venezuelanas. A explosão da população carcerária venezuelana é fenômeno não bem explicado, pois começou ainda nos "anos bons" dos chavismo, quando foram implementados numerosos programas de distribuição de renda que, em teoria, deveriam aliviar as tensões sociais. No momento atual, não há dúvida de que o colapso do país, empurrando tantos milhões para a informalidade e o ilícito, constitui o caldo de cultura ideal para o florescimento do crime organizado.

Como pode ter havido tanto declínio? Nada de se espantar: a incompetência política é característica de povos onde a autoridade política é calcada no modelo familiar, com uma relação paternal entre o chefe de estado e a população, conduzindo ao caudilhismo, à corrupção e ao compadrio. Em outras palavras, é o traço de uma sociedade habitada pelo Homem Cordial, onde as relações sociais ainda não conseguiram evoluir de moldes personalistas para modelos abstratos, como a cidadania e a institucionalidade. O que prejudica nosso entendimento foi que Buarque de Holanda vendeu o Homem Cordial como se fosse uma invenção brasileira, até mesmo definida pateticamente como a "contribuição brasileira para a humanidade". Isso fez com que nos afeiçoássemos ao conceito, e o considerássemos "coisa nossa", quando na realidade está presente em maior ou menor grau em todos os povos do Terceiro Mundo.

Não se pode negar que Lula é bastante cordial. Mas continuo na esperança de que isso não nos cause mais do que alguns calotes na dívida.

sábado, 6 de maio de 2023

O Linha Direta e a "bandidolatria nacional"

Vi com satisfação o retorno do programa Linha Direta à grade da TV Globo, de onde estava ausente desde 2007. Até então, o programa veiculava casos policiais em aberto, e exibia o retrato dos criminosos foragidos. A despeito de sua enorme popularidade, foi descontinuado, e chegou-se a comentar que a Globo estaria recebendo ameaças dos criminosos denunciados. Outros afirmaram que o programa estava sendo criticado por supostamente glamurizar o crime. Sinceramente, não notei essa glamurização nos episódios que assisti, mas o fato do programa haver proporcionado a prisão de mais de 400 criminosos graças a suas denúncias, a meu ver dispensa qualquer outro argumento e justifica de pleno a sua manutenção.

O episódio para a reestréia foi bem escolhido: tratou-se do Caso Eloá, extremamente emblemático. Como se sabe, refere-se a um sequestro com cárcere privado ocorrido em 2008, quando um homem inconformado com o fim de uma relação, Lindemberg Alves Fernandes, invadiu o apartamento da ex-namorada, Eloá Cristina Pimentel, e ali manteve ela e uma colega como reféns por nada menos que cinco dias, terminando por matá-la e ferindo a colega antes de ser preso quando a polícia invadiu o apartamento.

Não foi a primeira vez que uma coisa assim aconteceu, nem seria a última, mas o episódio notabilizou-se pela maneira absurda com que foi tratado pela polícia e pela midia, chegando a tornar-se um grotesco reality show, com seu ponto máximo na reentrega da refém colega de Eloá dois dias após haver sido libertada.

Nos cinco dias que durou o show, o sequestrador foi tratado com todo o beneplácido pela polícia, que atendeu a todas as suas exigências, inclusive enviando mantimentos para que pudesse manter o cárcere privado indefinidamente. Quando ele afirmou que só se entregaria se Nayara, a colega de Eloá, estivesse presente, a polícia foi buscá-la com a finalidade de "ajudar nas negociações", e o sequestrador só teve o trabalho de puxá-la pelo braço para trazê-la de volta ao apartamento. Quando por fim a polícia decidiu invadir, os preparativos foram tão descuidados que o sequestrador teve tempo de armar uma barricada junto à porta, o que atrasou a entrada dos policiais por tempo suficiente para que ele atirasse nas vítimas.

Por que tanta incúria? Por que a polícia não agiu antes? Naqueles cinco dias, o sequetrador apareceu inímeras vezes à janela, podendo ser alvo de um atirador de elite. E com certeza ele precisava de tanto em tanto dormir, comer e até ir ao banheiro. Em suma, não faltaram ocasiões oportunas para a policia invadir. Mas nada aconteceu. Um boato não confirmado dá conta de que o governador Alkmin havia proibido terminantemente a polícia de matar o sequestrador, pois era época de eleição e não queria se prejudicar. A meu ver, a melhor explicação pode ser extraída deste comentário do coronel Eduardo Félix, então comandante do Batalhão de Choque da Polícia Militar:

"Nós poderíamos ter matado, ter dado o tiro, mas é um garoto de 22 anos de idade, sem antecedentes criminais e com uma crise amorosa. Se nós tivéssemos atingido o Lindemberg, fatalmente os senhores [jornalistas] estariam questionando o GATE sobre por que não negociaram mais"

 Uma leitura apressada passa a impressão de que o comentarista estaria imbuído de sólidos escrúpulos quanto aos direitos humanos do delinquente. Mas realmente preocupa-se com direitos humanos alguém que denomina "crise amorosa" o terror que o criminoso infligiu às vítimas?

O que se vê, de fato, é uma sólida empatia para com o criminoso, cujas atitudes são contempladas com compreensão, concomitante a um enorme desprezo pelo sofrimento da vítima. Não é a opinião isolada do coronel Eduardo Félix: coisa expressa com tanta convicção está por certo impressa na mente da população desde muitas gerações atrás, e trata-se de uma espécie de doença mental coletiva que eu denomino bandidolatria. Que ninguém ache estranho: não é este o pais onde o cangaceiro Lampião é considerado herói popular? A bandidolatria é basicamente a empatia para com o delinquente, cujos atos são justificados por alguma lógica. Sua causa mais primal é um sentimento de falta de autoridade moral para condenar o criminoso, que assim pode fazer sua própria justiça. Sua consequência última é a alta criminalidade consoante à extrema brandura da legislação penal. Difícil é condenar o delinquente. Facílimo é libertá-lo por meio de incontáveis benefícios para se relaxar a prisão.

O Linha Direta promete abordar o caso Letícia Tanzi, ainda mais emblemático da fraqueza da legislação penal brasileira. Não tenho estômago para falar dele aqui no momento. Quem quiser, procure no Google.