quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Da Humanidade dos Índios

Recentemente soube de uma notícia afirmando que a coordenadora da Associação Protetora dos Índios do Brasil (APIB), Sonia Guajajara, pretendia processar o presidente Jair Bolsonaro por crime de racismo, em razão de uma declaração dada recentemente.

 “O índio mudou, está evoluindo, cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós. Então fazer com que o índio cada vez mais se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena, é isso que nós queremos”

Indignada, a coordenadora publicou em seu twiter:

“Nós, povos indígenas, originários desta terra, exigimos respeito! Bolsonaro mais uma vez rasga a Constituição ao negar nossa existência enquanto seres humanos. É preciso dar um basta a esse perverso!”


Não é novidade que o presidente é descuidado com as palavras, isso quando não quer insultar mesmo. Mas não parece ter sido o caso desta vez. É preciso atentar para o que foi que ele quis dizer, e o que foi que a coordenadora entendeu. O índio é cada vez mais um ser humano como nós, ele afirmou. Então, antes o índio era cada vez menos um ser humano como nós, ou não era um ser humano? A meu ver, ser humano o índio sempre foi.

Mas não parece ter sido a dúvida quanto à natureza humana do índio a causa da indignação da coordenadora. O presidente nega a existência dos índios enquanto seres humanos, ela afirmou. Mas a afirmação do presidente não foi exatamente o contrário?

Cabe concluir que no entendimento da coordenadora, então, o índio é um ser humano, mas não um ser humano como nós. Querer enquadra-lo como uma pessoa comum seria negar a especificidade que lhe é atribuída. Não conheço Sonia Guajajara, mas posso perceber que ela é mais uma ativista bem sintonizada com os ideais globalistas disseminados por ONG´s, e pouco afeita à cultura ancestral dos índios. É sabido que desde o descobrimento, o índio brasileiro tem sido objeto de utopias e narrativas criadas por estrangeiros. A utopia do presente é essa criatura inventada pelos ambientalistas, o índio ecologicamente correto, que preserva aa florestas e as defende contra os destruidores. Quem entende o mínimo de povos nativos da floresta sabe muito bem que a preservação da natureza nunca fez parte da cultura ancestral destes povos. Ao contrário, a sobrevivência deles sempre dependeu de predar os recursos naturais, com caça, pesca e agricultura de queimada para os mais evoluídos. Quando os recursos naturais se esgotavam, eles se deslocavam para outro lugar. Simples assim.

Mas na visão dos ambientalistas, preservar as florestas significa deixa-las sob a guarda dos "povos originários", e não faltam representantes destes povos que aprenderam a mimetizar tal discurso e recebem o apoio das ONG´s, que lhes patrocinam viagens e auditórios. Na descrição destes ativistas, o índio seria uma criatura telúrica, parte mesmo da natureza com quem vive em harmonia. Preservar seu modo de vida original é sua única ambição e fonte de perfeita felicidade.

Essa mistificação está presente em muitas representações na literatura e no cinema, e não tenho necessidade de cita-las aqui. Mas nada tem de real, sob o ponto de vista antropológico. O modo de vida ancestral dos índios sempre foi extremamente danoso para a natureza, que só permaneceu preservada (em termos) porque as comunidades de povos da floresta eram muito pequenas e o dano que elas causava não chegava a ser significativo. Mas essas populações eram pequenas justamente em razão da inviabilidade intrínseca a seu modo de vida. Se a população crescia, a tribo tinha que se dividir e se deslocar, pois os recursos naturais rapidamente eram esgotados. Morria-se de fome, e pronto.

Mas como não sou tão inocente quanto a maioria dos ambientalistas, acredito que essa construção utópica tem propósitos outros. As ONG´s ambientalistas são todas originárias de países ricos, com alto índice de consumo da parte da população. A mensagem que passam aos pobres é essa:vocês são todos índios e têm que manter seu modo de vida original, para que NÓS possamos continuar com nosso modo de vida atual e manter nosso padrão de consumo sem colocar em risco o planeta. O índio (isso é, nós aqui) tem que viver como seus ancestrais, caçando e pescando, e deixar o resto do planeta para o usufruto dos países desenvolvidos. Penso vir daí a ideia fixa de muitos europeus e até alguns americanos, de olhar para nós e nos ver como índios. Nesse momento me vem à memória velhas fotos desbotadas da era vitoriana, mostrando os ingleses bem vestidos a contemplar os nativos batucando e dançando pelados.

O índio precisa, sim, livrar-se dessas representações utópicas que lhe têm sido imputadas desde que Rousseau criou o mito do Bom Selvagem, e assumir-se como um ser humano igual a nós. Digo assumir-se, pois ser humano ele sempre foi.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

O Ministro Nazista e o Sinal dos Tempos

Os últimos dias reservaram ao país uma revelação sensacional: temos um secretário da cultura nazista. E não se trata de mero xingamento, mas de uma acusação comprovada: ele parafraseou um trecho inteiro de um discurso feito por Josef Goebbels em um pronunciamento.

"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada"


O episódio foi um prato cheio para os detratores do presidente Bolsonaro, que teve que demitir o secretário. Então, após tantas vezes a pecha de nazista ser lançada contra o governo, surge a prova cabal!

Pessoalmente não acredito que o secretário fosse um leitor de Goebbels. Ele provavelmente copiou aquele trecho de uma fonte secundária, sem saber que o original era do ministro da propaganda de Hitler. Tampouco alguém, mesmo inimigo ferrenho do governo, leva a sério a acusação de ser o presidente Bolsonaro um nazista. Para início de conversa, a postura de alinhamento da política externa aos EUA nada tem a ver com o afã ultranacionalista e belicista do nazismo. A pecha é apenas uma caricatura. No entanto, o dito episódio aconteceu efetivamente, e se não é uma prova do caráter nazista do governo, é com certeza um sinal dos tempos em que vivemos.

Para bem entender de onde surgiu esta afinidade de um membro do governo atual com um ministro de um regime criado 80 anos atrás na Alemanha, precisamos nos transportar para o contexto histórico em que surgiu o nazismo. Não foi o produto de uma mera crise política ou econômica, mas de algo mais profundo. Uma crise moral e existencial, que acomete um povo inteiro quando este sente estar perdendo seus referenciais e seu destino histórico. Quando isto acontece, a sensação de desamparo leva a população a buscar uma tábua de valores supostamente genuínos, bem como aspirar um futuro glorioso e denunciar traidores e bodes expiatórios supostamente responsáveis pelo estado atual de decadência. As consequências, todos puderam ver após Hitler subir ao poder.

Há alguma semelhança entre a Alemanha dos anos 30 e o Brasil atual? Não se trata certamente do mesmo fenômeno no mesmo grau, mas é forçoso reconhecer, alguma analogia há, sim. Eu já apontei aqui em um artigo passado Afinal, em que Ponto a nossa Cultura de Trumbicou, que a crise brasileira tampouco é meramente política, mas deriva fundamentalmente da cultura. O declínio de nosso nível cultural é flagrante, e isso nada tem a ver com a escolaridade, que todas as estatísticas confirmam só haver aumentado nas últimas décadas, como aliás não poderia deixar de ser. A questão é de qualidade, e não de quantidade. Temos a nítida sensação de que já fomos bem melhores.

O declínio cultural de um povo concomitante ao aumento de sua escolaridade não é fenômeno exclusivo do Brasil da época atual. O caso mais emblemático foi o da União Soviética. Se alguém pedir a um brasileiro de cultura mediana que enumere alguns russos que se destacaram nos campos da ciência, das artes ou da literatura, ele dirá talvez uns cinco ou seis nomes, mas todos serão personagens que viveram nos tempos do czar, quando boa parte da população da Rússia era analfabeta. Na época do comunismo, quando o analfabetismo foi zerado, dificilmente alguém poderá apontar algum nome de destaque. Como se o aumento da instrução houvesse, ao mesmo tempo, secado a imaginação criativa da população.

No Brasil, alguém de meia idade pode facilmente recordar-se de tempos quando o povo era mais otimista, e havia o consenso de que o país tinha um futuro promissor. A despeito dos altos índices de analfabetismo, havia escritores, artistas e intelectuais de renome, líderes políticos mais idealistas, as pessoas mesmo pareciam mais inspiradas. A música era excelente. E é claro, havia muito menos crime e o país crescia a altas taxas. Tudo isso acontecia sem que fosse preciso um governo dirigista que moldasse a cultura a um formato "heroico, nacional e imperativo", como desejava o secretário demitido, mas antes decorria naturalmente da comunhão de ideais e valores culturais bem definidos, que a partir de algum momento foram dilapidados, levando o país à situação atual.

Quando o povo sente que perde seus referenciais, agarra-se aos líderes messiânicos que prometem um renascimento. Esse líder não é necessariamente político, mas pode ser um religioso, e de fato, o fundamentalismo religioso tem sido a resposta de muitos países que passam por crise semelhante. Mas no âmbito da cultura, o político e o religioso se confundem à medida em que ambos se propõem a moldar a cultura, ditando quais valores devem ser seguidos. No Brasil, o crescimento da igrejas evangélicas das periferias é uma óbvia reação do povo contra a violência e a dissolução de seus valores morais. Nosso futuro, será, então, algo entre Hitler e o ayatollah Khomeini?

Melhor não deixar a imaginação disparar. Donald Trump e Jair Bolsonaro não são Hitler, nem o bispo Crivella é Khomeini, com certeza. Mas os sinais do tempo estão aí.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A Rebelião dos Barriga Cheia

Quem está de barriga cheia faz rebelião?

Os eventos da História só podem ser corretamente interpretados em seu significado após um conveniente distanciamento no tempo, que permita apreciar os antecedentes e as consequências. Alguns demoram mais a serem entendidos. Isso se aplica às manifestações de junho de 2013, que contaram com a participação de vários ativistas de esquerda, mas que hoje são vistas como um movimento de direita para derrubar o governo petista. Alguns daqueles personagens que ganharam destaque naqueles dias, como a ativista Elisa Quadros, mais conhecida como Sininho, agora tentam se livrar da pecha de traidores ou ingênuos que ajudaram a pavimentar o caminho para a tomada do poder pela direita, como consta neste artigo de autoria de Elisa Quadros.

Quando eclodiram as manifestações de 2013, o pretexto inicial foi reclamar contra o aumento de poucos centavos nas passagens de ônibus, mas logo se viu que o fenômeno era mais amplo. Os manifestantes não tinham um perfil nítido, tampouco suas reivindicações; parecia mais a exibição de um descontentamento difuso, contra "tudo isso que está aí", frase lançada naquela época. O governo petista foi pego totalmente de surpresa. Vinha de uma longa sequência de sucessos desde o primeiro mandato de Lula, que incrementou o padrão de vida de milhões aproveitando o contexto econômico favorável, e a presidente Dilma esbanjava popularidade. De um momento para outro tudo mudou: a popularidade de Dilma despencou, e as manifestações contra o governo aumentaram até o seu melancólico fim.

Como foi possível? Um governo popular pode ser alvo de massivas manifestações contrárias? Quem está com as panelas cheias sai batendo panela?

A verdade é que não foi um fenômeno isolado, a rebelião dos barriga cheia já aconteceu ouras vezes na História da humanidade. O evento mais notável foi o maio de 1968 com suas manifestações estudantis que começaram em Paris contra a proibição do ingresso dos estudantes masculinos no dormitório feminino, e se espalharam apelo mundo afora, também "contra tudo isso que está aí", sem uma agenda política clara além do bordão de que é proibido proibir. Não causaram nenhuma mudança política, mas foram um marco na revolução dos costumes. Mas quem fazia aquelas manifestações? Basicamente estudantes universitários membros da classe média, e não trabalhadores. Eram o produto da onda de prosperidade que se seguiu ao fim da segunda guerra, a qual multiplicou o número de estudantes universitários e permitiu o protagonismo destes.

Do mesmo modo, as jornadas de 2013 no Brasil seguiram-se a um período de prosperidade e crescimento da classe média. Inserem-se, portanto, na fenomenologia da rebelião dos barriga cheia, que deve ser vista como um fenômeno mais psico-social do que puramente político. Sempre que um grande número de indivíduos ascende à classe média e passa a ter consciência, tempo e disposição para abordar assuntos políticos, segue-se uma onda de insatisfação e turbulência muito semelhante à típica rebeldia que acomete os indivíduos quando chegam à adolescência. São pessoas que vem escutando promessas e tendo suas aspirações atendidas, então sempre querem mais e mais. A população brasileira vinha experimentando melhoras em seu padrão de vida desde meados dos anos 2000, em razão da conjuntura econômica favorável, e o número de estudantes universitários aumentou consideravelmente neste período. Quando o governo Dilma começou a ratear em 2013 e surgiram os primeiros sinais da corrupção desenfreada, essa multidão embalada por promessas suspeitou de um engodo, e a reação foi violenta.

Por vezes essa inquietação de uma nova camada da população que ganha súbito protagonismo revolve sentimentos ocultos lá no fundo, que sobem à tona. Por este motivo que essas rebeliões de barriga cheia ganham por vezes um inesperado tom conservador. O exemplo mais notório aconteceu na Tailândia em outubro de 1976, conhecido como o Massacre da Universidade Thammasat. Os antecedentes foram semelhantes. No início dos anos 60 a Tailândia experimentou um surto de prosperidade, que fez crescer enormemente o número de estudantes universitários. Esses estudantes começaram a participar de manifestações contra o regime, que em 1973 provocaram a queda de um governo ditatorial.

Mas as esperanças de que a ascensão dessa nova camada da população inaugurasse um período democrático logo se desfizeram. A classe média ascendente era monarquista e visceralmente anticomunista. O novo governo foi marcado por caos e instabilidade. Quando em outubro de 1976 os estudantes ocuparam a universidade Thammasat para protestar contra o retorno dos ditadores exilados, foram massacrados, e muitos dos que participaram do massacre foram outros estudantes universitários, colegas dos que foram mortos.

Ao menos aqui no Brasil a guinada conservadora foi bem mais benigna. Mas igualmente mostra como são imprevisíveis os acontecimentos quando uma nova camada social ascende ao cenário político. Quem dava importância aos pastores da periferia 20 anos atrás?