quinta-feira, 23 de julho de 2020

Da Distopia à Utopia

Cansados da "bad trip" por que passa o país, que passou da utopia à distopia, conforme mencionei em meu último artigo, alguns observadores estão ansiosos pelo momento em que o país finalmente passará da distopia à utopia. O jornalista Zuenir Ventura escreveu um artigo com este título nos últimos dias.

O veterano Zuenir fez uma comparação ingênua entre o momento atual do Coronavirus e os tempos da peste negra do século XIV, esta igualmente originada da China, que devastou a Europa, mas no dizer do jornalista, "Mesmo esse horror foi capaz de incubar um dos mais ricos movimentos culturais, o Renascimento, que produziu gênios como Leonardo Da Vinci, Michelangelo e Rafael, para só citar os principais. Uma tese tenta explicar o divino mistério desse período: a devastação de Florença pela peste provocou uma tal mudança de mentalidade e de visão que, paradoxalmente, teria levado ao Renascimento"

É fato que a súbita retirada de milhões da população trouxe algumas consequências benéficas para a economia na época, como a maior oferta de terras e de casas vazias. Mas nem usando muita imaginação eu consigo vislumbrar como isso possa ter de algum modo alterado a mentalidade das pessoas e provocado o Renascimento. Penso que este movimento já vinha sendo incubado desde o final da Idade Média, e foi acelerado pela migração de inúmeros letrados do antigo Império Bizantino para a Itália após a queda de Constantinopla, que aconteceu pouco antes. Mas Zuenir tem imaginação suficiente para chegar a esta conclusão. Não me surpreende que ele anseie pela utopia: foi um dos grande utópicos dos anos 60, sobre os quais escreveu o emblemático 1968, O Ano que Não Terminou. E pelas décadas seguintes fez o que pôde para permanecer otimista. Eu particularmente me lembro da entrevista que fez com o traficante Flávio Negão para o livro Cidade Partida, na qual destacou, enternecido, a afirmação do entrevistado de que nunca assaltara um ônibus porque "lá só tem trabalhador". Magnífica demonstração de consciência social da parte do bandido. A meu ver, magnífico "wishful thinking" da parte do autor. Zuenir não quis considerar a hipótese de que Flávio Negão não assaltava ônibus porque não compensava roubar trabalhadores sem vintém.

A última utopia dessa turma foi, de fato, transformar marginais das favelas em heróis populares defensores de suas comunidades. Nem essa cola mais nos dias de hoje. Mas compreende-se: nos anos 60, a utopia estava indelevelmente ligada à ideia de uma revolução a ser feita. Até mesmo os militares chamavam sua tomada do poder de "revolução". Eu particularmente não gosto da ideia, pois além das desgraças que provocam, revoluções muitas vezes mudam o ruim para pior, e na melhor das hipóteses, fazem com violência o que podia ter sido feito pela negociação, sem prisão nem fuzilamento. Mas como estudioso da História, eu sou obrigado a reconhecer que bem ou mal, o mundo em que hoje vivemos é o produto de uma série de revoluções.

De quem não gosta de mudanças bruscas e violências, diz-se que é um sujeito contemplativo. Eu de fato gosto de contemplar paisagens. A psicologia explica porque é reconfortante ficar olhando longamente uma paisagem natural: é que elas oferecem a nossos olhos o contraponto à paisagem urbana das cidades, esta sempre em mutação. Mas os morros, vales e rios, esses podemos ter a tranquila certeza de que permanecerão  para sempre iguais a como eram em nossa juventude, certo? Só que não é bem assim. A paisagem natural muda, também, e não só por ação humana, mas por ação da própria natureza: a chuva, os ventos, a erosão. A cena bucólica que contemplamos foi moldada por um passado de eventos catastróficos como enchentes, terremotos, erupções vulcânicas, encostas que desabam. E do mesmo modo, a imagem plácida dos países ordeiros onde as leis prevalecem, os partidos se alternam no poder e os cidadãos têm garantias, esconde um passado de eventos brutais como guerras, revoluções, migração, colonialismo e escravidão. Mas tanto em um quanto em outro, tudo isso acontece tão lentamente que a ilusão da imobilidade satisfaz as expectativas de quem gosta de ordem.

Quanto a mim, no momento, prefiro ficar olhando a paisagem. Não há muito de alvissareiro para comentar no país atual.