sábado, 16 de março de 2024

Casa Grande & Senzala, ainda atual?

Completa 90 anos o grande clássico das Ciências Sociais brasileiras, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, ainda hoje incitando polêmicas. O livro ganhou uma edição especial comemorativa de aniversário da Global Editora, e foi objeto de um artigo da revista Aventuras na História, comentado pela historiadora Mary Del Priore e pelo economista, cientista político e ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira. Mas minha grande dúvida é: continua atual? Argumenta Bresser-Pereira:

"Casa Grande & Senzala continua atual porque é uma obra histórico-sociológica que busca os fundamentos da sociedade brasileira. Uma sociedade que, como todas as grandes sociedades, muda, mas se conserva a mesma (...) As suas bases econômicas, políticas e raciais continuam as mesmas"

O livro seria, então, uma referência para explicar aquilo que chamamos "brasilidade". O objeto do estudo foi o povo. Afirma Mary Del Priore:

"Muito antes dos historiadores estrangeiros falarem em atores anônimos da História, Giberto Freyre o fez. Nos seus livros, não há heróis. Há gente, povo"

Freyre foi, de fato, um pioneiro da técnica de produzir estudos sociológicos partindo de detalhes da vida privada de pessoas comuns, uma tendência que mais tarde se tornaria moda. Teve também o mérito de contestar a teoria então amplamente aceita da inferioridade das raças mestiças, que seriam um entrave ao desenvolvimento do país. Mas demolido este mito, criou outro: o da mestiçagem como sendo o traço fundador da sociedade brasileira, onde supostamente as raças convivem de forma harmônica. Por este motivo, Freyre é até hoje criticado por haver lançado a falácia da "democracia racial", termo que não aparece em nenhum de seus escritos, mas que é sugerido pela maneira leniente com que abordou a colonização portuguesa e relativizou o papel da escravidão no país. Mas como bem apontou Mary del Priore, o grosso das críticas resulta do desconhecimento da obra, das pesquisas e das inúmeras entrevistas dadas por Freyre ao longo da vida.

Essa polêmica rasa e persistente, que passa ao largo de uma análise mais profunda de sua obra, é produto, a meu ver, daquilo que é seu grande defeito: manter um viés racialista. Não confundir racialismo com racismo. Racialismo é toda abordagem que afirma ser a raça um fator explicador de determinado fenômeno social, o racismo é um recorte do racialismo que procura provar que umas raças são superiores às outras.

Freyre, com certeza, não era um racista. Mas indiscutivelmente era um um racialista: se afirmar que a mestiçagem torna o país inferior é uma falácia sem fundamento científico, o mesmo se diz de afirmar que a mestiçagem é o traço explicador do país. Afinal, o perfil social, cultural e político do Brasil foi originado da mistura de heranças genotípicas das raças que constituíram a nossa população? Ou foi produto de circunstâncias histórias e ambientais, que teriam gerado um perfil análogo mesmo se nossas matrizes raciais viessem de outros grupos étnicos?

Pergunto-me porque Gilberto Freyre, o estudioso, insistiu tanto nessa exaltação da mestiçagem. Ele próprio (ao contrário do que muitos supõem) nunca conheceu pessoalmente aquele mundo de casas grandes e senzalas sobre o qual discorreu com tanta familiaridade, como se o houvesse conhecido. Mas ele era filho de um médico e sempre morou em cidades. Talvez o motivo tenha sido uma fixação pessoal. Um outro livro de Freye, muito menos conhecido, um livro de memórias intitulado De Menino a Homem narra várias experiências sexuais bizarras da juventude, e deixa claro como o autor era fascinado por sexo interracial.

A meu ver, a mestiçagem está mais para mito fundador do que para traço fundador. É algo que gostamos de acreditar - o país é uma mistura de elementos europeus, africanos e índios. Mas é autoevidente que o elemento europeu é arrasadoramente dominante, sem contar que ao nos referirmos a elemento "africano" e "índio", estamos atirando em um mesmo saco dezenas de etnias que pouco tinham em comum umas com as outras, cujas heranças foram perdidas no processo de colonização, restando apenas vestígios periféricos. Já a herança européia é muito mais concisa, originada de seus quatro pilares: o greco-romano e o judaico-cristão. Uma análise honesta do Brasil só pode considerá-lo um membro ordinário do Mundo Ocidental, tal como o restante das ex-colônias dos impérios europeus - pobre, ou subdesenvolvido, se preferir, mas ocidental.

Mas então, Casa Grande e Senzala continua atual?

Sim, desde que o país seja reduzido a casas grandes e senzalas. Onde estão aí os milhões de imigrantes que hoje constituem a classe mais ativa do país em termos econômicos e culturais, e que nunca passaram por casas grandes nem por senzalas? A obra sociológica de Freyre continua importante, mas a discussão em torno da relevância da mestiçagem está datada. Pertence às obsessões racialistas do princípio do século passado. Na verdade, vejo-a como um trauma que deve ser superado - o trauma de ser uma sociedade com passado latifundiário e escravizador, o que em tempos modernos é traduzido pela visão reducionista de um povo bom governado por uma elite abominável.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Lula e o Coronel Teodorico

Recentemente ficamos sabendo de mais uma fala polêmica de Lula, quando ele estava na fábrica da Volkswagen a fim de prestigiar os novos investimentos da empresa no país, e saudou de maneira dúbia uma funcionária que havia ganho um prêmio de viagem a Alemanha em razão de seu bom desempenho.

"Essa menina bonita que está aqui… Eu estava perguntando: O que é que faz essa moça sentada? (...) Aí perguntei: Não, não vai ter música. Então ela vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta de um batuque, de um tambor"

Nada excepcional. Apenas mais uma gafe das muitas que Lula tem colecionado desde seu primeiro governo. Mas com certeza é decepcionante para muitos que idealizam o personagem Lula, e dão de cara com sua rústica pessoa real. O personagem Lula, de fato, tem sido construído desde que o ex-líder sindical surgiu para a fama, representando no imaginário coletivo a figura do trabalhador que deve chegar ao poder, consoante à teoria de Luta de Classes marxista. Seus seguidores veem nele um selo de autenticidade: Lula é o trabalhador, o genuíno brasileiro, vindo das massas para a redenção das massas. É um ícone para ser reverenciado.

Como animal político, não se pode negar que Lula possui virtude, no sentido maquiavélico do termo - a virtù. É inegável sua habilidade política, e impressionante sua capacidade de se reinventar. Mas os que tiveram a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente ressentem-se de seus modos rudes e de sua absoluta indiferença quanto à possibilidade de estar ofendendo seu interlocutor.

E ironicamente, essa tosquice não é um sinal de que o personagem é falso. Antes, é a confirmação de que é genuíno. Lula veio das massas, do mais profundo populacho, e traz em sua pessoa tudo de mau que se encontra nesse buraco: é grosseiro, ignorante, preconceituoso, machista, racista, presunçoso, sem tato, sem refinamento. Dificilmente poderia ser diferente.

Mas o que me chama mais atenção em Lula é a candura com que ele expõe sua fata de honestidade. Não é um afã de esconder suas falcatruas, mas parece simplesmente ignorar que tais falcatruas consstituem violação das leis do país. Lembra o Coronel Teodorico, personagem de Monteiro Lobato, que o concebeu como um roceiro inculto, vizinho de Dona Benta. Um dia oferecem-lhe uma suposta máquina que imprime dinheiro, tradicional conto do vigário, e ele fica entusiasmado. Mas antes explica:

"A máquina faz dinheiro de verdade. Porque fazer dinheiro falso é crime, mas dinheiro de verdade não"

Acho que encontrei a definição ideal pars Lula: o moderno Coronel Teodorico..

Mas quem nos governa é o animal político. Confiemos em Maquiavel.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Imigração e Transição Demográfica

Um assunto muito em voga atualmente é a suposta xenofobia sofrida por imigrantes brasileiros em Portugal. São encontráveis numerosos vídeos a respeito no youtube, sempre seguidos de comentários apaixonados de ambos os lados. O assunto não é novo. Já publiquei anteriormente uma postagem, procurando desmistificar o fenômeno da imigração do terceiro para o primeiro mundo, tema normalmente tratado de forma superficial e sensacionalista, invocando uma "invasão" e destacando a "benevolência" dos países ricos, que assim acabarão por perder sua identidade cultural e étnica no longo prazo. Há já 30 anos foi publicado uma análise hoje um tanto esquecida do francês Jean-Christophe Rufin, intitulada O Império e os Novos Bárbaros, onde é feita uma comparação com a antiga fronteira (limes) do Império Romano, urdida para apartar os bárbaros, mas que acabou transposta por estes mesmos povos.

Sabe-se que a penetração bárbara no Império Romano nem sempre teve a feição de uma campanha militar. Muitas vezes aqueles povos, consderados aliados, eram autorizados a habitar o interior das fronteiras. Analogamente, é preciso frisar que os "bárbaros" da atualidade não estão invadindo à força os países da Europa e da América do Norte - as portas desses países estão sendo abertas, pois há um interesse, ao menos de alguns, em receber esses imigrantes, e não se trata de benevolência. A população daqueles países não deseja mais realizar trabalhos pesados, nem mesmo o de ter filhos, e os imigrantes ali estão para realizar esses trabalhos e substituir aqueles que não nasceram.

A causa-raiz do fenômeno, portanto, não reside em crises passageiras, mas na inexorável transição demográfica: todos os países que atualmente recebem imigrantes estão com uma taxa de natalidade inferior a dois filhos por casal. Como se sabe, a taxa mínima para manter a população estável é de dois filhos - seria como se os pais se repusessem. A diminuição da população jovem causa a escassez de mão-de-obra para as ocupações menos qualificadas, tradicionalmente exercidas pelos mais jovens sem experiência. Os imigrantes os substituem, mas causam mudanças nos padrões étnicos e culturais da população, induzindo a conflitos.

Isso tudo é bem conhecido, embora muitos tapem os olhos para não ver. Mas uma discussão que se seguiu a um vídeo do youtube, referindo-se ao problema em Portugal, chamou-me a atenção para outro fato que também não tem sido apontado: a transição demográfica vale para todos, e a taxa de nascimentos no Brasil ja caiu para abaixo de dois filhos por casal.

E sim, o Brasil continua reebendo imigrantes. Será esse então, também nosso futuro, ser invadido por estrangeiros que entrarão em conflito com os locais? Os imigrantes pobres habitarão guetos e integrarão facções criminosas? Com certeza o fenômeno afetará o mundo inteiro, mas não da mesma maneira. Em determinado momento a transição demográfica também atingirá os países que enviam os imigrantes, então a populaçãa mundial começará a encolher. Isso pode ter um lado bom: o planeta pode acomodar uma população menor com menos pressão sobre o meio-ambiente, e diversas áreas hoje degradadas podem ser recuperadas.

Mas até que se atinja este ponto de inflexão, enormes mudanças ocorrerão na composição étnica de diversos países, com inevitáveis impactos sociais e políticos. E também religiosos. É possível que muitos países hoje cristãos, tornem-se majoritariamente muçulmanos. A taxa de crimes já está crescento aceleradamente em muitos países até pouco atrás vistos como modelos. É difícil prever o que esses países se tornarão no futuro. E o Brasil?

Há semelhanças e diferenças. O Brasil sempre foi um país de imigrantes, bem ou mal acostumado à diversidade - na verdade, foram esses imigrantes que constituíram o país. A imigração enriqueceu o Brasil, mas empobrece a Europa. Aqui, os bolsões de pobreza e crime, notadamente as favelas, nunca foram constituídos de imigrantes; em sua maioria são constituídos de descendentes de escravos. Diferente da Europa, onde os bolsões de pobreza e crime são essencialmente constituídos por estrangeiros e seus descendentes. Aqui, mesmo os imigrantes pobres, haitianos e angolanos, não têm sido encontrados em favelas nem dedicados ao crime.

O Brasil do passado, imenso e despovoado, carente de empreendedores e de profissionais qualificados, necessitava de imigrantes como um balão necessita de ar. Mas será que os imigrantes continuarão a ser absorvidos, ou já estamos nos tornando algo parecido com a Europa? E afinal, por que a Europa, que economicamente necessita tanto dos imigrantes, tem tanta dificudade em absorvê-los socialmente?

A melhor resposta pode ser encontrada em um comentário de Rufin, no já citado O Império e os Novos Bárbaros:

"O império do norte, próspero e em processo de envelhecimento, tende a ter os mesmos objetivos dos cidadãos de meia-idade que o compõe: não se reproduzir, não se disseminar, mas durar, o máximo possível no doce aconchego da paz e da tranquilidade"

Os imigrantes queixam-se da xenofobia, mas xenofobia é caracteristica de indivíduos que não têm mais qualquer interesse por algo senão eles próprios, que nada mais querem mudar, visam apenas seu tranquilo final de vida e não dão nenhuma importância para o que virá depois.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Equador: não se combate o crime como antigamente

Tem tomado conta do noticiário os acontecimentos no Equador, desafiado pelas gangues e havendo declarado um estado de exceção para combatê-las. Nada de novo: já vivemos experiências do tipo por aqui, 2006 em SP e 2010 no RJ. E o caso do Equador apenas reedita o já acontecido com a vizinha Colômbia, em escala muito maior nos tempos de Pablo Escobar.

A realidade é evidente: não é mais possível combater o crime como antigamente. Pois o crime, na época atual, não é mais como era 50 ou 100 anos atrás. As quadrilhas municiaram-se de armamento, pessoal, financiamento e organização, a ponto de serem hoje capazes de desafiar frontalmente o Estado, tal como faziam os grupos guerrilheiros na época da Guerra Fria, com a diferença de que as quadilhas não querem assumir o governo, mas terem curso livre para suas atividades. O Equador recentemente tornou-se uma rota ideal para entorpecentes, em razão de sua localição privilegiada próximo ao mar e aos principais produtores de cocaína, Peru e Colômbia. É fácil imaginar o enorme poder que essas gangues milionárias e bem armadas têm sobre um país pequeno e pobre.

Mas lendo as matérias e os comentários, o que mais tem me chamado a atenção é a insistência em enquadrar os presentes acontecimentos nos paradigmas do passado, como bem exemplificado neste vídeo, onde abundam aqueles argumentos que faziam todo o sentido nos tempos antigos, mas que em nada mais se aplicam no tempo atual, parecendo mais um sinal de desalento, catatonia e recusa em enxergar a realdade. A maioria orgina-se de uma insistência em dar uma leitura de Luta de Classes ao fenômeno da criminalidade, o que é esperado de uma geração formada pelo marxismo escolar.

- "O culpado é o governo" (ou as elites). É o vício de atirar às classes superiores a culpa de todos os males, sendo o homem do povo visto como uma vítima patética, mesmo quando comete crimes. Se o governo tem alguma culpa, é a de não reprimir eficazmente o crime. No estágio atual do poder das quadrilhas, elas não necessitam mais de parceria com o governo. Ainda ecoa no ouvido de todos aquela afirmação de El Chapo, mega traficante mexicano: por que eu desejaria ser presidente, se tenho mais poder que o presidente?

- "O problema é a corrupção". Sem dúvida que a corrupção existiu e ainda existe, mas na atualidade as gangues têm sua rede própria de um extremo a outro, e não mais dependem de subornos pagos a agentes do governo, já que têm poder para confrontar abertamente o governo. Agora elas simplesmente matam quem se lhes opõe.

- "Prender não adianta, é preciso dar educação e emprego". Essa afirmação pressupõe que o indivíduo entra para o crime por falta de alternativa: ele bem desejaria ser um trabalhador, mas não teve escola e não tem emprego. Podia fazer sentido décadas atrás, mas não tem nada a ver com o perfil dos atuais membros das gangues. Eles não estão interessados em escola ou emprego, posto que perceberamque o crime é mais rendoso, com boas perspectivas de impunidade.

- "É só prender o chefe da quadrilha". Mais uma amostra da deformação causada pelo enquadramento marxista ao fenômeno da criminalidade. As quadrilhas não têm ums estrutura política hierárquica, onde a derrubada do chefe-de-estado extingue o regime; as quadrilhas são formadas por vários núcleos que rapidamente se reoganizam em novos grupos quando um líder é eliminado. Por conseguinte, o crime não pode ser combatido pelo topo, mas apenas pela base: esquina a esquina, bandido a bandido. O crime nunca é eliminado totalmente, mas pode ser reduzido a níveis toleráveis.

- "É preciso agir em duas mãos, ação da polícia e obras sociais". Novamente é pressuposto que o indivíduo entra para o crime por falta de apoio do governo. Obras sociais são úteis e necessárias, mas não têm nenhum efeito sobre a criminalidade, e podem até constituir um estímulo. Uma vez que as comunidades estão sob o controle das gangues, a realização de obras sociais ali implica um acordo com as gangues que será do interesse delas, fato que foi exemplarmente mostrado no filme Tropa de Elite.

Portanto, assim como os paradigmas atuais do crime não são mais os do passado, os velhos paradigmas do combate ao crime já não funcionam mais. Se as gangues atuam como um exército capaz de desafiar tropas do governo, então é preciso enfrentá-las como em uma guerra, o que já está sendo feito no Equador, mas a solução definitiva passa por uma reforma completa do código penal, com penas mais longas e isolamento dos criminosos em mega prisões guardadas por número suficiente de agentes, pois prisões superlotadas com centenas de presos para cada agente penitenciário rapidamente caem em poder das quadrilhas e viram quartéis das mesmas. Apenas o encarceramento massivo de longa duração será dissuasão suficiente para os que julgam o crime uma opção preferencial. O exemplo bem sucedido de El Salvador é a evidência, mas paradoxalmente, quase não é citado nos comentários, alguns nem sabem nada a respeito, outros propagam boatos sem fundamento.

A maioria ainda não entendeu que não se combate o crime como antigamente.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

O Fim de um Orgulho Nacional

A derrota por goleada do Fluminense na final do campeonato mundial de clubes poderia ser um assunto irrelevante para se comentar aqui, além de ser de todo esperada, mas ela tem, sim, um significado histórico. Trata-se do emblema de nosso papel desde sempre no comércio mundial, o de ser fornecedor de matérias-primas, agora chamadas mais elegantemente de commodities, para serem processadas pelos países desenvolvidos.

Nenhum jogador de bom nível, nos dias presentes, atua em uma equipe nacional. O Fluminense foi derrotado por uma equipe britânica cujos principais jogadores são estrangeiros. A nacionalidade já não tem significado no futebol de clubes, apenas nas seleções. Mas eu pergunto que paixão há em torcer para uma seleção nacional cujos jogadores atuam todos no exterior, você jamais os viu em um estádio brasileiro, são praticamente estrangeiros. Eu dispenso. E não sinto falta: já fui interessado por futebol a acompanhei partidas com prazer, então já vi o que um dia existiu de melhor, e não preciso de mais.

Mas o fim da relevância do Brasil no mundo do futebol é também o fim de um antigo orgulho nacional. Triste isso? Não acho. Terminou uma antiga empulhação que insistia em ver um significado antropológico e racial profundo no futebol brasileiro, a qual deu origem a mitos cultivados aqui com carinho, mas também a caricaturas até hoje repetidas no exterior sobre os brasileiros. Tenho a impressão de que estamos menos ingênuos agora. Futebol é só futebol. Não é a manifestação do improviso e da irreverência da população mestiça. Não é o patriotismo levado ao esporte. Não é o bálsamo que faz esquecer as dificuldades da vida. Não é a alegria natural de um povo que está sempre festejando, porque só sabe fazer isso. Futebol é só futebol.

Mas a derrota do Fluminense não deixa de ser a derrota de todo um país que falhou em tornar-se mais que mero exportador de profutos primários.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Mais Uma Guerra de Bobagem

O noticiário tem sido dominado por uma novidade ao mesmo tempo inusitada e assustadora: a iminência de uma guerra bem às portas do país, na Guiana, que tem parte do território reinvindicado pela Venezuela.

Conhecendo o que aconteceu em 1982, no episódio conhecido como Guerra das Malvinas, não dá para acreditar que com certeza é tudo uma farsa. Os mesmos componentes estão visíveis: uma antiga disputa territorial esquecida, um regime ditatorial fracassado que deseja catalisar o apoio da população, uma causa que une governo e oposição. Desta forma, nosso esquecido continente é trazido brevemente para os holofotes da relevância internacional.

Mas o que quer que aconteça, não vai incomodar o mundo, se nem mesmo a guerra entre a Rússia e a Ucrânia incomoda tanto. É mais uma prova de como a América Latina saiu da História, e só obtém atenção por meio de espetáculos encenados, dos quais o regieme chavista sempre mostrou-se especialista. Tempo houve em que esta parte do mundo era considerada a região "emergente" por excelência, local de futuras potências mundiais, e importantíssima do ponto de vista estratégico no contexto da Guerra Fria: aqui EUA e URSS disputavam aliados e intervinham por todos os meios.

Hoje isso acabou. Emergentes são os países da Ásia, nova potência é a China, e encerrada a Guerra Fria, Cuba voltou a ser uma ilha pitoresca no Caribe, e a Venezuela pode ser comunista à vontade, que isso em nada perturba a ordem mundial. E pior, pode até fazer guerra, que tampouco importa a alguém, exceto a quem está por perto. Mas se o próprio comunismo da Venezuela não passa de mais uma encenação do regime, o mesmo pode ser dito a respeito desta guerra.

Ou nem tanto. Se acontecer, o Brasil será invadido, sim, não por soldados, mas por refugiados da Guiana, que está logo ali na fronteira. Esses refugiados se amontoarão junto com outros refugiados mais antigos, os venezuelanos em Roraima, e é claro, vão brigar. Uma confusão monumental. E nosso presidente já pagou com a língua: após levar sua mensagem de apoio ao compadre Maduro, antigo aliado de esquerda, agora tem que pisar em ovos para dizer que o compadre não deve começar uma guerra que vai bagunçar nosso quintal.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

O Eterno Enigma da Argentina

Por aqui costumamos acompanhar com interesse cada nova eleição da Argentina, primeiro por uma razão pragmática, posto que a linha do novo governo com certeza nos afetará de alguma maneira. Mas também por conta de um medo primal, originado da óbvia percepção de uma história comum: eu sou você amanhã. Será?

Mas toda eleição na Argentina tem um ar de dejà vu. Aparecem sempre os mesmos atores, com as mesmas propostas, conduzindo sempre aos mesmos resultados desastrosos. No fim das contas, a Argentina é um enigma nunca solucionado: por que um país que foi tão promissor no início do século 20 acabou desta maneira? Muitos têm procurado identificar em que ponto começou a derrocada argentina, como neste vídeo, que como tantos outros, só dá respostas incompletas. Uma conclusão, porém, é óbvia: só existe estabilidade econômica onde há estabilidade política.

Antes de mergulhar no ponto onde se liquidou a estabilidade política argentina, é preciso desconstruir um mito: de que a Argentina era um país desenvolvido na virada do século 19 para o século 20, e seria mesmo um dos mais ricos do mundo. Isso é verdade sob o ponto de vista das estatísticas, no caso, o PIB Per Capita. Mas conforme é sabido pelos matemáticos, as estatísticas costumam apresentar distorções quando calculadas sobre uma amostra de dados muito pequena. Uma dessas distorções foi aquela que apresentava o Canadá como tendo um PIB Per Capita duas vezes maior que o da Inglaterra na mesma época. Isso é verdade? Os canadenses eram mesmo duas vezes mais ricos que os habitantes das Ilhas Britânicas?

Não acho que a verdade fosse bem essa. O Canadá tinha uma população muito diminuta, o que puxava para cima o cálculo da renda per capita. Coisa semelhante ocorria com a Argentina, que conheceu uma grande valorização de seus produtos de exportação ao final do século 19, tendo também uma população muito pequena. Mas se os números eram os de um país desenvolvido, o panorama social não era. A maior parte da população era pobre e vivia no campo, as principais atividades econômicas se concentravam na exportação de bens primários, típicos de um país subdesenvolvido. Outrossim, os bons resultados na balança comercial faziam o país prosperar, induzindo ao crescimento da classe média urbana, que mais e mais se tornava ator político. O partido União Cívica Radical foi o primeiro partido político latino-americano a representar a classe média urbana, em uma época em que todos os demais países, inclusive o Brasil, eram governados pela elite rural.

Mas foi exatamente no ponto em que esta nova classe média urbana preparava-se para assumir as rédeas da nova nação que a cadeia se quebrou, em 1930, com a crise econômica mundial e o golpe militar que pôs fim à estabilidade política da república argentina que durava desde o século 19. Ao invés da moderna democracia ocidental sustentada por partidos, assumiram o poder os militares, onde permaneceram pelos próximos 50 anos. De golpe em golpe, dali saíram o peronismo e o anti-peronismo, as desastrosas intervenções do Estado na economia bem como as fúteis tentativas de abrir a economia, sem que jamais houvesse continuidade na política econômica, apenas guinadas radicais que inevitavelmente destruíam o que a gestão anterior conseguira construir. Fechado o jogo político pelas ditaduras, os contendores passaram a pegar em armas: da ala esquerda do peronismo saiu o grupo guerrilheiro conhecido como Montoneros, e da ala direita, chefiada pelo superministro Lopes Rega, saiu o grupo terrorista AAA, Aliança Anticomunista Argentina. A estes juntou-se outro grupo de esquerda, o ERP, Exército Revolucionário do Povo, guevarista.

Não há dúvida de que foram os militares que arruinaram a Argentina. Mas a tragédia não estará completamente explicada se não for acrescentado este traço mórbido: a obsessão de ressuscitar cadáveres. Refiro-me ao quadro econômico do primeiro governo peronista logo após o fim da Segunda Guerra, quando a Argentina dispunha de um grande superavit em sua balança comercial por haver suprido os países beligerantes, o qual proporcionou uma breve era de fartos gastos sociais com a finalidade de atrair o apoio da classe trabalhadora ao regime, tudo feito sob a hábil encenação de que as benesses eram concedidas pela ação da primeira-dama Eva Perón, a Evita, transformada em líder espiritual da nação pela propaganda oficial. Quando o dinheiro acabou, coincidentemente Evita morreu, e logo depois Perón era derrubado. Então, para os trabalhadores, ficou a ilusão de que os maus tempos pelos quais passavam seriam produto da ausência de sua líder espiritual e de seu pai dos pobres.

Foi quando que teve início o pendor de ressuscitar aquele modelo econômico já totalmente esgotado, posto que era resultado de uma conjuntura que existira somente na época. A obsessão, verdadeiramente doentia, foi consubstanciada no esforço absurdo para ressuscitar a própria Evita, primeiro preservando seu cadáver, e depois tentando fabricar uma nova Evita na pessoa da terceira esposa de Perón, Isabel Martínez, a Isabelita, esta sim sem qualquer capacitação para a política, cujo desastroso governo precipitou o país ao fundo de seu poço.

Nos dias de hoje, há muito a cortina já baixou para os militares, mas os políticos e os eleitores continuam obstinados em reviver aquele momento do fim dos anos 40, convictos de que a fórmula da prosperidade consiste de gastar o que não têm. Os presidentes "neoliberais" tentam consertar a economia quebrada, reencenando em um ciclo sem fim os governos que sucederam o peronismo deposto nos anos 50, produzindo austeridade e o consequente desejo da população de mais uma dose de peronismo. Parece ser mais um caso para psicanalistas do que para economistas.