domingo, 29 de janeiro de 2023

O Perfil do Terceiro Governo de Lula

Renascido das cinzar, o terceiro período de Lula como presidente começa a se desenhar. A conjuntura é bastante diferente daquela dos dois períodos entre 2003 e 2010, que por sua vez mostraram um Lula bem diferente daquele dos palanques nos anos 80 e 90. Lula não cessa de se reinventar.

Uma discussão recente aqui perguntava se o Lula atual é realmente de esquerda. Eu diria que sim, mas está mais sintonizado com a esquerda globalista pós-guerra fria, enquanto os fundadores do PT eram oriundos da esquerda revolucionária dos anos 60 e 70 (e alguns até hoje não se livraram de todo dessa influência). Por isso Lula não enfatiza a luta de classes, mas prioriza as políticas "afirmativas" de inclusão de populações e grupos marginalizados. Isso traz benefícios, sem dúvida, mas o lado ruim é que essas políticas são frequentemente inspiradas e financiadas por entidades globalistas (são mesmo a marca de um mundo globalizado), entre as quais se incluem numerosas ONG´s com financiadores obscuros, e há o risco de obedecerem a objetivos que não são os locais, mas os globais (isso acontece sobretudo com as políticas voltadas para os índios). Não sei até que ponto Lula vai se deixar manipular por esses globalistas, ou vai impingir a sua marca pessoal.

O lado fraco de Lula, a meu ver, é a política econômica: eu o classifico como um getulista tardio. Em seus dois primeiros mandatos ele tentou reativar o nacional-estatismo getulista que marcou vários governos dos anos trinta até os anos oitenta, quando entrou em colapso, sendo sua maior patologia o inchaço do estado. No início dos anos 2000, Lula contou com uma conjuntura internacional favorável, que de fato permitiu que ele reavivasse artificialmente aquelas políticas estatizantes e nacionalistas, mas quando o tempo bom acabou, a Nova Matriz Econômica estourou nas mãos de Dilma, e foi aberto o caminho para a queda do PT.

Cumpre notar que seu antecessor entrou com um discurso totalmente oposto, dizendo-se liberal e anti-estatista, mas na prática pouco realizou nesse sentido. O que não me espanta, pois Bolsonaro é um grande admirador do regime de 1964, que foi justamente o que levou ao auge o nacional-estatismo, criando miríades de empresas cujos nomes terminavam em "bras", até quebrar o estado e levar o país ao caos inflacionário.

OK, Lula não é mais o barbudo revolucionário dos anos 80 que elogiava Fidel Castro e queria deixar de pagar a dívida externa. Mas não se tornou direitista; no máximo, um social-democrata. Compreendo o temor que muitos têm com essas guinadas de Lula no espectro ideológico, são frequentes os exemplos de esquerdistas que migram para a direita mais radical. Carlos Lacerda foi um dos mais notáveis, mas não o único; há numerosos outros como o falecido Olavo de Carvalho, e não por acaso: trata-se da comprovação do parentesco entre a direita fascista e a esquerda socialista.

O senso comum considera uma o antônimo da outra, mas examinando a História, vê-se que ambas derivam do mesmo tronco: as tensões sociais e nacionais do tempo da revolução industrial. O verdadeiro antônimo do socialismo não é fascismo, mas o liberalismo a que chamam "democracia burguesa". A revolução industrial acirrou o antagonismo entre patrões e empregados, assim como o antagonismo entre as potências, que disputavam mercados e fontes de matérias-primas em um mundo que não era globalizado, mas retalhado por impérios. Desse impasse surgiram doutrinas que pregavam a superação dos sistemas político e econômico que emergiram da revolução francesa (taxada de "revolução burguesa"). Os socialistas pregavam a extinção da classe patronal mediante uma revolução mundial que unisse todos os trabalhadores, ao passo que os fascistas pregavam a união em torno do Estado, a quem caberia mediar os conflitos entre patrões e trabalhadores, e lançar-se à guerra para obter os impérios que atenderiam às demandas por mercado e matéria-prima. Como se vê, então, migrar de um para o outro necessita apenas a troca de alguns paradigmas: do internacionalismo operário para o nacionalismo fascista, da extinção da classe patronal para o controle desta pelo Estado. De resto, eram ambos regimes de  partido único e organizações de massas, bandeiras e divisas altissonantes.

Outra suspeita que tem sido com frequência lançada contra o PT é de que seja um partido anti-religião, mais ainda nesse momento em que as igrejas evangélicas pendem para a direita bolsonarista. Não, o PT não é um partido comunista ateísta, embora desde o início tenha dado um viés político a suas crenças religiosas, sob influencia da Teologia da Libertação. Mas ao guinar para a esquerda pós-guerra fria, adotou bandeiras globalistas que iam em rota de colisão contra a mentalidade conservadora e religiosa da maioria da população, como a defesa do aborto e do homossexualismo. Sob este aspecto, ironicamente, os direitistas estavam mais sintonizados com os setores populares. Foi de fato um grande tiro no pé, que contribuiu para o desprestígio e queda do PT. Lula até agora não deu sinais claros se continuará nessa linha em seu terceiro mandato. Se uns acham que convém não discutir política e religião, em minha opinião convém ainda menos misturá-las.

E o resto é pagar para ver.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Os Bolsonaristas e a "white trash" americana

Os eventos recentes mostram que os bolsonaristas têm uma base social surpreendentemente numerosa. De onde veio tanta gente, e por que têm tanta raiva? É nesse ponto que emerge um paralelo entre os bolsonaristas e a chamada "white trash" norte-americana, que constituíram os apoiadores mais devotos do ex-presidente Donald Trump, que não coincidentemente, manifesta uma grande afinidade com o ex-presidente Jair Bolsonaro, e tal como ele, foi derrotada por bem pequena margem em sua tentativa de reeleição, e tal como sucede aqui, manifestantes enraivecidos invadiram a sede do legislativo. Tanta coincidência não teria uma motivação?

A "white trash" norte-americana é como se chama a classe trabalhadora branca que se sente mais incomodada com a presença de negros e imigrantes concorrendo por seus empregos, e sobretudo pelos fundos do Estado, e por este motivo pende fortemente à direita - contrariando o senso comum ainda muito em voga por aqui, de que a classe trabalhadora é essencialmente esquerdista. Outros ingredientes nesse meio social, como a intrusão de pessoas "diferentes", podem efetivamente mudar o rumo desse grupo para a direita, fenômeno já antigo nos EUA, mas até o momento não observado aqui. Afirmou um comentarista:

De qualquer forma, tais fatos alegados - falsos ou reais - como sabemos, desagrada uma parte da população americana, a saber, parcelas do povo branco, norte-americano.
Adicione-se que, parte dos afro americanos, sobrevivem com a "pensão social" destinada pelo Estado; o que causa nos brancos americanos, parece que principalmente nos "white trash", um ressentimento muito grande; tendo em vista que eles consideram que o benefício estatal destinado aos afro americanos mais pobres, é oriundo dos seus rendimentos, anteriormente convertidos em impostos.

A questão levantada é: tanta coincidência entre eventos ocorridos nos EUA e aqui são evidência de que já existe no Brasil uma numerosa classe trabalhadora ressentida com os benefícios que um governo de esquerda concede aos mais pobres?

A analogia deles com a white trash norte-americana, a meu ver, é limitada. Uma característica marcante da classe trabalhadora americana é a sua consciência de serem pagadores de impostos, portanto sustentadores do erário público - daí que não se agradem com a ideia de que seus impostos são usados para sustentar aqueles que (supostamente) não pagam impostos.

Essa arraigada crença de que quem paga impostos deve ter o controle do Estado vem dos primórdios da nação norte-americana, cuja revolução foi motivada por cidadãos que se julgavam espoliados por pagarem impostos que eram apropriados pelo administrador britânico ao invés de aplicados ali. Esse pensamento nunca ocorreu com a mesma ênfase no Brasil, onde o Estado tem sido tradicionalmente visto como um patrono dono de fundos supostamente infinitos, a quem cabe prover a população (visão muito endossada por líderes populistas), e não como mero síndico de uma receita de impostos finita.

A noção de que "cidadão" é sinônimo de "aquele que paga impostos" foi herdada do colonizador britânico pelos norte-americanos. Remonta, de fato, ao tempo da Magna Carta, que limitou o poder do rei de instituir impostos a sua vontade, e foi reforçada pelas revoluções que instituíram o parlamento como agente do poder. Inicialmente, apenas os pagadores de impostos podiam votar e ser votados, o que fazia pleno sentido no contexto político e social da época, posto que as funções dos primeiros parlamentos se reduziam à gestão de impostos, e por conseguinte, a representatividade política era da alçada somente daqueles que pagavam os impostos, e de ninguém mais. Só gradualmente a atuação dos parlamentos foi estendida à legislação em todas as áreas, e as prerrogativas de cidadão foram estendidas a toda a população nacional.

Se tal educação política permitiu aos norte-americanos um entendimento perfeito quanto aos direitos e deveres de cidadãos e governantes, por outro lado induziu uma intolerância contra todos aqueles que, em sua visão, trapaceiam nesse arranjo, e supostamente querem ter direitos sem arcar com os respectivos deveres. Não sei até que ponto os bolsonaristas brasileiros incorporaram esse discurso, mas a impressão que tenho é de que sua identificação com os apoiadores norte-americanos de Trump origina-se apenas de um paralelismo entre a posição social de uns e outros, e não de um compartilhamento de ideologia. Sob esta óptica, os bolsonaristas continuam sendo um produto de uma fenomenologia social tipicamente brasileira, e não de discípulos ou imitadores. Mas se nos EUA essa história já é antiga, aqui é nova. Só podemos esperar para ver.