terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Os Bolsonaristas e a "white trash" americana

Os eventos recentes mostram que os bolsonaristas têm uma base social surpreendentemente numerosa. De onde veio tanta gente, e por que têm tanta raiva? É nesse ponto que emerge um paralelo entre os bolsonaristas e a chamada "white trash" norte-americana, que constituíram os apoiadores mais devotos do ex-presidente Donald Trump, que não coincidentemente, manifesta uma grande afinidade com o ex-presidente Jair Bolsonaro, e tal como ele, foi derrotada por bem pequena margem em sua tentativa de reeleição, e tal como sucede aqui, manifestantes enraivecidos invadiram a sede do legislativo. Tanta coincidência não teria uma motivação?

A "white trash" norte-americana é como se chama a classe trabalhadora branca que se sente mais incomodada com a presença de negros e imigrantes concorrendo por seus empregos, e sobretudo pelos fundos do Estado, e por este motivo pende fortemente à direita - contrariando o senso comum ainda muito em voga por aqui, de que a classe trabalhadora é essencialmente esquerdista. Outros ingredientes nesse meio social, como a intrusão de pessoas "diferentes", podem efetivamente mudar o rumo desse grupo para a direita, fenômeno já antigo nos EUA, mas até o momento não observado aqui. Afirmou um comentarista:

De qualquer forma, tais fatos alegados - falsos ou reais - como sabemos, desagrada uma parte da população americana, a saber, parcelas do povo branco, norte-americano.
Adicione-se que, parte dos afro americanos, sobrevivem com a "pensão social" destinada pelo Estado; o que causa nos brancos americanos, parece que principalmente nos "white trash", um ressentimento muito grande; tendo em vista que eles consideram que o benefício estatal destinado aos afro americanos mais pobres, é oriundo dos seus rendimentos, anteriormente convertidos em impostos.

A questão levantada é: tanta coincidência entre eventos ocorridos nos EUA e aqui são evidência de que já existe no Brasil uma numerosa classe trabalhadora ressentida com os benefícios que um governo de esquerda concede aos mais pobres?

A analogia deles com a white trash norte-americana, a meu ver, é limitada. Uma característica marcante da classe trabalhadora americana é a sua consciência de serem pagadores de impostos, portanto sustentadores do erário público - daí que não se agradem com a ideia de que seus impostos são usados para sustentar aqueles que (supostamente) não pagam impostos.

Essa arraigada crença de que quem paga impostos deve ter o controle do Estado vem dos primórdios da nação norte-americana, cuja revolução foi motivada por cidadãos que se julgavam espoliados por pagarem impostos que eram apropriados pelo administrador britânico ao invés de aplicados ali. Esse pensamento nunca ocorreu com a mesma ênfase no Brasil, onde o Estado tem sido tradicionalmente visto como um patrono dono de fundos supostamente infinitos, a quem cabe prover a população (visão muito endossada por líderes populistas), e não como mero síndico de uma receita de impostos finita.

A noção de que "cidadão" é sinônimo de "aquele que paga impostos" foi herdada do colonizador britânico pelos norte-americanos. Remonta, de fato, ao tempo da Magna Carta, que limitou o poder do rei de instituir impostos a sua vontade, e foi reforçada pelas revoluções que instituíram o parlamento como agente do poder. Inicialmente, apenas os pagadores de impostos podiam votar e ser votados, o que fazia pleno sentido no contexto político e social da época, posto que as funções dos primeiros parlamentos se reduziam à gestão de impostos, e por conseguinte, a representatividade política era da alçada somente daqueles que pagavam os impostos, e de ninguém mais. Só gradualmente a atuação dos parlamentos foi estendida à legislação em todas as áreas, e as prerrogativas de cidadão foram estendidas a toda a população nacional.

Se tal educação política permitiu aos norte-americanos um entendimento perfeito quanto aos direitos e deveres de cidadãos e governantes, por outro lado induziu uma intolerância contra todos aqueles que, em sua visão, trapaceiam nesse arranjo, e supostamente querem ter direitos sem arcar com os respectivos deveres. Não sei até que ponto os bolsonaristas brasileiros incorporaram esse discurso, mas a impressão que tenho é de que sua identificação com os apoiadores norte-americanos de Trump origina-se apenas de um paralelismo entre a posição social de uns e outros, e não de um compartilhamento de ideologia. Sob esta óptica, os bolsonaristas continuam sendo um produto de uma fenomenologia social tipicamente brasileira, e não de discípulos ou imitadores. Mas se nos EUA essa história já é antiga, aqui é nova. Só podemos esperar para ver.

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