segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

O Fim de um Orgulho Nacional

A derrota por goleada do Fluminense na final do campeonato mundial de clubes poderia ser um assunto irrelevante para se comentar aqui, além de ser de todo esperada, mas ela tem, sim, um significado histórico. Trata-se do emblema de nosso papel desde sempre no comércio mundial, o de ser fornecedor de matérias-primas, agora chamadas mais elegantemente de commodities, para serem processadas pelos países desenvolvidos.

Nenhum jogador de bom nível, nos dias presentes, atua em uma equipe nacional. O Fluminense foi derrotado por uma equipe britânica cujos principais jogadores são estrangeiros. A nacionalidade já não tem significado no futebol de clubes, apenas nas seleções. Mas eu pergunto que paixão há em torcer para uma seleção nacional cujos jogadores atuam todos no exterior, você jamais os viu em um estádio brasileiro, são praticamente estrangeiros. Eu dispenso. E não sinto falta: já fui interessado por futebol a acompanhei partidas com prazer, então já vi o que um dia existiu de melhor, e não preciso de mais.

Mas o fim da relevância do Brasil no mundo do futebol é também o fim de um antigo orgulho nacional. Triste isso? Não acho. Terminou uma antiga empulhação que insistia em ver um significado antropológico e racial profundo no futebol brasileiro, a qual deu origem a mitos cultivados aqui com carinho, mas também a caricaturas até hoje repetidas no exterior sobre os brasileiros. Tenho a impressão de que estamos menos ingênuos agora. Futebol é só futebol. Não é a manifestação do improviso e da irreverência da população mestiça. Não é o patriotismo levado ao esporte. Não é o bálsamo que faz esquecer as dificuldades da vida. Não é a alegria natural de um povo que está sempre festejando, porque só sabe fazer isso. Futebol é só futebol.

Mas a derrota do Fluminense não deixa de ser a derrota de todo um país que falhou em tornar-se mais que mero exportador de profutos primários.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Mais Uma Guerra de Bobagem

O noticiário tem sido dominado por uma novidade ao mesmo tempo inusitada e assustadora: a iminência de uma guerra bem às portas do país, na Guiana, que tem parte do território reinvindicado pela Venezuela.

Conhecendo o que aconteceu em 1982, no episódio conhecido como Guerra das Malvinas, não dá para acreditar que com certeza é tudo uma farsa. Os mesmos componentes estão visíveis: uma antiga disputa territorial esquecida, um regime ditatorial fracassado que deseja catalisar o apoio da população, uma causa que une governo e oposição. Desta forma, nosso esquecido continente é trazido brevemente para os holofotes da relevância internacional.

Mas o que quer que aconteça, não vai incomodar o mundo, se nem mesmo a guerra entre a Rússia e a Ucrânia incomoda tanto. É mais uma prova de como a América Latina saiu da História, e só obtém atenção por meio de espetáculos encenados, dos quais o regieme chavista sempre mostrou-se especialista. Tempo houve em que esta parte do mundo era considerada a região "emergente" por excelência, local de futuras potências mundiais, e importantíssima do ponto de vista estratégico no contexto da Guerra Fria: aqui EUA e URSS disputavam aliados e intervinham por todos os meios.

Hoje isso acabou. Emergentes são os países da Ásia, nova potência é a China, e encerrada a Guerra Fria, Cuba voltou a ser uma ilha pitoresca no Caribe, e a Venezuela pode ser comunista à vontade, que isso em nada perturba a ordem mundial. E pior, pode até fazer guerra, que tampouco importa a alguém, exceto a quem está por perto. Mas se o próprio comunismo da Venezuela não passa de mais uma encenação do regime, o mesmo pode ser dito a respeito desta guerra.

Ou nem tanto. Se acontecer, o Brasil será invadido, sim, não por soldados, mas por refugiados da Guiana, que está logo ali na fronteira. Esses refugiados se amontoarão junto com outros refugiados mais antigos, os venezuelanos em Roraima, e é claro, vão brigar. Uma confusão monumental. E nosso presidente já pagou com a língua: após levar sua mensagem de apoio ao compadre Maduro, antigo aliado de esquerda, agora tem que pisar em ovos para dizer que o compadre não deve começar uma guerra que vai bagunçar nosso quintal.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

O Eterno Enigma da Argentina

Por aqui costumamos acompanhar com interesse cada nova eleição da Argentina, primeiro por uma razão pragmática, posto que a linha do novo governo com certeza nos afetará de alguma maneira. Mas também por conta de um medo primal, originado da óbvia percepção de uma história comum: eu sou você amanhã. Será?

Mas toda eleição na Argentina tem um ar de dejà vu. Aparecem sempre os mesmos atores, com as mesmas propostas, conduzindo sempre aos mesmos resultados desastrosos. No fim das contas, a Argentina é um enigma nunca solucionado: por que um país que foi tão promissor no início do século 20 acabou desta maneira? Muitos têm procurado identificar em que ponto começou a derrocada argentina, como neste vídeo, que como tantos outros, só dá respostas incompletas. Uma conclusão, porém, é óbvia: só existe estabilidade econômica onde há estabilidade política.

Antes de mergulhar no ponto onde se liquidou a estabilidade política argentina, é preciso desconstruir um mito: de que a Argentina era um país desenvolvido na virada do século 19 para o século 20, e seria mesmo um dos mais ricos do mundo. Isso é verdade sob o ponto de vista das estatísticas, no caso, o PIB Per Capita. Mas conforme é sabido pelos matemáticos, as estatísticas costumam apresentar distorções quando calculadas sobre uma amostra de dados muito pequena. Uma dessas distorções foi aquela que apresentava o Canadá como tendo um PIB Per Capita duas vezes maior que o da Inglaterra na mesma época. Isso é verdade? Os canadenses eram mesmo duas vezes mais ricos que os habitantes das Ilhas Britânicas?

Não acho que a verdade fosse bem essa. O Canadá tinha uma população muito diminuta, o que puxava para cima o cálculo da renda per capita. Coisa semelhante ocorria com a Argentina, que conheceu uma grande valorização de seus produtos de exportação ao final do século 19, tendo também uma população muito pequena. Mas se os números eram os de um país desenvolvido, o panorama social não era. A maior parte da população era pobre e vivia no campo, as principais atividades econômicas se concentravam na exportação de bens primários, típicos de um país subdesenvolvido. Outrossim, os bons resultados na balança comercial faziam o país prosperar, induzindo ao crescimento da classe média urbana, que mais e mais se tornava ator político. O partido União Cívica Radical foi o primeiro partido político latino-americano a representar a classe média urbana, em uma época em que todos os demais países, inclusive o Brasil, eram governados pela elite rural.

Mas foi exatamente no ponto em que esta nova classe média urbana preparava-se para assumir as rédeas da nova nação que a cadeia se quebrou, em 1930, com a crise econômica mundial e o golpe militar que pôs fim à estabilidade política da república argentina que durava desde o século 19. Ao invés da moderna democracia ocidental sustentada por partidos, assumiram o poder os militares, onde permaneceram pelos próximos 50 anos. De golpe em golpe, dali saíram o peronismo e o anti-peronismo, as desastrosas intervenções do Estado na economia bem como as fúteis tentativas de abrir a economia, sem que jamais houvesse continuidade na política econômica, apenas guinadas radicais que inevitavelmente destruíam o que a gestão anterior conseguira construir. Fechado o jogo político pelas ditaduras, os contendores passaram a pegar em armas: da ala esquerda do peronismo saiu o grupo guerrilheiro conhecido como Montoneros, e da ala direita, chefiada pelo superministro Lopes Rega, saiu o grupo terrorista AAA, Aliança Anticomunista Argentina. A estes juntou-se outro grupo de esquerda, o ERP, Exército Revolucionário do Povo, guevarista.

Não há dúvida de que foram os militares que arruinaram a Argentina. Mas a tragédia não estará completamente explicada se não for acrescentado este traço mórbido: a obsessão de ressuscitar cadáveres. Refiro-me ao quadro econômico do primeiro governo peronista logo após o fim da Segunda Guerra, quando a Argentina dispunha de um grande superavit em sua balança comercial por haver suprido os países beligerantes, o qual proporcionou uma breve era de fartos gastos sociais com a finalidade de atrair o apoio da classe trabalhadora ao regime, tudo feito sob a hábil encenação de que as benesses eram concedidas pela ação da primeira-dama Eva Perón, a Evita, transformada em líder espiritual da nação pela propaganda oficial. Quando o dinheiro acabou, coincidentemente Evita morreu, e logo depois Perón era derrubado. Então, para os trabalhadores, ficou a ilusão de que os maus tempos pelos quais passavam seriam produto da ausência de sua líder espiritual e de seu pai dos pobres.

Foi quando que teve início o pendor de ressuscitar aquele modelo econômico já totalmente esgotado, posto que era resultado de uma conjuntura que existira somente na época. A obsessão, verdadeiramente doentia, foi consubstanciada no esforço absurdo para ressuscitar a própria Evita, primeiro preservando seu cadáver, e depois tentando fabricar uma nova Evita na pessoa da terceira esposa de Perón, Isabel Martínez, a Isabelita, esta sim sem qualquer capacitação para a política, cujo desastroso governo precipitou o país ao fundo de seu poço.

Nos dias de hoje, há muito a cortina já baixou para os militares, mas os políticos e os eleitores continuam obstinados em reviver aquele momento do fim dos anos 40, convictos de que a fórmula da prosperidade consiste de gastar o que não têm. Os presidentes "neoliberais" tentam consertar a economia quebrada, reencenando em um ciclo sem fim os governos que sucederam o peronismo deposto nos anos 50, produzindo austeridade e o consequente desejo da população de mais uma dose de peronismo. Parece ser mais um caso para psicanalistas do que para economistas.

domingo, 8 de outubro de 2023

Os Computadores Brasileiros

Descobri um vídeo interessante, feito por um pesquisador norte-americano, contando - veja só - a história dos computadores brasileiros. História de que eu também participei, como profissional da área, tendo chegado a pegar o final da Reserva de Mercado, mas desconhecia os primórdios. O autor descortina passo a passo a história do projeto brasileiro de ter uma tecnologia própria em computadores, e procura desvendar porque falhou.

Fiquei sabendo dos tempos heróicos, lá desde o início dos anos 60, quando os primeiros computadores nacionais começaram a ser montados dento de universidades e institutos de pesquisa - o Zezinho e o Patinho Feio - tudo sob a batuta do governo. Até aí tudo bem, faz lógica que uma nova tecnologia seja gestada nos ambientes acadêmicos antes de passar ao ambiente corporativo, após tornar-se comercialmente viável. Também faz lógica que inicialmente se procure estudar e licenciar produtos estrangeiros.

O esforço dos técnicos nacionais foi louvável. Mas chama a atenção como tudo era desde o início rigidamente controlado por agências governamentais, e nada parecia capaz de se mover sem o impulso do governo. Impondo uma reserva de mercado, o governo realmente conseguiu que surgissem numerosas empresas nacionais fabricantes de computadores e periféricos - a Cobra foi a principal delas, mas aqueles nomes até hoje me soam familiares, pois me defrontei com muitas delas no início de minha profissão. Entretanto, essas empresas nacionais não conseguiram acompanhar a evolução dos fabricantes estrangeiros, nem em qualidade, nem em preço. O autor chama a atenção para a falta de um grande fabricante brasileiro de semicondutores, e até aponta uma fábrica surgida no início dos anos 70, como tudo o mais sob os auspícios do governo, mas que não conseguiu uma boa produção e acabou fechando no final da década. O alto custo dos semicondutores importados foi a principal causa do alto preço dos computadores produzidos aqui - o autor até aponta que alguns fabricantes nacionais conseguiram exportá-los, o que eu não sabia; nenhum, porém, foi competitivo no exterior.

Ao final, o autor sintetiza com poucas palavras porque falhou a política brasileira de informática:

"Portanto, os fabricantes de computadores do Brasil ficaram em casa, onde era seguro. Os legisladores os protegeram enquanto puderam. Mas uma vez que essas proteções foram suspensas, essas empresas tiveram pouca chance de sobrevivência. E essa é a tragédia da indústria de informática brasileira"

Por aqui se vê que as causas do malogro não se limitaram às condições econômicas difíceis da época, mas a uma falha fundamental do modelo, por sua vez ligada a uma falha fundamental de nossa visão da economia: tudo ficou em casa. Os fabricantes nacionais produziam para empresas estatais, que estavam obrigadas a só adquirir produto nacional, e não para o mercado interno, que preferia computadores contrabandeados, muito menos para a exportação. Um colega meu, que trabalhava em uma dessas empresas, certa vez comentou sobre uma conversa que tivera com seu chefe. Ele questionou como podiam vender computadores por um preço inferior ao custo dos componente necessários para montá-lo. A resposta do chefe: "Fácil. Nós vendemos, mas não entregamos".

Pode parecer estranho, mas era assim que funcionava o Desenvolvimentismo Nacional-Estatista, modelo econômico que vigorou no Brasil a partir da Era Vargas e esgotou-se na crise dos anos 80 - a reserva de mercado da informática foi um dos últimos gritos deste modelo. Segundo acreditava-se, a iniciativa privada era inerme, e apenas o Estado podia ser indutor do desenvolvimento, o que obviamente demandava rígidos controles burocráticos e benesses distribuídas a escolhidos. O resultado foram empresas de todo dependentes dos incentivos governamentais, orbitando em torno do Estado. Para o empresário nacional, a fórmula do sucesso não era a competência nos negócios, nem a excelência técnica, tampouco o preço competitivo, mas sim o bom relacionamento com os ocupantes do poder. Tudo em casa.

Enquanto isso, os fabricantes dos países emergentes da Ásia se dedicaram desde o início à exportação, alinhando os preços domésticos aos internacionais, e hoje dominam a tecnologia dos celulares que usamos para assistir vídeos como este que descobri.

sábado, 30 de setembro de 2023

O Brasil e a Coréia do Sul

Nas últimas décadas, tem sido recorrente referir-se à Coréia do Sul como o contraexemplo do Brasil. Aquele que deu certo. A Coréia do Sul já foi bem mais pobre que o Brasil, hoje é bem mais rica. O Brasil estagnou a partir dos anos 80, a Coréia do Sul prosseguiu. O modelo econômico do Brasil malogrou, o da Coréia deu certo. O Brasil é violento, eles têm baixa criminalidade. Eles são o país do presente, nós continuamos sendo o país do futuro - que nunca chega.

É muito citada a diferença cultural entre o Brasil e a Coréia, cujo povo preza a educação e a disciplina, como uma das causas deste sucesso. Concordo em grande parte. Mas tenho simpatias pela Coréia do Sul, onde já estive duas vezes a trabalho, e apesar dos coreanos terem tudo para serem nossos antípodas (começando pela posição geográfica com a diferença de 12 horas de fuso) eu desde sempre percebi sutis semelhanças destes com os brasileiros. A impressão foi reforçada em minhas pesquisas no youtube, onde encontrei muitos vídeos feitos por casais de brasileiros(as) com coreanos(as). E foi também no youtube que descobri um triste episódio que me fez pensar.

Refiro-me ao naufrágio da balsa Sewol, ocorrido em 16 de abril de 2014. Lembro-me de haver lido notícias no dia, quando estava em meu escritório, mas só fui me inteirar dos detalhes sórdidos após assistir o vídeo. Havia 476 pessoas a bordo entre 443 passageiros e 33 tripulantes, dos quais 325 eram estudantes de ensino médio em uma excursão escolar à ilha de Jeju. Após uma manobra incorreta ao passar por um canal, a carga solta no porão deslocou-se, fazendo a embarcação inclinar-se, e a água rapidamente começou a entrar. Em suas cabines, os estudantes escutaram pelos autofalantes a ordem repetida de vestir os coletes salva-vidas e permanecer quietos onde estivessem, aguardando o resgate.

Vão ficar para sempre em minha memória os vídeos enviados pelos celulares dos estudantes a suas famílias, mostrando a garotada tranquila e fazendo gracejos como se aquilo não passasse de uma boa aventura, todos estritamente obedientes às instruções recebidas e confiantes de que logo seriam resgatados. Mas não sabiam que a voz que escutavam era uma gravação, e àquela altura o comandante já havia abandonado o barco juntamente com a maior parte da tripulação. Continuaram imóveis mesmo quando era evidente que o navio estava afundando à medida em que inclinava-se cada vez mais. O resultado foi que dos 476 a bordo, apenas 170 sobreviveram, pois com o navio tombado de lado tornou-se difícil sair de seu interior.

A investigação posterior revelou que o abandono do comandante não foi a única irregularidade. Também a guarda costeira custou a agir, esperando ordens que não chegavam. Verificou-se que o barco, comprado do Japão, havia passado por reformas que aumentavam perigosamente sua capacidade de transporte e acrescentavam mais andares, e essas reformas foram aprovadas mediante o pagamento de propinas. No dia do acidente, o barco estava levando uma quantidade de carga superior ao máximo permitido, incluindo automóveis presos com cordas ao invés de correntes conforme o regulamento, e foi essa a causa do desequilíbrio fatal.

Para os brasileiros, o episódio lembra dolorosamente duas tragédias nacionais bem conhecidas: o naufrágio do Bateau Mouche e o incêndio da Boite Kiss. Os mesmos ingredientes lá e aqui: incúria, ganância, corrupção, desejo de lucro suplantando a necessidade de segurança. Mas se é assim, então, a final de contas, a Coréia do Sul não é tão diferente do Brasil. Também sofre dessas "coisas de Terceiro Mundo". É difícil imaginar uma coisa assim acontecendo no vizinho Japão.

O detalhe mais mórbido é que, para as vítimas, a causa de sua morte liga-se justamente àqueles atributos que são apresentados como a causa do sucesso econômico do país: investimento na educação e rígida disciplina, traço cultural da população. Os 325 estudantes estavam sendo premiados com um passeio à ilha turística. Destes, apenas 75 sobreviveram, ou seja, míseros 23%. Já dos demais 118 passageiros, 95 sobreviveram, mais de 80%. Isso porque os jovens são os mais doutrinados nos valores de confiança e obediência à autoridade. Quem desobedeceu às instruções, sobreviveu.

Então, talvez não sejamos tão diferentes assim dos coreanos, e ser bagunçado e indisciplinado talvez não seja tão ruim. Mesmo porque, last but not least, onde há rígidas hierarquias, é provável que aqueles que estão no topo da hierarquia acreditem que podem fazer tudo, inclusive abandonar seu posto e deixar centenas de adolescentes morrerem à míngua...

domingo, 20 de agosto de 2023

País Refém do Narcotráfico

O assassinato de Fernando Villavicencio, candidato à presidência do Equador, chamou a atenção para este pequeno país da América do Sul. Sabemos, pelo caso da Colômbia, que quando os narcotraficantes começam a matar candidatos a presidente, eles já dispõem de um exorbitante poder dentro do país.

E no entanto, a escalada dos narcotraficantes no Equador já vinha sendo anunciada um ano antes por este artigo do Globo. Embora não seja um produtor, os portos profundos tornam o país um importante ponto de trânsito para drogas rumo aos consumidores nos EUA e Europa. Sua economia dolarizada também o torna um local estratégico para lavagem de dinheiro. E conforme apontado no artigo, a reação ao crescimento da violência tem sido libertar os presos para aliviar a superlotação nas cadeis controladas pelas quadrilhas. Soa familiar?

Por aqui, não falta quem acredite que nosso crime nada deve aos países "reféns do narcotráfico", como o México, e agora, o Equador. Mas é preciso dizer: não, não é a mesma coisa, e quem pensa o contrário nunca esteve em um daqueles países. Nossos narcotraficantes se assemelham aos de nossos vizinhos por sua violência e pelo uso de armas pesadas, mas diferenciam-se destes pelas áreas onde atuam e exercem sua influência. O Brasil não produz drogas, exceto pequena quantidade de maconha de má qualidade (os usuários preferem a paraguaia). Como rota para os principais mercados consumidores, é secundário se comparado aos países do norte do subcontinente. Mas por outro lado, o Brasil é o segundo maior consumidor de drogas do mundo, atrás apenas dos EUA.

Por conseguinte, o perfil do crime relacionado ao narcotráfico, no Brasil, não se assemelha ao de um país como o México, mas ao de um país consumidor, como os EUA; ou seja, está concentrado nos pontos de distribuição e venda. Esses pontos, no Brasil, são as favelas, abandonadas pela polícia e tornadas "zona liberada" desde os anos 80, começando com Brizola. É nas favelas que se encontram as bocas-de-fumo, os estoques e os arsenais dos traficantes, que recrutam ali sua mão-de-obra e constroem suas fortalezas. O domínio que estes exercem sobre as favelas é notório, mas por outro lado, não é concebível no Brasil haverem cidades inteiras e vastas áreas rurais dominadas por quadrilhas de narcotraficantes, como ocorre nos países produtores e roteadores, os quais fornecem mão-de-obra muito mais numerosa, diversificada e geograficamente distribuída, correspondente às numerosas fases de plantio, confecção e transporte das drogas, tudo evidentemente financiado por um influxo muito superior de dólares vindo dos principais mercados consumidores, enquanto os traficantes brasileiros são pagos em reais pelos compradores brasileiros.

Então, no Brasil, os narcotraficantes não dominam o país. Dominam as favelas. Já é uma desgraça, mas ao menos não é comparável a um país onde as quadrilhas possuem conexões com várias setores urbanos e rurais. Tampouco existem aqui estabelecimentos comerciais localizados em áreas "boas" das cidades pagando quantias a máfias, como acontece no sul da Itália; aqui, essa realidade ocorre somente nas favelas disputadas por narcotraficantes e milícias.

Mas temos em comum com o Equador a leniência da legislação criminal, que procura aliviar a superlotação das cadeias soltando os criminosos ao invés de construir mais cadeias, e tolera que elas sejam controladas pelas quadrilhas. Então, podemos não ser reféns do narcotráfico, menos mal. Mas somos reféns de todos os outros tipos de crime.

domingo, 6 de agosto de 2023

'Bukelismo', o futuro?

Chama a atenção o fenômeno Nayib Bukele, atual presidente de El Salvador, que conseguiu o prodígio de pôr fim ao reinado das gangues que aterrorizavam o país com sua política de encarceramento massivo em mega prisões que mandou construir. Como é sabido que o crime descontrolado tem sido o principal tormento da maioria dos países latino-americanos desde pelo menos duas gerações, não espanta que o chamado 'bukelismo' tenda a se espalhar pelos vizinhos, conforme apontado por este artigo da Folha de São Paulo.

Mas a 'bukelização' é o futuro, ou uma moda passageira? Uma resposta definitiva ao desafio da luta contra o crime, ou a nova cara do populismo de direita, na opinião das autoras do artigo?

Antes de prosseguir a análise, é preciso lembrar que Nayib Bukele não é apenas o idealizador de uma nova estratégia de combate às gangues, mas também de um novo estilo de presidente, "descolado", a ponto de ter recebido o duvidoso título de "ditador mais legal do mundo" - algo bem inusitado para quem está acostumado à feição típica do extremista de direita. Certo ou errado, Bukele desfruta de um índice de 90% de aprovação da parte da população, que finalmente vê os índices de criminalidade desabarem. Mas há quem desaprove a arbitrariedade com que milhares estão sendo encarcerados, e suspeita-se de que muitos são inocentes. É o que dizem.

Sem ter mais conhecimento do que se passa em El Salvador, passo direto para a pergunta que interessa: o Brasil também deve se 'bukelizar'?

É fato que o fenômeno da criminalidade, na época atual, não é mais a mesma coisa que havia no tempo em que nosso sistema judiciário foi erigido. Hoje é algo infinitamente mais organizado, armado e disseminado; os métodos antigos não funcionam mais, as prisões não mais neutralizam os criminosos, mas tornam-se quartéis-generais e criadouros de criminosos. Não obstante, um persistente bloqueio mental tem impedido os comentaristas de enxergar o óbvio desta situação, e continua-se a repetir receitas ultrapassadas, como penas alternativas e melhorias na educação. Esse argumento podia fazer sentido 80 anos atrás, quando boa parte dos jovens não tinham acesso à escola, cresciam analfabetos e viravam ladrões de galinha. Hoje a grande maioria dos delinquentes já passou por escolas, mas abandonou-a ao constatar que a carreira criminosa era mais promissora, ou pior ainda, não abandonou-a porque a têm como um espaço dominado, onde podem vender drogas e cooptar seus colegas. Contribui também para este bloqueio mental um cacoete ideológico, a leitura de Luta de Classes do fenômeno da criminalidade, bastante presente no imaginário dos militantes de esquerda, conforme pode ser visto em produções culturais como o filme Bacurau.

E a direita nacional? Aparentemente apóia a solução de Bukele. O ex-presidente Jair Bolsonaro já se manifestou favorável ao encarceramento massivo, e sobre a superlotação dos presídios, comentou: "prisão é que nem coração de mãe, sempre cabe mais um". Sim, caber, cabe. Mas faltou alguém dizer-lhe que prisões superlotadas invariavelmente terminam controladas pelas facções criminosas. Esse comentário mostra que Bolsonaro, na verdade, não é um bukelista, ou se pretende sê-lo, não o entende. O sucesso dos métodos de Bukele em El Salvador está condicionado à construção dos mega presídios, onde os detentos são efetivamente controlados pelos guardas e não se transformam em quartéis-generais das gangues, aqui chamadas de facções. Bolsonaro mostrou que ainda está imbuído da mentalidade do tempo dos militares, do Esquadrão da Morte e do "bandido bom é bandido morto", premissa simplória que ignora a psicologia do delinquente: o bandido em geral não teme a morte, pois a vê desde cedo, sabe que não vai viver muito, e por este motivo procura aproveitar a vida com destemor. O que o bandido de fato teme é a cana dura: ao invés de morrer, ter uma longa vida em um lugar onde não há grana, nem bebida, nem droga, nem mulher, nem nada daquilo que o motivou a enveredar pelo crime. O temor é tanto, que diante da perspectiva de um regime carcerário mais rigoroso, chegam a ter reações suicidas, como aquela ocorrida em 2006, que resultou em centenas de mortes e execuções.

Portanto, vejo isso como uma premissa sine qua non: o aumento da população carcerária é a única solução. Mais bandidos na prisão, menos bandidos nas ruas, simples assim. Apenas a prisão inibe o crime, não só por neutralizar o autor do crime enquanto este permanece encarcerado, mas também, e mais importante, por seu efeito de dissuasão: aquele garoto que estava pensando em entrar para uma quadrilha, ao ver o colega metido na cadeia e lá permanecendo longo tempo, vai pensar duas vezes. Evidentemente, não falta quem seja contra. Ouve-se muito: "o que inibe o crime não é o rigor da pena, mas a certeza da punição". Óbvio sofisma: tanto o rigor da pena quanto a certeza da punição inibem o crime, mas um não exclui o outro. Contudo, se há certeza da punição, mas a pena é branda, o bandido pode simplesmente colocar os pesos na balança, e concluir que cometer o crime compensa no fim das contas.

Desde que nosso Código Penal foi promulgado nos anos quarenta, todas as reformas feitas foram no sentido de torná-lo mais brando, e não mais rigoroso - multiplicaram-se as fórmulas de relaxamento do regime fechado, os benefícios a réus primários e menores de idade, as "saidinhas". Ao mesmo tempo em que esses abrandamentos se sucediam, o crime só fazia aumentar. Conhecendo as condições deploráveis de nossas prisões, não é difícil concluir que a brandura de nossa legislação não tem nenhum propósito humanista, mas é apenas um subterfúgio para aliviar a superlotação das cadeias: construir mais prisão custa dinheiro, abrir as portas da prisão e jogar os bandidos na rua sai de graça. É evidente que a reforma de nosso Código Penal, aumentando as penas, só pode ser feita se forem construídos mega presídios, tal como os de El Salvador. Mas qual político está disposto a subir ao palanque e prometer construir mais cadeia, ao invés de mais postos de saúde? Talvez os níveis da criminalidade aqui precisem subir a um ponto comparável ao de El Salvador.

No entanto, estou convicto de que em algum momento isso terá que acontecer. O risco, sem dúvida, é algum mandatário populista aproveitar-se para incrementar seu poder pessoal, interferindo na autonomia dos demais poderes da república, tal como fez Nayib Bukele. Mas El Salvador tem uma longa tradição caudilhista. Para haver sucesso, a reforma, aqui, terá que ser feita em moldes estritamente técnicos. Um bukelismo sem um Bukele, é o que eu espero.


terça-feira, 18 de julho de 2023

Imigração e Ruína

Os recentes distúrbios na França lançam luz sobre um problema que vem se arrastando há décadas: a imigração descontrolada e os problemas que acarreta.

Problemas? Entendo um problema como uma anomalia que pode (deve) ser reparada, tipo um cano vazando embaixo da pia. Mas no contexto atual, o contínuo deslocamento de imigrantes dos países do Terceiro Mundo em direção ao Primeiro Mundo não é um problema, mas uma característica de nossa época. É claro que a interpretação pode ser outra: uns dizem que aqueles países estão sendo invadidos por hordas de estrangeiros, outros se queixam de que as comunidades de estrangeiros são alvo de injusta discriminação da parte das autoridades locais. Não há invasão nenhuma: a vinda de imigrantes pobres dispostos a executar trabalhos rejeitados pelos habitantes tem sido incentivada há décadas. E se a polícia age com violência, também é verdade que são os imigrantes e seus descendentes que cometem a maior parte dos crimes.

O fato é que os franceses, suecos, alemães e todo o mais não gostam de imigrantes, mas gostam ainda menos de executar os trabalhos pesados que são feitos pelos imigrantes. Aí o problema não tem solução, e pos isso mesmo não é um problema. O que não tem remédio...

Essa constatação dá um certo desalento. Pois em nosso imaginário, imigração é uma coisa boa, a epopéia de indivíduos corajosos e laboriosos, que abandonam suas terras de origem para construir novos países no além-mar. Os EUA até colocaram aquela inscrição na Estátua da Liberdade para homenageá-los. Entre nós, persiste a memória afetiva de nossos avós italianos, portugueses, japoneses e alemães.

O mesmo não ocorre para com os novos imigrantes na Europa e nos EUA. Eles não vem construir novos países, aqueles países já estão construídos e já têm sua cultura estabelecida. A fenomenologia da imigração moderna diz respeito à substituição de mão-de-obra: aqueles imigrantes têm a função de assumir trabalhos que a força de trabalho local já não pode suprir. Sem ter a incumbência criar o arcabouço da cultura e da identidade nacional daqueles países antigos, não existe uma integração social; as comunidades estrangeiras permanecem como uma excrescência, ao mesmo tempo em que sua integração econômica em determinados nichos do mercado de trabalho é forte a ponto de não ser mais possível dispensá-los. Esse quadro tende a reproduzir-se geração após geração, perpetuando o mútuo estranhamento e ressentimento. A agitação, a violência e o crime são consequências inevitáveis.

Observa-se aí um claro sintoma depressivo: ao contrário do que sucedeu no Brasil, nos EUA e em demais países "novos", o fluxo de imigrantes parece ilógico: o direcionamento não deveria ser do velho para o novo, do que já foi feito para o que ainda está em gestação? Não está ocorrendo, portanto, uma construção, mas um declínio. Os países antigos estão abandonando seus valores; sua população não quer mais executar trabalhos pesados nem criar filhos, prefere o repouso e o lazer. Envelhecida e sem renovação, tende a encolher enquanto aumenta o percentual de estrangeiros. De forma irônica. lembra o que ocorria no Brasil da época da escravidão, quando os brancos não queriam trabalhar e tudo era deixado para os cativos. Impressionada com a quantidade de crianças negras ociosas pelas ruas após a abolição, uma educadora alemã que veio ser preceptora de filhos da elite paulista escreveu em seu diário:

"Não percebem eles que assim estão preparando a pior das gerações, que irá depois conviver com seus próprios filhos?"

Mais de cem anos depis, podemos dizer a mesma frase aos descendentes da preceptora.


terça-feira, 20 de junho de 2023

O Fim de Bolsonaro

Estamos assistindo agora ao esgotamento do fenômeno iniciado cinco anos atrás, o Fenômeno Bolsonaro, com o ocaso do personagem que há poucos meses esteve a escassos votos de se tornar pela segunda vez presidente do país. Não causa espanto, exceto talvez para o próprio e para seus apoiadores mais próximos, que todo o apoio que supostamete tinha para aventuras golpistas se revelasse pura ilusão. Ignoro que rumo tomará a direita nacional daqui por diante, pois ao que tudo indica, o bolsonarismo morrerá com seu criador, posto que todo movimento político calcado no personalismo se acaba quando se extingue o carisma do personagem.

De fato, desde o início Bolsonaro pareceu uma figura fora de seu tempo, como um holograma projetado de outra época - o extinto regime de 1964, do qual Bolsonaro não participou por não ter idade, mas que sempre idealizou, assim como o fizeram seus apoiadores. O fenômeno em si pode ser considerado o último eco de uma expectativa erigida há mais de 100 anos atrás, desde pouco antes da proclamação da república: a crença de que os militares seriam a reserva moral da nação, cabendo-lhes assumir a função de Poder Moderador sucedendo ao imperador.

Durante todo o período republicano, essa idealização impregnou o imaginário nacional. Formalmente desligados das lides políticas, os militares seriam, portanto, guiados apenas por devoção à pátria. Enquanto exercessem o Poder Moderador, o país estaria livre de impasses sangrentos e guerra civis. Os militares sempre apareceriam para salvar o país de uma situação de perigo, impressão recorrente em diversos momentos da história republicana, o último deles ao final dos governos petistas, quando apareceu Bolsonaro para assumir o papel salvacionista.

Mas se os militares eram tão bons assim, por que não assumiam o poder de uma vez, sucedendo aos políticos profissionais e seus interesses pessoais escusos, ao invés de permanecerem somente no papel de mediadores?

Conforme é sabido, isso aconteceu em 1964. Neste período a mística do poder militar chegou ao auge, mas também foi o início de seu declínio. De fato, o regime começou com um pico - o "milagre", com enorme sucesso econômico, mas que também foi o pico da repressão, e a face feia dos militares não pôde mais ser ocultada. Seguiu-se a crise econômica dos anos 80, a "década perdida", com o desprestígio e o fim do regime, então o encanto foi quebrado. As últimas ações dos militares foram atentados terroristas perpetrados por membros dos órgãos de repressão, na tentativa de recriar um clima de instabilidade que justificasse a manutenção do regime de ditadura. Ficou evidente que o lendário "poder moderador" já se encontrava irremediavelmente corrompido, e seus últimos atores tardios foram em geral oficiais de baixa patente, avessos à disciplina, cujo modo de ação pouco diferia daquele de terroristas, com marcada tendência ao envolvimento com o crime comum, repetindo o que desde muito acontece com a baixa oficialidade das polícias militares.

Foi exatamente neste grupo que Bolsonaro surgiu, ainda capitão, durante o governo Sarney. Avesso à disciplina, chegou a declarar em uma entrevista seu projeto de explodir bombas para chamar a atenção do Ministro do Exército às demandas dos colegas de farda. Abandonando ele próprio a farda e entrando para a política, ficou por longo tempo um outsider, até que a conjunção de fatores políticos criou o fenômeno que o levou à presidência. Foi provado que a mística dos militares "salvadores do país contra os políticos irresponsáveis" ainda estava viva, embora em estado latente, mas seu ressurgimento encarnou com precisão a velha narrativa do drama que se repete como farsa. Bolsonaro teve sua época, ela passou, e cabe-lhe o julgamento da História. Bom ou mau, para o país foi indiscutivelmente um progresso: a crença do "poder moderador" exercido pelos militares é mais um dente-de-leite que cai da boca.


terça-feira, 30 de maio de 2023

Lula e o Compadre Maduro

O assunto do dia é a visita do presidente Nicolas Maduro ao Brasil, severamente criticada por quem vê aí uma aproximação de Lula com ditaduras. Algumas previsões catastrofistas podem ser feitas. Quanto a mim, não é surpreendente. Para Lula, é fácil afirmar que a Venezuela tem sido "vítima de uma narrativa", e que sua monumental crise econômica é consequência das sanções impostas. Não acredito que essa reaproximação do país com a Venezuela trará outras consequências nefastas além de mais dinheiro perdido em empréstimos que não serão pagos.

Mas o caso é que o episódio evidencia um traço do atual presidente, que tem sido bem marcante: Lula é um discípulo dileto do compadrio, atributo que foi bem dissecado em estudo sociológico por Sérgio Buarque de Holanda ao definir o conceito do Homem Cordial. Em outras palavras, Lula se reaproxima de Maduro, nem tanto por motivações políticas e econômicas, mas sobretudo porque Maduro é um compadre. A lógica é essa: o sujeito pode ter matado a mãe, estuprado a avó e explodido o quarteirão inteiro, mas se é compadre, então está colocado na categoria dos "boa gente".

Lula pode ser politicamente habilidoso, mas nunca conseguiu se libertar do vício do compadrio, que o vincula àquilo que o povo brasileiro tem de mais bruto e primitivo. Isso ficou bem claro quando ele concedeu asilo ao foragido Cesare Batisti, afirmando em alto e bom tom que o considerava um inocente perseguido pelo governo italiano, fato que causou grande embaraço ao país. E no fim, Batisti confessou-se culpado e está na prisão na Itália.

Mas o que importa é que Maduro é um compadre, e aos compadres se empresta dinheiro mesmo que não paguem. Com essa transfusão, Lula pode dar uma sobrevida ao regime chavista, sabidamente um desastre completo que tem inundado de refugiados os países vizinhos, inclusive o Brasil. Isso é triste, sobretudo quando lembramos que a Venezuela é dona da maior reserva de petróleo do planeta, e costumava ter um padrão de vida superior ao do Brasil. Agora é também foco de banditismo organizado, comandado pela temida gangue conhecida como Trem de Aragua, gestada nas superlotadas prisões venezuelanas. A explosão da população carcerária venezuelana é fenômeno não bem explicado, pois começou ainda nos "anos bons" dos chavismo, quando foram implementados numerosos programas de distribuição de renda que, em teoria, deveriam aliviar as tensões sociais. No momento atual, não há dúvida de que o colapso do país, empurrando tantos milhões para a informalidade e o ilícito, constitui o caldo de cultura ideal para o florescimento do crime organizado.

Como pode ter havido tanto declínio? Nada de se espantar: a incompetência política é característica de povos onde a autoridade política é calcada no modelo familiar, com uma relação paternal entre o chefe de estado e a população, conduzindo ao caudilhismo, à corrupção e ao compadrio. Em outras palavras, é o traço de uma sociedade habitada pelo Homem Cordial, onde as relações sociais ainda não conseguiram evoluir de moldes personalistas para modelos abstratos, como a cidadania e a institucionalidade. O que prejudica nosso entendimento foi que Buarque de Holanda vendeu o Homem Cordial como se fosse uma invenção brasileira, até mesmo definida pateticamente como a "contribuição brasileira para a humanidade". Isso fez com que nos afeiçoássemos ao conceito, e o considerássemos "coisa nossa", quando na realidade está presente em maior ou menor grau em todos os povos do Terceiro Mundo.

Não se pode negar que Lula é bastante cordial. Mas continuo na esperança de que isso não nos cause mais do que alguns calotes na dívida.

sábado, 6 de maio de 2023

O Linha Direta e a "bandidolatria nacional"

Vi com satisfação o retorno do programa Linha Direta à grade da TV Globo, de onde estava ausente desde 2007. Até então, o programa veiculava casos policiais em aberto, e exibia o retrato dos criminosos foragidos. A despeito de sua enorme popularidade, foi descontinuado, e chegou-se a comentar que a Globo estaria recebendo ameaças dos criminosos denunciados. Outros afirmaram que o programa estava sendo criticado por supostamente glamurizar o crime. Sinceramente, não notei essa glamurização nos episódios que assisti, mas o fato do programa haver proporcionado a prisão de mais de 400 criminosos graças a suas denúncias, a meu ver dispensa qualquer outro argumento e justifica de pleno a sua manutenção.

O episódio para a reestréia foi bem escolhido: tratou-se do Caso Eloá, extremamente emblemático. Como se sabe, refere-se a um sequestro com cárcere privado ocorrido em 2008, quando um homem inconformado com o fim de uma relação, Lindemberg Alves Fernandes, invadiu o apartamento da ex-namorada, Eloá Cristina Pimentel, e ali manteve ela e uma colega como reféns por nada menos que cinco dias, terminando por matá-la e ferindo a colega antes de ser preso quando a polícia invadiu o apartamento.

Não foi a primeira vez que uma coisa assim aconteceu, nem seria a última, mas o episódio notabilizou-se pela maneira absurda com que foi tratado pela polícia e pela midia, chegando a tornar-se um grotesco reality show, com seu ponto máximo na reentrega da refém colega de Eloá dois dias após haver sido libertada.

Nos cinco dias que durou o show, o sequestrador foi tratado com todo o beneplácido pela polícia, que atendeu a todas as suas exigências, inclusive enviando mantimentos para que pudesse manter o cárcere privado indefinidamente. Quando ele afirmou que só se entregaria se Nayara, a colega de Eloá, estivesse presente, a polícia foi buscá-la com a finalidade de "ajudar nas negociações", e o sequestrador só teve o trabalho de puxá-la pelo braço para trazê-la de volta ao apartamento. Quando por fim a polícia decidiu invadir, os preparativos foram tão descuidados que o sequestrador teve tempo de armar uma barricada junto à porta, o que atrasou a entrada dos policiais por tempo suficiente para que ele atirasse nas vítimas.

Por que tanta incúria? Por que a polícia não agiu antes? Naqueles cinco dias, o sequetrador apareceu inímeras vezes à janela, podendo ser alvo de um atirador de elite. E com certeza ele precisava de tanto em tanto dormir, comer e até ir ao banheiro. Em suma, não faltaram ocasiões oportunas para a policia invadir. Mas nada aconteceu. Um boato não confirmado dá conta de que o governador Alkmin havia proibido terminantemente a polícia de matar o sequestrador, pois era época de eleição e não queria se prejudicar. A meu ver, a melhor explicação pode ser extraída deste comentário do coronel Eduardo Félix, então comandante do Batalhão de Choque da Polícia Militar:

"Nós poderíamos ter matado, ter dado o tiro, mas é um garoto de 22 anos de idade, sem antecedentes criminais e com uma crise amorosa. Se nós tivéssemos atingido o Lindemberg, fatalmente os senhores [jornalistas] estariam questionando o GATE sobre por que não negociaram mais"

 Uma leitura apressada passa a impressão de que o comentarista estaria imbuído de sólidos escrúpulos quanto aos direitos humanos do delinquente. Mas realmente preocupa-se com direitos humanos alguém que denomina "crise amorosa" o terror que o criminoso infligiu às vítimas?

O que se vê, de fato, é uma sólida empatia para com o criminoso, cujas atitudes são contempladas com compreensão, concomitante a um enorme desprezo pelo sofrimento da vítima. Não é a opinião isolada do coronel Eduardo Félix: coisa expressa com tanta convicção está por certo impressa na mente da população desde muitas gerações atrás, e trata-se de uma espécie de doença mental coletiva que eu denomino bandidolatria. Que ninguém ache estranho: não é este o pais onde o cangaceiro Lampião é considerado herói popular? A bandidolatria é basicamente a empatia para com o delinquente, cujos atos são justificados por alguma lógica. Sua causa mais primal é um sentimento de falta de autoridade moral para condenar o criminoso, que assim pode fazer sua própria justiça. Sua consequência última é a alta criminalidade consoante à extrema brandura da legislação penal. Difícil é condenar o delinquente. Facílimo é libertá-lo por meio de incontáveis benefícios para se relaxar a prisão.

O Linha Direta promete abordar o caso Letícia Tanzi, ainda mais emblemático da fraqueza da legislação penal brasileira. Não tenho estômago para falar dele aqui no momento. Quem quiser, procure no Google.

domingo, 26 de março de 2023

Essa Guerra Já Deu

Quem viveu tanto quanto eu, com certeza conheceu o tempo quando todos temiam o fim do mundo com a Terceira Guerra Mundial, a guerra nuclear, que não aconteceu. No mundo pós-guerra fria, uma coisa que não se sabe bem definir é a guerra moderna. Essa entre a Rússia e a Ucrânia é o primeiro grande conflito surgido após a temida guerra nuclear EUA X URSS sair de pauta. E já faz um ano de reme-reme. Exato um ano atrás eu escrevi, Não Se Fazem Mais Guerras Como Antigamente, e agora só tenho a dizer que essa guerra já deu. Outro dia alguém perguntou porque não acontecem guerras na América Latina. Eu respondo: seria uma perda de tempo. Tenho certeza que seria mais um reme-reme produzindo apenas mortos, feridos e dinheiro torrado ao invés de resultados.

Mas afinal, quando foi que as guerras deixaram de ser um acontecimento notável, capaz de redirecionar os rumos da História?

A Época Áurea das guerras foi a segunda onda de colonialismo que se seguiu à revolução industrial, no século 19. Era um tempo quando as potências tinham que assegurar o suprimento de matérias-primas e os mercados para seus produtos, em um mundo que não era globalizado, mas retalhado por impérios. Quem chegou tarde à corrida por colônias só tinha duas alternativas: aliar-se a uma das potências, em posição subalterna, ou conquistar seu próprio império colonial pela guerra. As tensões daí resultantes desembocariam no século 20 com a primeira e a segunda guerras mundiais. Nesse contexto surgiram os regimes fascistas, e a necessidade daquele domínio assegurador de recursos naturais e humanos foi consubstanciada pelos nazistas na expressão "espaço vital".

Mas ao fim da segunda guerra, um novo equilíbrio de forças surgiu. Desapareceram as potências de antes, substituídas por duas superpotências: os EUA e a antiga URSS. A luta entre esses dois novos atores não se fazia mais por busca de colônias ou territórios, mas no sentido de impor aos demais seus respectivos sistemas político e econômico, o capitalismo e o comunismo. O enfrentamento armado direto entre as duas superpotências foi descartado, pois significaria uma guerra nuclear que destruiria a ambas, e então, quando havia conflito armado, esse acontecia nos países satélites das duas superpotências, opondo exércitos ou grupos guerrilheiros apoiados por seu respectivo patrono ideológico.

Nesse novo contexto político e militar, tornou-se desnecessário recorrer à força armada para obter recursos naturais ou compradores, que podiam ser obtidos em um mercado global cuja existência era do interesse de ambas as superpotências. Os antigos impérios coloniais tornaram-se anacrônicos, e foram liquidados. Foi o fenômeno conhecido por descolonização, que fez nascer dezenas de novos países. As potências desfizeram-se de seus domínios de bom grado, pois muitos deles eram mantidos a alto custo e sem visível retorno. Nenhuma das antigas metrópoles empobreceu após livrarem-se de suas colônias, o que não causa surpresa, pois como foi afirmado, a manutenção das colônias no passado obedecia a um imperativo estratégico, e não econômico.

O quadro de permanente tensão e nenhum enfrentamento direto entre as duas superpotências ganhou o nome apropriado de guerra fria. Até que a própria guerra fria deixou de existir, com o fim da ex-URSS, e desde então não se sabe direito para o que é que serve a guerra.

Talvez para distrair populações e manter ditadores no poder, como previu o autor de 1984.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Brasil: Outra História Americana

Já escrevi aqui análises comparando a evolução dos EUA com a do Brasil, apontando as analogias do ponto de partida - o mesmo roteiro de descoberta, incorporação a um império europeu, povoamento, supressão de povos nativos, independência, escravidão e imigração - tentando explicar como ambos chegaram a um destino tão diferente. Sobre isso, não tenho muito mais a acrescentar. Mas recentemente fiquei surpreso ao ver que o mesmo questionamento foi feito por uma pesquisadora norte-americana, a historiadora Brodwyn Fischer, da Universidade de Chicago, que há mais de dez anos criou um curso batizado com um nome provocativo: Brazil, Another American History.

É citado o tipo de colonização - a portuguesa, implantada no Brasil, e a britânica nos EUA, cada uma imprimindo a suas colônias as características que suas metrópoles já possuíam. Até aqui nenhuma novidade. Mas a autora lança um conceito bem oportuno, que pode explicar porque há tanta dificuldade para visualizar sem isenção o que Brasil e EUA têm de semelhante e diferente. Ela denominou-o hiperrealismo, e definiu-o como a noção de algo que na verdade nunca existiu em lugar nenhum, mas que é aceito pelo senso comum, inclusive de pessoas bem instruídas.

Vejo aqui uma semelhança com o conceito de wishfull thinking, que tampouco possui tradução exata em português, e denota uma coisa que as pessoas "gostam de acreditar". A proliferação de ideias hiper-reais têm disseminado esquematismos pré-concebidos que aparentemente explicam os brasileiros e os americanos em seus atributos mais profundos, mas que não resistem à análise.

Começando pela já citada ideia hiper-real da colonização portuguesa concebida como brutal e malévola, e da colonização britânica como esclarecida e benévola. A História não confirma essa assertiva. Os britânicos também foram brutais com os povos nativos e os escravos. O motivo pela evolução dos dois países haver se desviado tanto não deve, portanto, ser buscado nas origens da escravidão, mas sim no que sucedeu depois: ao contrário dos EUA, a escravidão permaneceu entre nós informalmente, desde o tempo em que o tráfico foi formalmente proibido mas continuou clandestinamente. Desnecessário lembrar como a escravidão marcou todo o nosso futuro. A autora aponta a tendência brasileira de criar "poderes informais", que se sobrepõem à lei escrita, ao passo que nos EUA "fazemos questão de colocar na lei até as nossas brutalidades".

Por trás desses poderes informais, não temos dificuldade para enxergar um conceito que nos é bastante familiar: o famoso jeitinho brasileiro. Mas trata-se de outra notória ideia hiper-real. A autora aponta um aluno brasileiro, que afirma com patética descontração "oh, nós temos o jeitinho, nós somos diferentes" como se essa fosse uma explicação mágica para todas as diferenças entre brasileiros e norte-americanos. Entretanto, afirma a autora, o jeitinho também existe nos EUA, embora não com esse nome. "A diferença é muito mais da auto-percepção".

O caso é que, assumindo erroneamente o jeitinho como uma peculiaridade brasileira, nós nos apegamos a ele. Aí reside o encanto do hiperrealismo - é uma coisa nossa, assim é a nossa alma, rejeitá-lo é rejeitar a nós mesmos. Afastando-me agora da dissertação da professora, posso citar por minha conta mais algumas ideias hiper-reais. Uma bem popular é a noção do brasileiro homem cordial, lançada por Sérgio Buarque de Holanda, que já causou muita polêmica ao ser a cordialidade assumida como sinônimo de afabilidade. Na acepção do autor, referindo-se à origem do termo - cordial deriva de coração - ele quis dizer passionalismo, personalismo, irreverência em face de normas institucionais. Basicamente, o homem cordial age conforme a emoção, e não a razão.

Sérgio Buarque de Holanda vendeu o conceito como sendo a contribuição brasileira para a humanidade, e aí nasceu a ideia hiper-real. Mas qualquer indivíduo razoavelmente nem informado quanto ao mundo que o rodeia pode notar que as características do homem cordial, sobretudo a indistinção entre família e Estado, estão presentes em vários povos, em várias partes do mundo. Não é, de modo algum, uma peculiaridade brasileira. Ocorre em povos de distintas origens e culturas, mas que grosso modo, compartilham o status de serem subdesenvolvidos. A partir desta constatação, não há dificuldade em concluir que a "cordialidade" nada mais é do que o traço de uma organização social primeva, orientada ao clã familiar, ainda não entrada em formas mais complexas e abstratas como a Comunidade, a Corporação ou o Estado, menos ainda entrada no racionalismo científico. Sendo um sinal de atraso e ignorância, não deveria de modo algum ser percebida com carinho e orgulho. Mas assim funciona o hiperrealismo.

A questão racial é outro celeiro de ideias hiper-reais, tanto nutridas por brasileiros como por norte-americanos. São notórias as diferenças entre a percepção da raça e o racismo de lá para cá. Nos EUA, não houve miscigenação, e todo indivíduo com qualquer ancestralidade africana, por mínima que seja, é catalogado como negro. No Brasil houve miscigenação abundante, prova de que não existe o racismo entre nós. Sociólogos como Gilberto Freyre afirmaram a existência de um luso-tropicalismo, supostamente uma característica inata dos portugueses a se misturarem, por já estarem próximos da África e já existirem escravos africanos em Portugal. Para os britânicos e demais europeus do norte, tudo seria apenas produto de uma sensualidade desabrida característica dos povos sulistas - nós somos racistas, mas não somos devassos como eles, certo? No centro de tudo, o mito da terra abaixo do equador, habitada por índias nuas, onde "não existe pecado".

Mas faltou incluir na discussão um dado crucial: desde as primeiras levas de povoadores nos EUA, havia homens e mulheres. Nas primeiras décadas desde a descoberta do Brasil, só houve povoadores homens. Esses colonos tinham que ter esposas e filhos - é fácil entender que qualquer um que se estabelece em uma terra desconhecida e hostil, sente de imediato a necessidade de produzir descendentes, o mais rápido e no maior número possível, sem os quais não terá sequer como sustentar-se quando lhe faltarem forças para o trabalho. Eles escolhiam esposas índias porque não havia ali mulheres europeias, e também porque era necessário estabelecer boas relações com os índios, de quem dependiam para quase tudo. Enquanto isso Portugal, que chegou a ter 10% de sua população afro-descendente no século 16, viu esse percentual reduzir-se a quase zero nos séculos seguintes.

Não, os colonos portugueses não saíam por aqui estuprando índias, ou emprenhando-as e abandonando-as, como muitos imaginam; eles tinham relações estáveis com suas esposas índias, pois só relações estáveis podiam garantir o grande número de descendentes que necessitavam, além de precisarem do bom conceito de seus aliados índios. Pode ser também que a crença do colono português aproveitador e abandonador de filhos derive dos costumes dos índios, pelos quais as crianças só ficavam com os pais até certa idade, e depois eram criadas coletivamente pela tribo. Os colonos portugueses não vinham com o objetivo de satisfazer seu libido, mas de sobreviver.

Contudo, a imagem do Brasil como uma imensa senzala habitada por negras assanhadas e portugueses lúbricos viria a nos perseguir por muitos anos, também disseminada por romancistas e comentaristas. Mas a real matriz dos brasileiros miscigenados não foram os africanos, e sim os índios, que deram origem à massa dos caboclos, também conhecidos como mamelucos. Certamente muitas negras escravas foram estupradas por seus capatazes e senhores, tal como ocorreu em todos os lugares e épocas onde existiram senhores e escravos, mas é bastante primário assumir que todo um grupo étnico, conhecido como mulato, possa ser criado a partir de uma série de estupros. Mesmo porque o propósito do estupro não é produzir descendentes, embora isso possa acontecer. É preciso lembrar que os costumes da época eram tolerantes com o abuso sexual das escravas, mas não eram tolerantes com crianças bastardas e legítimas vivendo sob o mesmo teto. São abundantes os relatos de vinganças cruéis de esposas de fazendeiros contra suas amantes escravas. Ao que me parece, a maioria das crianças geradas pelo senhor eram abortadas, vendidas para outra fazenda ou feitas desaparecer de outra maneira.

Portanto, é outra ideia hiper-real essa de que havia grande miscigenação entre brancos e negros no Brasil colonial - a miscigenação que houve foi entre brancos e índias, no primeiro século de nossa história. O que aconteceu de fato foi que após a abolição, houve uma tendência dos escravos recém-libertos se unirem à massa de caboclos, que tinham uma condição social semelhante à deles. Por conseguinte, a maioria dos indivíduos apresentados hoje como mulatos não são uma pura mistura de brancos com negros, mas uma mistura de caboclos com negros - ou seja, há componentes brancos, índios e negros. Isso explica também porque os negros brasileiros são fisionomicamente tão diferentes dos negros norte-americanos, embora descendam das mesmas etnias.

Com essas informações rigorosamente históricas e verdadeiras, cai por terra o hiperrealismo do contraste entre o colono britânico puritano, que não abusava das negras mas era racista, e o colono português devasso, que abusava das negras mas não era racista. Mesmo porque a moral sexual católica não era mais liberal que a moral sexual protestante. Na esteira, caem também outras ideias hiper-reais, como a já arcaica noção da Democracia Racial, que chegou a ser bastante popular poucas décadas atrás, e que muitos atribuíam a Gilberto Freyre, embora essa palavra não constasse em nenhum escrito do autor. Hoje se sabe muito bem que o racismo sempre existiu no Brasil. Outra ideia hiper-real, essa mais moderna, é a que afirma que o racismo brasileiro seria igual ao racismo norte-americano, e que a maioria da população brasileira seria negra.

Trata-se do produto da influência de militantes do movimento negro norte-americano, nesse mundo cada vez mais globalizado e tendente a padronizar os discursos. A maioria da população brasileira só pode ser considerada negra se for chamado de negro qualquer indivíduo de pele mais ou menos escura, mesmo sem nenhuma ancestralidade africana. Nesse contexto, a própria noção de raça tem perdido o seu sentido original de característica genotípica, e ganha uma acepção ideológica: é negro todo aquele que não se considera branco e se considera discriminado em razão de sua raça.

Os norte-americanos, por sua vez, também são aferrados a antigas ideias hiper-reais. A principal delas, a meu ver, é a crença em seu exclusivismo. O histórico de fundação e colonização dos EUA seria único porque foi revestido de um significado místico: os peregrinos que ali vieram, fizeram-no movidos por uma crença religiosa. Isso pode ter sido verdade para os primeiros povoadores, mas até onde eu sei, a prosperidade dos EUA foi construída por imigrantes que, em sua maioria, não tinham um credo. O exclusivismo norte-americano também se refere à raça: as categorias "branco" e "negro" seriam exclusivas dos americanos natos. Por este motivo o conceito de "latino", que originalmente se referia a povos europeus que falam uma língua derivada do latim, foi recriado para adquirir uma conotação racial e referir-se unicamente a sul-americanos: um indivíduo originado da América Latina pode ter a raça que for, mas nunca é catalogado como branco ou negro, sempre como "latino".

Após remover o entulho das ideias hiper-reais, poderemos enfim chegar a conclusões mais precisas e menos imaginosas para explicar porque Brasil e EUA se tornaram tão diferentes. Por ora, o que todo o mundo sabe é o óbvio: que somos muito diferentes. O que não fica claro é que somos bem menos diferentes do que muitos sabem ou querem saber.

domingo, 29 de janeiro de 2023

O Perfil do Terceiro Governo de Lula

Renascido das cinzar, o terceiro período de Lula como presidente começa a se desenhar. A conjuntura é bastante diferente daquela dos dois períodos entre 2003 e 2010, que por sua vez mostraram um Lula bem diferente daquele dos palanques nos anos 80 e 90. Lula não cessa de se reinventar.

Uma discussão recente aqui perguntava se o Lula atual é realmente de esquerda. Eu diria que sim, mas está mais sintonizado com a esquerda globalista pós-guerra fria, enquanto os fundadores do PT eram oriundos da esquerda revolucionária dos anos 60 e 70 (e alguns até hoje não se livraram de todo dessa influência). Por isso Lula não enfatiza a luta de classes, mas prioriza as políticas "afirmativas" de inclusão de populações e grupos marginalizados. Isso traz benefícios, sem dúvida, mas o lado ruim é que essas políticas são frequentemente inspiradas e financiadas por entidades globalistas (são mesmo a marca de um mundo globalizado), entre as quais se incluem numerosas ONG´s com financiadores obscuros, e há o risco de obedecerem a objetivos que não são os locais, mas os globais (isso acontece sobretudo com as políticas voltadas para os índios). Não sei até que ponto Lula vai se deixar manipular por esses globalistas, ou vai impingir a sua marca pessoal.

O lado fraco de Lula, a meu ver, é a política econômica: eu o classifico como um getulista tardio. Em seus dois primeiros mandatos ele tentou reativar o nacional-estatismo getulista que marcou vários governos dos anos trinta até os anos oitenta, quando entrou em colapso, sendo sua maior patologia o inchaço do estado. No início dos anos 2000, Lula contou com uma conjuntura internacional favorável, que de fato permitiu que ele reavivasse artificialmente aquelas políticas estatizantes e nacionalistas, mas quando o tempo bom acabou, a Nova Matriz Econômica estourou nas mãos de Dilma, e foi aberto o caminho para a queda do PT.

Cumpre notar que seu antecessor entrou com um discurso totalmente oposto, dizendo-se liberal e anti-estatista, mas na prática pouco realizou nesse sentido. O que não me espanta, pois Bolsonaro é um grande admirador do regime de 1964, que foi justamente o que levou ao auge o nacional-estatismo, criando miríades de empresas cujos nomes terminavam em "bras", até quebrar o estado e levar o país ao caos inflacionário.

OK, Lula não é mais o barbudo revolucionário dos anos 80 que elogiava Fidel Castro e queria deixar de pagar a dívida externa. Mas não se tornou direitista; no máximo, um social-democrata. Compreendo o temor que muitos têm com essas guinadas de Lula no espectro ideológico, são frequentes os exemplos de esquerdistas que migram para a direita mais radical. Carlos Lacerda foi um dos mais notáveis, mas não o único; há numerosos outros como o falecido Olavo de Carvalho, e não por acaso: trata-se da comprovação do parentesco entre a direita fascista e a esquerda socialista.

O senso comum considera uma o antônimo da outra, mas examinando a História, vê-se que ambas derivam do mesmo tronco: as tensões sociais e nacionais do tempo da revolução industrial. O verdadeiro antônimo do socialismo não é fascismo, mas o liberalismo a que chamam "democracia burguesa". A revolução industrial acirrou o antagonismo entre patrões e empregados, assim como o antagonismo entre as potências, que disputavam mercados e fontes de matérias-primas em um mundo que não era globalizado, mas retalhado por impérios. Desse impasse surgiram doutrinas que pregavam a superação dos sistemas político e econômico que emergiram da revolução francesa (taxada de "revolução burguesa"). Os socialistas pregavam a extinção da classe patronal mediante uma revolução mundial que unisse todos os trabalhadores, ao passo que os fascistas pregavam a união em torno do Estado, a quem caberia mediar os conflitos entre patrões e trabalhadores, e lançar-se à guerra para obter os impérios que atenderiam às demandas por mercado e matéria-prima. Como se vê, então, migrar de um para o outro necessita apenas a troca de alguns paradigmas: do internacionalismo operário para o nacionalismo fascista, da extinção da classe patronal para o controle desta pelo Estado. De resto, eram ambos regimes de  partido único e organizações de massas, bandeiras e divisas altissonantes.

Outra suspeita que tem sido com frequência lançada contra o PT é de que seja um partido anti-religião, mais ainda nesse momento em que as igrejas evangélicas pendem para a direita bolsonarista. Não, o PT não é um partido comunista ateísta, embora desde o início tenha dado um viés político a suas crenças religiosas, sob influencia da Teologia da Libertação. Mas ao guinar para a esquerda pós-guerra fria, adotou bandeiras globalistas que iam em rota de colisão contra a mentalidade conservadora e religiosa da maioria da população, como a defesa do aborto e do homossexualismo. Sob este aspecto, ironicamente, os direitistas estavam mais sintonizados com os setores populares. Foi de fato um grande tiro no pé, que contribuiu para o desprestígio e queda do PT. Lula até agora não deu sinais claros se continuará nessa linha em seu terceiro mandato. Se uns acham que convém não discutir política e religião, em minha opinião convém ainda menos misturá-las.

E o resto é pagar para ver.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Os Bolsonaristas e a "white trash" americana

Os eventos recentes mostram que os bolsonaristas têm uma base social surpreendentemente numerosa. De onde veio tanta gente, e por que têm tanta raiva? É nesse ponto que emerge um paralelo entre os bolsonaristas e a chamada "white trash" norte-americana, que constituíram os apoiadores mais devotos do ex-presidente Donald Trump, que não coincidentemente, manifesta uma grande afinidade com o ex-presidente Jair Bolsonaro, e tal como ele, foi derrotada por bem pequena margem em sua tentativa de reeleição, e tal como sucede aqui, manifestantes enraivecidos invadiram a sede do legislativo. Tanta coincidência não teria uma motivação?

A "white trash" norte-americana é como se chama a classe trabalhadora branca que se sente mais incomodada com a presença de negros e imigrantes concorrendo por seus empregos, e sobretudo pelos fundos do Estado, e por este motivo pende fortemente à direita - contrariando o senso comum ainda muito em voga por aqui, de que a classe trabalhadora é essencialmente esquerdista. Outros ingredientes nesse meio social, como a intrusão de pessoas "diferentes", podem efetivamente mudar o rumo desse grupo para a direita, fenômeno já antigo nos EUA, mas até o momento não observado aqui. Afirmou um comentarista:

De qualquer forma, tais fatos alegados - falsos ou reais - como sabemos, desagrada uma parte da população americana, a saber, parcelas do povo branco, norte-americano.
Adicione-se que, parte dos afro americanos, sobrevivem com a "pensão social" destinada pelo Estado; o que causa nos brancos americanos, parece que principalmente nos "white trash", um ressentimento muito grande; tendo em vista que eles consideram que o benefício estatal destinado aos afro americanos mais pobres, é oriundo dos seus rendimentos, anteriormente convertidos em impostos.

A questão levantada é: tanta coincidência entre eventos ocorridos nos EUA e aqui são evidência de que já existe no Brasil uma numerosa classe trabalhadora ressentida com os benefícios que um governo de esquerda concede aos mais pobres?

A analogia deles com a white trash norte-americana, a meu ver, é limitada. Uma característica marcante da classe trabalhadora americana é a sua consciência de serem pagadores de impostos, portanto sustentadores do erário público - daí que não se agradem com a ideia de que seus impostos são usados para sustentar aqueles que (supostamente) não pagam impostos.

Essa arraigada crença de que quem paga impostos deve ter o controle do Estado vem dos primórdios da nação norte-americana, cuja revolução foi motivada por cidadãos que se julgavam espoliados por pagarem impostos que eram apropriados pelo administrador britânico ao invés de aplicados ali. Esse pensamento nunca ocorreu com a mesma ênfase no Brasil, onde o Estado tem sido tradicionalmente visto como um patrono dono de fundos supostamente infinitos, a quem cabe prover a população (visão muito endossada por líderes populistas), e não como mero síndico de uma receita de impostos finita.

A noção de que "cidadão" é sinônimo de "aquele que paga impostos" foi herdada do colonizador britânico pelos norte-americanos. Remonta, de fato, ao tempo da Magna Carta, que limitou o poder do rei de instituir impostos a sua vontade, e foi reforçada pelas revoluções que instituíram o parlamento como agente do poder. Inicialmente, apenas os pagadores de impostos podiam votar e ser votados, o que fazia pleno sentido no contexto político e social da época, posto que as funções dos primeiros parlamentos se reduziam à gestão de impostos, e por conseguinte, a representatividade política era da alçada somente daqueles que pagavam os impostos, e de ninguém mais. Só gradualmente a atuação dos parlamentos foi estendida à legislação em todas as áreas, e as prerrogativas de cidadão foram estendidas a toda a população nacional.

Se tal educação política permitiu aos norte-americanos um entendimento perfeito quanto aos direitos e deveres de cidadãos e governantes, por outro lado induziu uma intolerância contra todos aqueles que, em sua visão, trapaceiam nesse arranjo, e supostamente querem ter direitos sem arcar com os respectivos deveres. Não sei até que ponto os bolsonaristas brasileiros incorporaram esse discurso, mas a impressão que tenho é de que sua identificação com os apoiadores norte-americanos de Trump origina-se apenas de um paralelismo entre a posição social de uns e outros, e não de um compartilhamento de ideologia. Sob esta óptica, os bolsonaristas continuam sendo um produto de uma fenomenologia social tipicamente brasileira, e não de discípulos ou imitadores. Mas se nos EUA essa história já é antiga, aqui é nova. Só podemos esperar para ver.