quinta-feira, 28 de março de 2024

Mais um 31 de março

Todo ano, aproximando-se o calendário do 31 de março, emergem novas (ou as mesmas?) discussões sobre o evento ocorrido em 1964, até hoje não assimilado de todo pelos comentaristas, como prova essa ressurgência. Mas por acaso adquiri recentemente um livro sobre o tema, Ditadura à Brasileira, de Marco Antonio Villa, que consegue lançar luz sobre aspectos ainda não bem ventilados.

Algo que vem me chamando a atenção é a infindável polêmica sobre se o ocorrido teria sido um golpe ou uma revolução, também a recente mania de nomear o regime como cívico-militar ao invés de simplesmente militar, como se essas fossem questões cruciais. Alguma coisa aí não ficou bem entendida, ou querem que seja o que gostariam que fosse. Lendo o livro, que cita numerosos depoimentos de personagens da época, notei que o termo "revolução" é muito repetido pelos próceres do regime até pelo menos a época de Medici. Fico com a impressão que o golpe ou revolução não foi somente uma réplica à suposta guinada comunista do presidente deposto, mas embutia efetivamente um projeto de longo prazo, abrangendo várias esferas, social, poitica, econômica, tal como uma verdadeira revolução.

Mas que projeto seria esse? No campo econômico, os presidentes militares não se desviaram do desenvolvimentismo nacional-estatista que vinha regendo o país desde os anos 30, oscilando entre sua vertente "entreguista" (Kubitchek, Castello) e sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel). No campo político, fica claro: seguiu-se a doutrina positivista do filósofo Auguste Comte, leitura preferida dos alunos das escolas militares do fim do império. Os positivistas desacreditavam da democratia representativa e pregavam uma "ditadura republicana, racional e científica", comandada por técnicos e não por políticos, que presumivelmente implementaria o desenvolvimento econômico e social.

Essas "ideias geniais" eram intoleráveis até para a conservadora oligarquia de plantadores de café que assumiu o poder na primeira república, a qual tratou de fechar o espaço político para os positivistas, influentes durante a "república da espada", e conseguiu alijá-los. Mas os princípios positivistas permaneceram no ideário de numerosos líderes políticos, e sobretudo militares. O autor foi claro em todas as letras: os militares viam a política como uma inutilidade, um obstáculo ao desenvolvimento.

Mas neste ponto verifica-se uma contradição fundamental: se era assim, então por que o regime instaurado em 1964 revestiu-se de um caráter bacharelesco, com todos os atos arbitrários cuidadosamente editados, numerados e publicados? Houve cerca de vinte atos institucionais, embora sejam mais conhecidos o AI-2 e o AI-5. Os atos complementares contam-se às dezenas. Essa idiossincrasia contrapõe-se dramaticamente ao que ocorria na época em nossos vizinhos hispânicos, com os generais-presidentes dispensando qualquer arremedo de legalidade, e sem data para sair. Talvez houvesse uma aversão da parte de nossos generais de serem vistos como reles caudilhos, equiparando-se aos hispânicos, aversão herdada dos idos do império quando o exército brasileiro bateu-se contra vários daqueles caudilhos.

Ou talvez ocultasse uma proposta de tornar gradualmente a ditadura um regime constitucional, para desta forma cimentar nas instituições os ideais da suposta revolução, e quando nada, para lhes proporcionar uma saída honrosa, "legal". Conforme se sabe, conseguiram.

O livro chama a atenção para outros aspectos do período frequentemente ignorados pelos comentaristas, como o fato da esquerda tampouco ser democrática - se para os militares a política era uma inutilidade, para os militantes revolucionários a política era uma farsa, a que chamavam "democracia burguesa". É perfeitamente sabido que todos os movimentos revolucionários sul-americanos dos anos 60 e 70 tinham como meta o modelo cubano, com um partido único. Outra verdade incômoda é que nem todos os políticos civis do partido governista submetiam-se à ditadura apenas por coação - havia muitos que concordavam com ela, e até os que eram mais radicais.

De fato, chegava a ser hilário o radicalismo caricato de um Gama e Silva, ministro da Justiça de Costa e Silva, que até tinha dificuldade para suportá-lo, pois não lhe era difícil perceber que a propensão de seu auxiliar em ser mais realista que o rei não passava de sabujice. Os primeiros anos do regime, então, foram mesmo uma tragicomédia, com tantos líderes políticos proeminentes dando seu apoio ao novo governo, confiantes que assim se veriam livres dos adversários cassados e teriam todas as possibilidades de se tornarem presidentes na eleição de 1965, apenas para verem a eleição cancelada e eles próprios cassados.

Outra coisa que sempre me chamou a atenção - e que o autor procurou explicar - foi o mais absoluto abulismo da parte da população em geral, que não expressou reação nenhuma à implantação da ditadura, sobretudo após o AI-5. Pouco antes havia um clima de descontentamento no ar e um aguerrido movimento estudantil, onde foi parar tudo aquilo? O autor narra como Carlos Lacerda, preso em seguida, iniciou uma greve de fome e logo foi repreendido pelo irmão:

"Os jornais não estão iniciando nada disso; as praias estão repletas; está um sol maravilhoso e está todo o mundo na praia; ninguém está tomando conhecimento disso! Então você vai morrer estupidamente. Então você quer fazer Shakespeare na terra da Dercy Gonçalves?"

Por certo, nem todos os que estavam tomando sol na praia apoiavam o que estava acontecendo, acredito até que a grande maioria não apoiava. Por que ninguém fazia nada? O autor ensaia uma explicação:

"Em um país com tradição autoritária, avesso às grandes lutas políticas e vivendo de movimentos espasmódicos de mobilização, quando o cenário econômico é favorável, com expansão do emprego, do crédito, do consumo e com a possibilidade de ter uma casa própria, a política vira um estorvo para a ampla maioria da população. Era o que estava acontecendo em 1969"

A política tinha, de fato, virado um estorvo para todos. Mas o grande sucesso estratégico do regime foi usar a política para criar a ilusão de que havia uma normalidade próxima, e assim dissuadir qualquer reação precipitada da parte dos eventuais adversários. Para tal, em primeiro lugar foram eliminados os chefes políticos mais importantes, tanto dos adversários quanto dos apoiadores - assim se foram Carlos Lacerda, Adhemar de Barros, Juscelino Kubitchek e quaisquer outros politicos civis grandes o bastante para disputar o poder com os militares. Os demais foram atirados nos dois únicos partidos admitidos, que tornaram-se valas comuns, anódinos, sem espírito ou ideologia definida. Então criou-se uma legalidade forjada, onde as regras eram mudadas sempre que necessário para garantir a maioria do partido do governo.

Para quem vê a política como uma inutilidade, é normal acreditar que toda essa manipulação da legislação eleitoral seria inócua para o país. No entanto, essa tornou-se a herança mais importante e longeva do regime dos militares. O objetivo foi desemponderar o eleitorado e os políticos dos grandes centros, mais esclarecidos e importantes economicamente, em prol do eleitorado e dos políticos dos rincões atrasados, tradicionalmente dependentes e apoiadores do governo. O efeito a longo prazo no quadro político foi devastador. Nunca mais surgiram líderes intelectualmente brilhantes com um Carlos Lacerda; em seu lugar, surgiu um José Sarney. Vinte anos depois, o sucessor de um Adhemar de Barros, este já visto como populista e corrupto, foi um Paulo Maluf. O primeiro presidente eleito após o fim do regime foi um Collor de Melo, originado do mais atrasado coronelismo de um estado atrasado.

Sessenta anos após, nada mais resta da obra do regime exceto a destruição do quadro político. Desiludido com os partidos, o eleitorado busca líderes carismáticos - um Lula ou um Bolsonaro. Ambos parecem hologramas de outra época, repetindo discursos anacrônicos, prova de que o regime de 1964 ainda está entre nós. Por isso estamos sempre a discutí-lo como se ainda fosse o presente. Mais um 31 de março.

sábado, 16 de março de 2024

Casa Grande & Senzala, ainda atual?

Completa 90 anos o grande clássico das Ciências Sociais brasileiras, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, ainda hoje incitando polêmicas. O livro ganhou uma edição especial comemorativa de aniversário da Global Editora, e foi objeto de um artigo da revista Aventuras na História, comentado pela historiadora Mary Del Priore e pelo economista, cientista político e ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira. Mas minha grande dúvida é: continua atual? Argumenta Bresser-Pereira:

"Casa Grande & Senzala continua atual porque é uma obra histórico-sociológica que busca os fundamentos da sociedade brasileira. Uma sociedade que, como todas as grandes sociedades, muda, mas se conserva a mesma (...) As suas bases econômicas, políticas e raciais continuam as mesmas"

O livro seria, então, uma referência para explicar aquilo que chamamos "brasilidade". O objeto do estudo foi o povo. Afirma Mary Del Priore:

"Muito antes dos historiadores estrangeiros falarem em atores anônimos da História, Giberto Freyre o fez. Nos seus livros, não há heróis. Há gente, povo"

Freyre foi, de fato, um pioneiro da técnica de produzir estudos sociológicos partindo de detalhes da vida privada de pessoas comuns, uma tendência que mais tarde se tornaria moda. Teve também o mérito de contestar a teoria então amplamente aceita da inferioridade das raças mestiças, que seriam um entrave ao desenvolvimento do país. Mas demolido este mito, criou outro: o da mestiçagem como sendo o traço fundador da sociedade brasileira, onde supostamente as raças convivem de forma harmônica. Por este motivo, Freyre é até hoje criticado por haver lançado a falácia da "democracia racial", termo que não aparece em nenhum de seus escritos, mas que é sugerido pela maneira leniente com que abordou a colonização portuguesa e relativizou o papel da escravidão no país. Mas como bem apontou Mary del Priore, o grosso das críticas resulta do desconhecimento da obra, das pesquisas e das inúmeras entrevistas dadas por Freyre ao longo da vida.

Essa polêmica rasa e persistente, que passa ao largo de uma análise mais profunda de sua obra, é produto, a meu ver, daquilo que é seu grande defeito: manter um viés racialista. Não confundir racialismo com racismo. Racialismo é toda abordagem que afirma ser a raça um fator explicador de determinado fenômeno social, o racismo é um recorte do racialismo que procura provar que umas raças são superiores às outras.

Freyre, com certeza, não era um racista. Mas indiscutivelmente era um um racialista: se afirmar que a mestiçagem torna o país inferior é uma falácia sem fundamento científico, o mesmo se diz de afirmar que a mestiçagem é o traço explicador do país. Afinal, o perfil social, cultural e político do Brasil foi originado da mistura de heranças genotípicas das raças que constituíram a nossa população? Ou foi produto de circunstâncias histórias e ambientais, que teriam gerado um perfil análogo mesmo se nossas matrizes raciais viessem de outros grupos étnicos?

Pergunto-me porque Gilberto Freyre, o estudioso, insistiu tanto nessa exaltação da mestiçagem. Ele próprio (ao contrário do que muitos supõem) nunca conheceu pessoalmente aquele mundo de casas grandes e senzalas sobre o qual discorreu com tanta familiaridade, como se o houvesse conhecido. Mas ele era filho de um médico e sempre morou em cidades. Talvez o motivo tenha sido uma fixação pessoal. Um outro livro de Freye, muito menos conhecido, um livro de memórias intitulado De Menino a Homem narra várias experiências sexuais bizarras da juventude, e deixa claro como o autor era fascinado por sexo interracial.

A meu ver, a mestiçagem está mais para mito fundador do que para traço fundador. É algo que gostamos de acreditar - o país é uma mistura de elementos europeus, africanos e índios. Mas é autoevidente que o elemento europeu é arrasadoramente dominante, sem contar que ao nos referirmos a elemento "africano" e "índio", estamos atirando em um mesmo saco dezenas de etnias que pouco tinham em comum umas com as outras, cujas heranças foram perdidas no processo de colonização, restando apenas vestígios periféricos. Já a herança européia é muito mais concisa, originada de seus quatro pilares: o greco-romano e o judaico-cristão. Uma análise honesta do Brasil só pode considerá-lo um membro ordinário do Mundo Ocidental, tal como o restante das ex-colônias dos impérios europeus - pobre, ou subdesenvolvido, se preferir, mas ocidental.

Mas então, Casa Grande e Senzala continua atual?

Sim, desde que o país seja reduzido a casas grandes e senzalas. Onde estão aí os milhões de imigrantes que hoje constituem a classe mais ativa do país em termos econômicos e culturais, e que nunca passaram por casas grandes nem por senzalas? A obra sociológica de Freyre continua importante, mas a discussão em torno da relevância da mestiçagem está datada. Pertence às obsessões racialistas do princípio do século passado. Na verdade, vejo-a como um trauma que deve ser superado - o trauma de ser uma sociedade com passado latifundiário e escravizador, o que em tempos modernos é traduzido pela visão reducionista de um povo bom governado por uma elite abominável.