quinta-feira, 27 de maio de 2021

Crise Militar de Bobagem

Crise militar já foi coisa séria por aqui, daí que não dá para evitar um ar de dejà vu na trapalhada presente. É sabido que o presidente nutre uma nostalgia por um tempo que ele próprio não viveu - os anos do regime dos generais, quando era apenas um cadete - e teve o apoio de um eleitorado que igualmente, em boa parte, não viveu o regime dos generais, mas o idealizam, sobretudo em razão do desenvolvimento econômico e da menor criminalidade do período.

Já abordei essa época e procurei discernir o que há de verdade e o que há de wishful thinking, mas hoje tive a atenção despertada por um vídeo trazendo um exemplo bem próximo de nós: o lamentável estado das Forças Armadas na Argentina, resultado evidente da perda de confiança daquela nação em suas classes armadas após haverem elas sucessivas vezes exercido o governo, sempre com resultados desastrosos. Da crença no messianismo dos militares, nossos vizinhos já estão livres. Mas nós ainda não.

Examinemos o caso da Argentina. No início do século 20, tinha um regime político republicano estável. Com a economia puxada pela exportação de carne bovina nos recém-inventados navios frigoríficos, tornou-se um dos países mais ricos do mundo, e uma crescente classe média ganhava protagonismo político por intermédio de um partido nascido para representar os setores urbanos e romper o domínio da velha oligarquia, a Unión Cívica Radical, isso em uma época em que todos os demais países sul-americanos eram governados por sua elite rural. Tudo parecia rumar em direção ao mesmo modelo dos demais países ocidentais desenvolvidos. Mas o trajeto foi interrompido por um golpe de estado em 1930, quando assumiu o poder um general-presidente, cujo nome não importa.

Rompida a legalidade constitucional, esta nunca mais se restaurou. Em mais um de tantos golpes, assumiu o poder um certo coronel chamado Juan Domingo Perón, que ao contrário dos demais, possuía um forte carisma. Perón instaurou um regime nacionalista autoritário, calcado do fascismo de Mussolini, e aproveitou-se de uma conjuntura econômica favorável após o fim da segunda guerra, quando o país tinha altos saldos comerciais, para conceder grandes benefícios aos trabalhadores, o que lhe garantiu amplo apoio popular. Escreveu ele certa vez a seu colega presidente do Chile:

"Dê ao povo, principalmente aos trabalhadores, tudo o que for possível. Quando achar que está dando demais, dê mais ainda. Verá os resultados. Como de costume, todos tentarão assustá-lo com o fantasma do colapso da economia. Mas é tudo mentira. Não existe nada mais elástico que a economia, que todos temem porque ninguém entende"

Tampouco ele entendia...

Mas a bonança dos tempos de Perón ficou bem marcada na memória da população, que associou à sua ausência os tempos bicudos que passaram a viver após haver sido gasto o saldo da balança econômica pós-guerra. Isso mais a violência e o personalismo de seu regime produziram uma grande fissão na sociedade argentina, levando alguns setores a trocar o jogo político pela luta armada. A ala esquerda do peronismo criou o grupo guerrilheiro denominado os Montoneros, enquanto a ala direita gerou a Aliança Anticomunista Argentina, capitaneada por López Rega, ministro do Bem-Estar Social. A estes se juntou o Exército Revolucionário do Povo, de inspiração guevarista. Tanta subversão produziria inevitavelmente mais instabilidade e mais intervenções militares, todas mal sucedidas, e à degradação política seguiu-se a degradação econômica: de país rico, a Argentina assumiu um perfil típico de Terceiro Mundo. Após o desastre da Guerra das Malvinas, os argentinos finalmente se convenceram de que a indisciplina de seus militares era a causa histórica de sua decadência.

Por aqui as coisas foram um pouco diferentes. Desde a proclamação da república, os militares assumiram uma posição de mediadores, com o papel de intervir nos impasses. Isso resguardou a reputação dos militares, que foram vistos como uma reserva moral da nação: enquanto eles exercessem este poder moderador, o país estaria livre de desenlaces sangrentos e de guerras civis. Até que em 1964 eles decidiram assumir efetivamente o poder. Também esta fase distinguiu-se do ocorrido na Argentina: os generais-presidentes sucederam-se no poder dentro de uma ordem constitucional aparentemente estável, acompanhada de forte crescimento econômico.

Mas sob uma perspectiva histórica, o período militar não foi uma singularidade, e sim a continuação do modelo desenvolvimentista nacional-estatista iniciado por Vargas nos anos 30 em moldes igualmente totalitários, passando pelo período democrático do segundo governo Vargas, dos governos JK e João Goulart. De fato, os militares levaram este modelo ao auge, nos anos 70, e ao esgotamento nos anos 80. Com a gigantesca crise na "década perdida", a população pôde constatar que os militares não eram governantes superiores aos civis, e desde então não se ouviram mais clamores por uma intervenção militar, até recentemente.

Contudo os "bons tempos" em que os generais impunham ordem e progresso, tal como estava em nossa bandeira, ainda alimentam utopias. Nisso estamos um passo atrás de nossos vizinhos argentinos. Mas pelo menos, não se fazem mais crises militares como antigamente.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Armando a população ou os bandidos?

 A tragédia recentemente ocorrida em Santa Catarina, onde um jovem mentalmente perturbado invadiu uma creche armado de um facão e matou várias pessoas, além das inevitáveis mensagens de pesar e clamor por justiça, despertou nos forum´s dos veículos da mídia uma discussão que me pareceu instigante. Alguns comentaristas afirmaram que se fosse liberado a população andar armada, como quer Bolsonaro, a tragédia não teria acontecido, pois certamente alguém já teria acertado o meliante com uma bala antes que ele pudesse causar mais estragos. Outros comentaristas replicaram, indignados, que se assim fosse, o assassino não estaria armado de uma faca, mas de uma pistola, tal como é nos EUA.

Então, o que é melhor, armar a população ou os bandidos, se a liberação colocará armas nas mãos de ambos? Aí caímos em uma daquelas armadilhas lógicas do gosto dos matemáticos. Certamente que bandidos, quando querem ter armas para violar a lei, violam a lei para ter armas. Mas um cidadão comum, mentalmente perturbado como foi o caso, teria acesso mais facilmente a uma arma se essas estivessem liberadas para os cidadãos. Provavelmente pegaria a pistola do pai, em casa mesmo. Voltamos então à estaca zero, e a discussão prossegue ociosa: liberar ou não as armas à população?

Para um quadro geral de criminalidade descontrolada e falta de confiança na polícia, é sedutora a ideia de fazer justiça com as próprias mãos. Sedutora e ingênua: a grande maioria dos cidadãos, se tivesse uma rama, não saberia usá-la. De um modo geral, sempre me pareceu pueril a proposta de Bolsonaro de armar a população, como se esta fosse uma solução mágica para o crime: então ele propõe que cada cidadão deve prender seu assaltante? Cômodo para os poderes públicos.

Mas tem a ver com a memória seletiva que projeta uma imagem edulcorada dos tempos da ditadura, quando supostamente bandido não tinha vez e a polícia resolvia tudo mandando bala. E do mesmo modo, a proibição das armas, e de resto todo o arcabouço legal que dificulta o combate ao crime também tem a ver com a memória do tempo da ditadura, desta vez com uma percepção invertida: a polícia era "do mal", os marginais eram o "povo oprimido" e a cadeia "não recupera". Sob este espírito de reparação das injustiças da ditadura foi escrita a constituição de 1988 e quatro anos depois o Estatuto da Criança e do Adolescente, com toda a sorte de empecilhos ao encarceramento e facilidades para o relaxamento da prisão em regime fechado. Não podia dar outra coisa, e o crime explodiu, produzindo o sentimento inverso do atual desejo de vingança, essa raiva difusa que leva o povo a votar em quem promete baixar o pau na bandidagem, geralmente sem cumprir.

Sem dúvida que a proposta de proibir as armas, abrandar a legislação penal e oferecer penas alternativas tem um traço humanista, pretensamente progressista e generoso. Mas também embute um sentimento rancoroso e vingativo contra o cidadão comum, jogando-se no corpo da sociedade a culpa pelos crimes cometidos pelos desvalidos, herança da ideologia de luta de classes que embalou o "espírito da época" que pariu o ECA e a constituição de 1988. O espírito da época atual é bem mais escuro, e emerge do ditado popular: aquele que absolve o lobo, condena a ovelha. Ninguém aguenta mais ser ovelha.

Mas o remédio não é dar armas a quem não sabe usá-las, e sim reverter todo aquela arcabouço legal que favorece o crime. Quem já teve contato com marginais sabe que bandido não tem medo de morrer, pois se tivesse não entrava para o crime - ao contrário, bandido sabe que vai morrer e cedo, e por isso procura aproveitar a vida ao máximo e de forma inconsequente. Bandido tem medo, isso sim, de cana dura. Não morrer, mas viver longos anos em uma cela sem conforto, sem festa, sem droga, sem mulher, sem nada daquilo que o motivou a ter uma carreira criminosa. Tanto medo tem, que quando ameaçado de um regime carcerário mais severo, chega a ter reações suicidas, como aquela de 2006 em SP, e em menor escala aquela de 2010 no RJ que motivou a criação da UPP´s. Solução para o crime é cadeia. Só.