quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Falácia Ad Hitlerum

Mas como? Eu, que nem historiador sou, me atrevo a escrever sobre Adolf Hitler, possivelmente o personagem mais notório do último século, sobre o qual já foram escritas dezenas de biografias com centenas de páginas? Tenho a pretensão de adicionar algum dado que ainda não tenha sido debatido?
Não pretendo escrever exatamente a respeito da pessoa de Adolf Hitler, sobre o qual, aliás, li pouco, mas li coisa interessante. Tenho uma predileção por livros finos e pouco conhecidos, convicto que estou que nenhum autor precisa de muitas páginas para expor uma conclusão sucinta que tenha escapado aos autores que escreveram muitas páginas. O livro que gostei chama-se Um Tal de Adolf Hitler, de autoria de uma tal de Sebastian Haffner, que é um jornalista, e não um historiador. Ele procura decifrar as singularidades de Hitler e do nazismo observando as diferenças entre ele e outros grandes líderes do mundo ocidental, bem como as semelhanças entre o nazismo e o comunismo, ambos florescidos na mesma época.

"O pai de Adolf Hitler percorreu sua vida em ascensão. Apesar de filho ilegítimo de uma criada, conseguiu alcançar um cargo elevado no funcionalismo público, morrendo honrado e respeitado. O filho começou a vida em declínio. Não terminou o colégio, foi reprovado no exame de admissão para a Escola de Belas-Artes... A vida de Adolf Hitler carece de tudo o que normalmente dá peso, calor e dignidade à existência de um homem: cultura, profissão, amor, amizade, casamento, paternidade..."
Se alguém encontrar esse livro em algum sebo, recomendo que o compre. Mas o meu interesse agora por este tema diz respeito ao impacto que o nazismo ainda apresenta no mundo atual. De fato, com frequência lemos por aí ataques a líderes políticos repugnantes comparando-os a Hitler, bem como regimes políticos repugnantes sendo comparados ao nazismo. Chama-se isso falácia Ad Hitlerum, termo cunhado pelo filósofo político Leo Strauss. Adicionado à conhecida coleção de falácias da retórica, consiste de uma argumentação que visa desqualificar um oponente de forma irremediável e irreversível.

Pelo senso comum, faz sentido. Na História Universal, não há expoente de malignidade maior do que Hitler, o vilão máximo. Mas se há tantos hitleres soltos por aí, então isso é um sinal de que Hitler não está morto. Parece existir um temor coletivo de que o nazismo possa ressurgir subitamente. Quem vive a época atual sabe do que estou falando, e por época atual não me refiro a mês e dia, mas a toda a época, mesmo. Os hitleres mudam de nome e os nazismos mudam de endereço, mas há sempre um por aí a ser denunciado.

Não se pode suprimir um medo sem entender sua origem. O que foi, exatamente, o nazismo? Ainda há algumas pessoas vivas que testemunharam aquele período, mas para as gerações recentes, se comparado com o mundo atual, parece uma época tão distante quanto a Idade Média, e Hitler parece um personagem tão obscuro quanto um Gengis Khan. Se assistimos um documentário e visualizamos imagens, prova cabal do que ocorreu naquela época, o contraste com o mundo atual é tão impactante quanto o contraste da antiga fotografia em preto-e-branco com a moderna fotografia a cores. Se as imagens são colorizadas, parecem um filme de ficção, do tipo dos seriados de terror e ficção científica encontráveis na TV a cabo. Sabemos que guerras e massacres ainda ocorrem em determinadas partes do mundo, mas não na Europa, tida como um lugar refinado e ordeiro, sendo a Alemanha um lugar particularmente refinado e ordeiro, e já era assim antes dos eventos que originaram o nazismo. Como aquilo tudo pôde ocorrer em um local que é o paradigma do mundo civilizado? Como um país tão evoluído quanto a Alemanha pôde ter um líder como Hitler?

O incômodo dessas questões é: se aconteceu aquilo com eles, que eram tão bons, então quem garante que não possa acontecer conosco? E se aconteceu uma vez, quem garante que não pode acontecer de novo? Incapazes de determinar as origens do fenômeno, ficamos com a suspeita de que o nazismo ainda está entre nós, insidiosamente incubado e pronto a ressurgir, mesmo que seja na figura de um exótico candidato a presidente. É o momento ideal para uma reflexão, procurando entender o que realmente foi o nazismo, e afastar certas pressuposições que erguemos como barreira contra constatações atemorizantes.

A primeira dessas pressuposições é a crença de que a doutrina nazista está circunscrita à Alemanha e à pessoa de Hitler. Mas está havendo aqui uma amnésia coletiva. A noção de superioridade racial era corrente no início do século 20, e no século anterior fora objeto de enunciados pretensamente científicos por vários pesquisadores que não eram "nazistas" no sentido em que essa palavra adquiriu posteriormente. A crença de que a raça deveria ser melhorada por políticas públicas, denominado eugenia, era considerada respeitável. É verdade que seus seguidores não pregavam o extermínio de quem já nasceu, e sim evitar o nascimento de indivíduos considerados degenerados, mas a mensagem implícita é a mesma: raças e indivíduos inferiores devem ser levados à extinção. Diversas práticas eugênicas já vinham sendo implantadas por países desenvolvidos, e isso era visto como progresso; não levavam pessoas para câmaras de gás, mas em muitos casos pessoas eram esterilizadas sem o seu consentimento.

Enfim, não foram os nazistas que inventaram a doutrina da superioridade racial, o que eles fizeram foi colocá-la em prática. Após o trauma gerado pela descoberta dos campos de extermínio nazistas, esses conceitos caíram em desgraça e estabeleceu-se a amnésia coletiva que impede de perceber que não foram os nazistas seus inventores.

E tampouco foram os nazistas que inventaram os campos de concentração. Já havia campos de prisioneiros com essas características na Rússia em 1918, criados pelos bolchevistas. Mas os introdutores do conceito foram os britânicos durante a Guerra dos Boers, tendo sido criados campos na África onde eram aprisionadas famílias inteiras.

A segregação de raças, a proibição da miscigenação e do contato físico entre indivíduos de raças diferentes já vinha sendo praticada nos EUA desde o século 19, amplamente amparada na legislação, e prosseguiu até bem depois da derrocada nazista.

O nazismo não foi a invenção de um gênio maligno. Seus preceitos, embora renegados na época atual, fizeram parte da bagagem de crenças e práticas das nações mais evoluídas do mundo ocidental em época recente. Daí que, por mais absurdo que tenha sido, ainda parece familiar hoje. Recentemente houve uma discussão em torno de um vídeo divulgado pela embaixada alemã, questionando se o nazismo teria sido um movimento de esquerda, e não de direita. Parece estapafúrdio, mas a questão esconde um mal entendido: o nazismo é, obviamente, de direita. Mas a direita e a esquerda do início do século 20 derivavam do mesmo fenômeno social e disputavam o mesmo público de proletários, intelectuais descontentes e inconformistas em geral. Na época presente convencionou-se que direita é sinônimo de conservadorismo, mas os regimes fascistas que brotaram a partir da década de vinte nada tinham de conservadores. As imagens evocadas ainda hoje pelo nazismo trazem multidões, bandeiras, fanfarra, operários e estudantes desfilando uniformizados etc. etc. Impressiona o entusiasmo da juventude, bem como o fato de que quase todos os líderes nazistas recém-chegados ao poder eram jovens na faixa dos 30 anos, inclusive o próprio Hitler.

Fascismo e socialismo emergiram do mesmo contexto de revolução industrial, expansão do proletariado, nacionalismo e rivalidade entre potências colonialistas. Pregavam a superação tanto do sistema político quando do sistema econômico vigentes em favor de um regime de partido único e um líder carismático. Como diferença básica, o socialismo era internacionalista (união dos proletários contra os burgueses) e o fascismo era nacionalista (confundindo os conceitos de raça e nacionalidade), mas de resto ambos eram muito semelhantes em seus ritos e métodos. Basicamente antiliberais e anticapitalistas, preconizavam o Estado no comando da economia e da vida privada dos cidadãos.

O fascismo nunca foi um regime de elites econômicas, como se acredita hoje; era um regime apoiado por organizações de massa que em determinado momento conquistou o apoio dos grandes empresários, que consideraram-no uma alternativa ao comunismo. O verdadeiro oposto do fascismo não é o socialismo, mas o liberalismo, e no caso do nazismo, isso fica claro no próprio nome: Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Mas o parentesco entre as duas correntes políticas pode ser deduzido também da história pessoal de figuras notáveis da direita, que em sua juventude foram socialistas, inclusive o próprio Benito Mussolini. No poder, o nazi-fascismo não eliminou a burguesia como fez o comunismo, mas colocou-a a serviço do Estado (na prática os fascismos criam uma burguesia para uso próprio, seja favorecendo empresários amigos ou enriquecendo seus próprios acólitos, ao mesmo tempo em que perseguem e expropriam os burgueses não cooptados).

Então, não é estranho que o nazismo nos pareça familiar quando observamos certos líderes, partidos e regimes ao redor. A pergunta é: pode surgir novamente em nossa história? Afinal, já tivemos simpatizantes do nazismo no passado. Para responder essa pergunta é preciso verificar se além das ideias, também as condições sociais daquele momento podem repetir-se. Na Alemanha dos anos vinte havia multidões de ex-soldados, gente que não tinha emprego, mas tinha disciplina e sabiam usar armas. Foram esses indivíduos que engrossaram as organizações de massa e paramilitares do partido nacional-socialista. O exemplo que temos mais próximo de nós é o da Colômbia, onde uma longa guerra civil deixou uma multidão de combatentes que tampouco têm empregos, mas sabem usar armas, e vem integrando tanto grupos guerrilheiros quanto bandos armados de traficantes.

Por aqui não temos essa disponibilidade de massas que possam integrar grupos paramilitares antes de migrar para bandos criminosos. As que temos já foram direto para bandos criminosos. Mas convém lembrar que em sua época, o partido nacional-socialista alemão, ao mesmo tempo em que armava seus militantes, concorria a eleições e aumentava sua representação no parlamento. Para isso valeu-se do colapso do partido centrista, o social-democrata da classe média conservadora, para tomar o poder de forma quase anestésica, dentro do quadro de legalidade ainda vigente. Durante a chamada República de Weimar, o partido social-democrata manteve um equilíbrio precário sustentado pelos conservadores, enquanto os descontentes se dividiam entre o partido comunista e o nacional-socialista. Quando os comunistas começaram a bandear-se em massa para o nacional-socialismo, a balança se desequilibrou, e o resto da história todos conhecem.

A História mostra, portanto, que um modo pelo qual o nazismo pode alcançar o poder é introduzindo-se pela fenda aberta com o colapso de um partido centrista. Resta saber se essas condições podem se fazer presentes um dia entre nós.

Ou se tudo não passa de falácia Ad Hitlerum.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Orgulho Negro X Orgulho Branco

Não dá para fugir ao assunto, faz parte do espírito da época. Eu não sei dizer exatamente quando começou esta abordagem racialista dos problemas brasileiros, aqui onde antes era senso comum que o nosso problema não era o racismo, mas a desigualdade social. Mas com certeza é um produto da globalização. À medida em que os espaços se encurtam, aumenta o estranhamento entre as raças. O que sei com certeza é que a expressão Orgulho Negro se tornou corriqueira, reverberada em camisetas onde está escrito: 100% negro.

Por este motivo vi com preocupação o surgimento da expressão Orgulho Branco, que nunca antes tinha ouvido, e camisetas com a inscrição 100% branco. Pareceu-me estar surgindo uma reação contra o orgulho racial negro, capaz de fomentar, enfim, o racismo que tanto se esforçam em denunciar. Mas é difícil negar legitimidade a essa reivindicação. Se eles podem proclamar o orgulho de serem negros, nós podemos proclamar o orgulho de sermos brancos, certo?

Por acaso deparei-me com a primeira refutação lógica deste axioma. Um blogueiro explica porque as demais expressões de orgulho não são racismo, e apenas a expressão de orgulho branco é.



Preto = herança cultural africana
Mexicano  = herança cultural mexicana
Asiático = herança cultural da Ásia
Muçulmano = herança cultural e religiosa
Branco = cor da pele

Assim, explica Robert Gonzales, celebrar orgulho italiano, irlandês, mexicano, alemão, espanhol, é celebrar uma herança cultural que não pertence a uma raça específica. Celebrar orgulho branco é celebrar somente a cor da pele, pois não existe uma herança cultural branca, posto que os povos europeus pertencem a várias culturas. Faz sentido. A fusão dos conceitos de raça e cultura é um equívoco atroz, e detestável, pois implica que alguém de uma raça específica deve obrigatoriamente ter uma cultura específica, e uma cultura específica não pode ser abraçada por alguém de outra raça. As consequências nefastas desta linha de pensamento estão bem visíveis na história recente.

Quanto a mim, nunca pensei em sair por aí com uma coisa tão idiota quanto uma camisa escrito 100% branco, mas também penso aqui comigo: na África existe somente uma cultura? Não será simplismo, ignorância ou meramente racismo afirmar que todo indivíduo de tez escura deve obrigatoriamente ter as mesmas crenças, os mesmos valores, enfim, a mesma cultura?

E mesmo dentro das fronteiras de um único país, é obrigatório que exista somente uma cultura? O México, por exemplo, compartilha uma vigorosa cultura dos povos ancestrais e uma herança espanhola do colonizador. A que exatamente se refere a expressão Orgulho Mexicano? Se o dito orgulho não se refere a um único país, mas a toda uma região, a expressão torna-se mais vaga ainda: o que significa Orgulho Asiático? Na Ásia só existe uma civilização? Se os europeus reconhecem múltiplas civilizações em seu continente de origem, a ponto de não possuir sentido cultural a expressão Orgulho Branco, então por que reconhecem uma única cultura em toda a Ásia? Não haveria aí uma generalização simplista de fundo racial, tipo todo indivíduo de olho amendoado é a mesma coisa?

Esse discurso racialista que permeia a época atual parece-me mais uma cortina de fumaça que impede de ver com clareza os contornos de povos, civilizações e crenças.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

O país que odeia seu passado

O incêndio que destruiu o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista não foi exatamente uma surpresa. O estado precário dos museus brasileiros é coisa antiga e bem conhecida, e só nos últimos anos já houve outros dois incêndios em São Paulo. Além do que, incêndios têm sido uma especialidade dos edifícios sob a administração da UFRJ, já houve o da antiga faculdade da Praia Vermelha, e um no próprio prédio da reitoria. Mas o bate-boca e a troca de acusações que se seguiu chamaram minha atenção. Alguns responsabilizaram o governo atual, por sua política de cortes e sua PEC que congelou gastos. Mas outros lembraram que o museu já vinha sofrendo cortes desde o segundo mandato de Dilma Rousseff, que aliás foi quem colocou Temer na vice-presidência.

Tanto os primeiros quanto os segundos estão com razão. E quando dois contentores têm razão em uma polêmica, dá para suspeitar que a verdadeira explicação é bem outra, ou como se diz, o buraco é mais embaixo.

Eu penso que deve ser reconhecido o seguinte: o Brasil é um país que odeia seu passado E consoante com esta diatribe, desdenha de tudo que remonte ao passado, seja os vestígios materiais conservados nos museus, seja a própria memória coletiva. Concomitantemente, exibe uma idolatria babosa e injustificada por seu futuro - o Brasil é o país do futuro, não é? Viva a juventude!

A expressão material deste desprezo pelo passado combinado com a celebração do futuro pode ser vista, de um lado, no estado lastimável do Museu Nacional, e do outro, no novíssimo e reluzente Museu do Amanhã, que custou aos cofres públicos muitas vezes o valor da manutenção anual do museu das velharias. Eu estive lá tem dois anos, só para conferir. Não me pareceu um museu, ou pelo menos, nada que tivesse mínimo valor científico. Era mais uma sala de exposição de artes plásticas, reverberando umas tantas platitudes e lugares-comuns do discurso globalista para "salvar o planeta". Kitsch e presunçoso, construído no auge da euforia vivida pelo estado no boom das commodities, de certa forma pressagiava a vertiginosa queda que viria em seguida, queda esta fechada com chave de ouro pelo incêndio de nosso museu mais antigo.

Mas por que odiamos tanto nosso passado? Penso que é porque fomos ensinados que nosso passado é mau. Fomos colônia, como se diz, colônia de exploração; massacramos índios, tivemos escravos, tivemos ditadura, nossos personagens históricos foram uns canalhas, etc. Enfim, nosso passado é um carma vergonhoso de que temos que nos livrar, e por isso qualquer reverência ou celebração do passado é contraproducente. Temos que olhar para o futuro, que acreditamos ser promissor, embalados por uma série de argumentos pueris, que vão desde supostas qualidades de nosso caráter até a grandeza de nossos recursos naturais. Outra vertente de nossa repulsa ao passado pode ser contemplada em nossa mania de estar sempre reformando a língua - quantas reformas ortográficas já não fizemos nos últimos 80 anos? Estamos sempre querendo expurgar de nossa cultura qualquer traço herdado da civilização do colonizador e afirmar uma brasilidade original, voltada para o futuro. Só conseguimos desorientar cada vez mais quem tenta aprender a escrever.

Odiar o passado é odiar a nós mesmos, pois bem ou mal, feio ou bonito, somos o produto de nossa História. Quem ignora o passado não pode entender o presente, e quem não entende o presente não pode moldar o futuro. Sem museus que nos mostrem a evolução das coisas, não percebemos para onde estamos indo. Sem passado, o futuro se reduz a um burburinho de ecos dos discursos da moda, um eterno presente que só faz repetir o passado que não nos preocupamos em registrar. Ironicamente, só chegaremos ao futuro que almejamos no dia em que nos reconciliarmos com nosso passado.