segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Confiança, de Fukuyama

Tenho finalmente em mãos um livro que há muito queria ler - Confiança, de Francis Fukuyama. Tive que encomenda-lo de um sebo, pois há muito não há mais edições em livrarias, já que vendeu pouco, muito menos do que O Fim da História e o Último Homem, obra que fez sucesso logo após a queda dos regimes da Cortina de Ferro, mas que é pouco citada hoje. Teve sua época, mas não foi uma grande obra: embora bem escrita, o texto me pareceu mais uma provocação, algo direcionado a suscitar questões e não a responde-las. Já Confiança é bastante superior, embora tenha feito pouco sucesso.

Aprecio Fukuyama porque ele é um dos poucos ensaístas modernos que procura explicar essa questão até hoje aberta - porque alguns países são rico e outros são pobres - penetrando fundo na cultura e na psicologia dos povos, um terreno que a maioria prefere evitar em favor do economês anódino. Tenho dele também Ficando Para Trás. Confiança é bom porque retoma o conceito de Capital Social, contraposto ao conceito de Capital Humano, este muito citado, mas que reporta aos costumes e valores, e não somente ao conhecimento adquirido. Espero que Fukuyama responda algumas dúvidas que tenho até hoje, por exemplo, que explique porque culturas tão baseadas na família, como o Japão, obtiveram resultados tão semelhantes aos de culturas onde a família tem pouca relevância nos negócios, como a Alemanha. Quanto a nós, aqui, estou convencido de que o compadrio ancestral do "homem cordial" é um dos fatores que nos mantêm no subdesenvolvimento até hoje, e creio que Fukuyama concordará comigo.

Aos poucos debaterei aqui as ideias lançadas no livro. Até a próxima!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Relatório da Comissão da Verdade

Saiu hoje o relatório da Comissão de Verdade, sem revelar muita coisa além do que já sabíamos, conforme era esperado. Serviu mais para remoer velhos sentimentos e ressentimentos, vide as lágrimas da Dilma...

Mas o período do governo militar 1964-1985, apesar de já relativamente distanciado no tempo, ainda está longe de ter uma avaliação isenta da parte dos comentaristas, mesmo daqueles que nem eram nascidos na época. Repetindo o chavão, é ferida não cicatrizada. Impressiona ver a coleção de ideias prontas e esquematismos repetidos vezes sem conta sobre aquele período. Uma boa amostra delas saiu nessa reportagem da UOL, provocativamente intitulada Você sabia que a ponte Rio Niterói e a PM são heranças da Ditadura?

A página afirma que a Polícia Militar, a corrupção, a dívida, a inflação, a educação ideológica, o aumento da desigualdade e as obras faraônicas foram um legado deste período. Nem tudo é verdade, nem tudo é mentira. Mas já que estamos em época de comissões da verdade, temos aqui uma boa oportunidade de examinar caso a caso.

Polícia Militar: falso. Já existiam polícias militares no Brasil bem antes de 1964, apenas com outros nomes (Força Pública, Brigada Militar, etc.) e subordinadas à autoridade dos estados. O que o regime militar fez foi subordinar nominalmente as polícias militares ao comando do exército, e elas passaram a ser intituladas "forças auxiliares". Entretanto, o que o governo tinha em mente era a utilização das PM´s como auxílio no combate à guerrilha. O crime comum, embora já em ascenção na época, não foi considerado questão de segurança nacional, e na prática as PM´s continuaram agindo como sempre haviam agido.

Corrupção: havia corrupção, sim. Mas não era superior à que havia hoje, mesmo porque o governo não tinha necessidade de comprar votos. O maior escândalo do período, o Escândalo da Mandioca, ocorrido no governo Figueiredo, desviou um montante minúsculo se comparado aos escândalos que vieram depois.

Dívida e inflação: verdade. Os governos militares seguiram o modelo do nacional-estatismo fundado por Vargas e Kubitchek, caracterizado pelo papel central do Estado na condução da economia e financiado pela inflação e pelo endividamento. Os governos de Vargas e Kubitchek, ao menos, não utilizaram esses dois instrumentos simultaneamente - por exemplo, nos anos JK a inflação subiu, mas o país rompeu com o FMI e o endividamento permaneceu baixo. O maior erro dos militares foi aumentar simultaneamente a inflação e o endividamento.

Educação ideológica: parcialmente verdade. Os militares incluíram no currículo as matérias de Estudos dos Problemas Brasileiros, Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e Educação Moral e Cívica. Mas isso me pareceu bastante inócuo, e até contraproducente: a democracia era louvada e o OSPB ensinava o funcionamento de um regime republicano, exatamente o contrário do que eu via o governo fazer!

Aumento da desigualdade: sofisma. A desigualdade é uma estatística que mostra a participação relativa de cada faixa de renda no bolo nacional. Durante o período a participação relativa das camadas mais pobres encolheu, e esse fato é citado maliciosamente como prova de que os ricos ficaram mais ricos à custa de tornar os pobres ainda mais pobres. Mas em termos ABSOLUTOS, tanto a renda dos ricos quanto a renda dos pobres cresceu, só que a renda dos ricos cresceu mais rápido, resultando em um aumento da participação relativa da fatia destes no bolo. A prova do aumento do nível de vida dos trabalhadores na época foi a quase ausência de operários nos movimentos guerrilheiros, via de regra siglas incipientes contando com poucas dezenas de estudantes, intelectuais,padres, ex-militares, etc.

Obras públicas: parcialmente verdade. De fato, os militares fizeram na época muitas obras faraônicas e de utilidade duvidosa, como a transamazônica. Mas quem hoje afirmaria que a ponte Rio-Niterói e a hidroelétrica de Itaipu são inutilidades?

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A quase-lógica ataca de novo: os degredados

Vi recentemente no blog de um professor um artigo interessante, que contesta um dos mais longevos e disseminados daqueles mitos sobre a História do Brasil que aprendemos na escola e repetimos pela vida afora com a convicção de quem enuncia uma verdade absoluta: O Brasil é uma terra cheia de bandidos e corruptos porque no passado fomos colonizados por degredados.

Essa assertiva quase sempre entra na discussão quando se procura explicar porque os EUA e outros países desenvolvidos que foram colônias no passado, hoje são tão ricos, ordeiros e honestos, ao passo que nós continuamos chafurdando na pobreza e na ladroagem. É nesse ponto que tocamos em outro mito escolar longevo: fomos uma "colônia de exploração", ao passo que eles foram uma "colônia de povoamento".

O artigo cita um outro artigo, este publicado na grande imprensa, da autoria de um conhecido escritor:

Foram os portugueses, porém, que disseminaram a prática da corrupção.  Diferentemente dos peregrinos ingleses que desembarcaram na América do Norte para se fixarem e construírem uma nova vida, os portugueses que vieram atrás de Cabral eram uma escória, um bando de renegados e desterrados que só queriam se aproveitar deste terreno baldio sem ninguém, para enriquecer e voltar à terrinha. Pois foram eles que se encarregaram de fiscalizar o contrabando do pau-brasil, aves, ouro e especiarias contra a Coroa Portuguesa.  Não podia dar certo.  Mas aqueles aventureiros portugueses estabeleceram um padrão de rapinagem que de lá para cá só fez se aprimorar.  Durma com uma corrupção dessas!


É bem redigido e parece até fazer lógica.  Mas é um exemplo daquilo que eu chamo de quase-lógica, uma praga que brota das salas de aula, propaga-se pela mídia e contamina o debate acadêmico até receber a chancela de verdade absoluta, tristeza de um país dividido entre iletrados e pretensos intelectuais. De fato, a presença de elementos com um histórico de má conduta social em uma comunidade contribui em algum grau para o aumento dos delitos naquela comunidade. Muitos dos primeiros capitães do Brasil deploraram a presença daqueles bandidos em suas capitanias, e escreveram cartas ao rei narrando os malfeitos que protagonizavam. Mas não é suficiente para explicar os atuais níveis de crime e de corrupção. Saindo do chute para a pesquisa séria, vê-se que o número de degredados foi relativamente pequeno entre os colonos, que a política de enviar degredados às colônias não durou tanto tempo assim, e tampouco era exclusividade de Portugal - a Inglaterra também enviou muitos degredados no início da colonização da Austrália, isso em época bem mais recente, e a Austrália hoje é um local aprazível e com baixos índices de crime e corrupção.

Como tampouco tem grande significado a dicotomia Colônia de Povoamento X Colônia de Exploração. Os conceitos são auto-explicativos, mas não explicam o que pretendem. O Brasil também foi uma colônia de povoamento. Ou alguém acredita que os únicos portugueses que aportavam aqui eram fidalgos que vinham assumir cargos públicos e tomar posse de sesmarias? Esses vieram, mas junto com eles também vieram milhares de colonos despossuídos, alguns talvez sonhando em fazer fortuna rápido e voltar à terra natal, mas a maioria, decerto, ciente de que jamais regressariam, mesmo porque tinham o exemplo de outros que haviam partido antes deles e não regressaram. O epíteto colônia de exploração, a meu ver, se aplica a ex-colônias como a Índia e a Indonésia, onde já existia uma população nativa e o colonizador só se fazia presente transitoriamente como funcionário da administração ou homem de negócios. Do mesmo modo, os EUA também foram uma colônia de exploração: o sul foi dedicado a monocultoras de exportação trabalhadas por mão-de-obra escrava, tal como sucedeu no Brasil. E até o século 18 pelo menos, em termos puramente econômicos, o sul foi mais importante do que o norte habitado por camponeses pobres que trabalhavam a terra pessoalmente. Então, a explicação para a grande discrepância quanto aos níveis de riqueza  & corrupção entre nós e os EUA tem uma explicação diferente.

Mas qual explicação? Serão os anglo-saxônicos inerentemente mais honestos que os ibéricos? É verdade que Portugal e Espanha no século 16 não eram nenhum modelo de moralidade pública. Mas tampouco a Inglaterra o era: até o século 18, o dito popular "é como encontrar um homem honesto no parlamento" equivalia ao nosso "é como encontrar agulha no palheiro". A meu ver, a moralidade pública nasce da sociedade civil e propaga-se à esfera pública, e não o oposto. Sem grandes floreios retóricos, eu penso que a real explicação é mais prosaica: No Brasil, o Estado se formou antes da sociedade civil, ao passo que nos EUA, estado e sociedade civil formaram-se juntos. O colono que aportava aqui, já encontrava uma administração pronta e funcionando nos mesmos moldes que funcionava em Portugal, e sabia que tinha que buscar a proteção desses homens de gabinete se quisesse prosperar, ou mesmo sobreviver na nova terra. Estabeleceu-se então uma relação de dependência do privado para com o público, que de geração em geração chegou até aos dias atuais. Fica flagrante quando se vê que o sonho de todo jovem recém-formado não é fundar seu próprio negócio, mas passar em algum concurso, e a fórmula do sucesso das empresas não é a competência nos negócios, mas as ligações com os políticos. A honestidade nos negócios é estabelecida, a meu ver, nas mediações da vida diária, no preço que se paga por ser desonesto em termos de perda de confiança. Isso só acontece dentro da sociedade civil, pois o Estado, como no tempo dos degredados, tudo o que pode fazer é mandar para a cadeia. Penso que quando a sociedade civil começar a se tornar mais importante do que o Estado, e o mercado se tornar mais importante do que o círculo dos amigos-do-rei, começaremos a ser mais honestos.