quarta-feira, 23 de abril de 2014

Agora, ao menos os mortos têm nome

A recente morte do dançarino do morro do Pavão-Pavãozinho, ao que tudo indica assassinado por policiais, levantou mais uma vez as diatribes contra as UPP´s nas mídias virtuais. Acusam as UPP´s, além de cometerem abusos, de não estarem cumprindo seu suposto papel "social":

"...é que a contrapartida em aumento da oferta de serviços e infraestrutura para as áreas pacificadas não acontece no ritmo necessário, as novas vagas em creches e escolas, as novas unidades de saúde, as obras de saneamento e mobilidade que deveriam acompanhar as UPPs, ainda estão no papel"

" A violência do soldado nas vielas reflete não seu treinamento na corporação, mas o discurso virulento de extrema direita e discriminatório contra pobres e favelados, amplamente difundido na mídia e a política ?higienista? de ?limpeza urbana? para os grandes eventos de nossos governantes, bem como a falta de disposição de negociar dos mesmos com os movimentos sociais e a truculência com que trataram as manifestações populares"

A discussão completa pode ser encontrada no Centro de Mídia Independente:

http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2014/04/530956.shtml

Deixo aqui minha opinião:

UPP´s não são solução mágica, mas também é sandice afirmar que são inúteis. Se fossem, não haveria tanta gente fazendo campanha contra.

O caso é que as UPP´s se tornaram peça de propaganda eleitoral. É nesse ponto que entra um velho equívoco mais uma vez endossado pelo autor do post. É claro que essas obras são necessárias. Só que isso tudo não têm nada a ver com a violência e o crime. Julgar o contrário revela uma insistência, ou obsessão, em ver no crime um ato político: os favelados cometem crimes porque estão descontentes com a falta de creches, de saneamento de transportes; se o governo instalasse manilhas de esgoto e abrisse mais vagas em creches, os favelados supostamente deixariam de assaltar e de traficar drogas...
É nesse contexto que a violência policial se mistura ao espetaculoso: as favelas são servidas por cintilantes teleféricos. Qualquer um aqui sabe que teleféricos são para turismo, e não para transporte de massa; levam poucos passageiros e sua manutenção é cara e complicada. Mas são mais vistosos do que creches, sem dúvida...

Mas o problema, como eu já afirmei, é que as UPP´s se tornaram peça de propaganda eleitoral, então o governo não pode voltar atrás, ou ficaria desmoralizado. Só pode ir adiante. Fazer o que, então? Impingir à força policial um comportamento ético irretocável e um respeito absoluto aos direitos humanos, como sugeriu o autor do post? Todos sabem que nossa polícia não é assim, e uma tal lavagem cerebral de uma hora para outra é coisa do reino da fantasia. Outro equívoco repetido pelo autor do post é afirmar que a polícia age assim porque reflete o discurso de extrema direita discriminatório e higienista de nossa elite dominante. Isso é bobagem. O nosso policial vem do mesmo ambiente pobre povoado pelos marginais que combate, ele não tem nenhum motivo psicológico para se identificar com uma elite rica que nutre preconceitos contra os pobres. Veja o caso recente o dançarino assassinado: está ficando claro que tudo se originou de uma querela pessoal entre a vítima e um policial da UPP, por causa de uma motocicleta. A polícia age dessa forma por motivos pessoais, ela não está a serviço de nenhuma burguesia, e é tão bruta e ignorante quanto a maioria dos favelados.

Se as UPP´s estão brutalizando a população das favelas, isso, grosso modo, quer dizer que a polícia está trabalhando. Ela não sabe trabalhar de outra maneira. E está incomodando, sim, a inocentes, mas também a culpados. Retirar as UPP´s dos morros só fará voltar as favelas ao controle das milícias, que fazem exatamente o que as UPP´s estão fazendo, mas com duas diferenças: violência muito maior e cobertura da mídia muito menor. Antes, só víamos os cadáveres calcinados nos lixões. Agora, pelo menos, os mortos têm nomes.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Morreu, virou santo

Está sendo muito comentada a morte recente do escritor Gabriel Garcia Marquez, velho ídolo das esquerdas latino-americanas. É sempre assim: morreu, virou santo. Mas esse já era santo em vida. Era prolixo e tinha um estilo hermético, pouco inteligível, para não dizer incrivelmente chato. Mas como era de esquerda, não podemos dizer isso: se não compreendemos o que ele escrevia, então os burros somos nós, e não ele.

Eu me lembro de uma história que era muito contada nos anos sessenta, quando o pessoal engajado se reunia no cinema Paissandu para ver filmes "cabeça". Em determinada sessão de um filme do Godard, o projetista se equivocou e trocou os rolos do filme, fazendo a história ficar toda destrambelhada, com personagens que já tinham morrido reaparecendo, etc. Pois o pessoal não só não reparou, como ainda fez toda uma análise em cima da suposta narrativa não-linear em flashback do mestre...

Eu sempre achei que essa história era uma piada, mas quanto mais conheço os intelectuais esquerdistas, mais me convenço de que é verdade.

domingo, 13 de abril de 2014

O Balanço de 1964

Passada a onda de revisionismo dos cinquenta anos do movimento de1964, que uns chamam de golpe e outros de revolução, chamou-me a atenção, além da própria intensidade das discussões, a repetição de um sem-número de falácias acerca do evento, as quais tenho ouvido desde muito, tanto da turma dos apoiadores quanto da turma dos detratores. Agora que o bate-boca finalmente está esfriando, é um bom momento para enumera-las e decifra-las uma a uma. Vamos lá!


1)      O movimento foi fomentado pelos EUA.
Todos sabem muito bem que nos tempos da guerra fria, tanto os EUA quanto a ex-URSS e seus satélites intervinham ostensivamente em todos os lugares onde houvesse um movimento comunista efetivo ou potencial. No Brasil não foi diferente. É perfeitamente sabido que os EUA injetaram muito dinheiro nos partidos e organizações anti-Goulart. Mas o que até hoje causa realmente frisson na galera é a Operação Brother Sam, o envio da 4ª frota americana para apoiar os revoltosos. Fico impressionado como tantos a denunciam à boca pequena, como se tratasse de um segredo sujo. Mas eu me lembro muito bem: após 12 anos, em obediência ao regulamento da CIA, o documento foi desclassificado e publicado na imprensa. Foi em 1976. E saiu tudo lá: a 4ª frota americana fez um passeio, e no quinto dia, sem haver sequer chegado perto da costa brasileira, fez meia-volta e retornou, pois nenhum apoio era mais necessário. Estava inicialmente autorizada a somente enviar combustível aos revoltosos. O que aconteceria depois, caso Goulart resistisse? Haveria um desembarque? Bom, isso já é futurologia.
 

2)      Os comunistas estavam prestes a tomar o poder.
Não estavam, e isso ficou patente na ausência total de resistência, quando se dizia que Goulart tinha um formidável “dispositivo militar”. O poder dos comunistas foi grandemente superestimado, tanto por seus inimigos, o que era do interesse dos mesmos, mas também pelos próprios comunistas, o que foi desastroso para eles. Exatamente como já havia sido em 1935. Dizia-se que Goulart estava cercado de comunistas. Na realidade, os comunistas que cercavam Goulart eram os mesmos que antes cercaram Vargas e Kubitschek, a diferença foi que Vargas e Kubitschek puseram-se os comunistas a seu serviço, enquanto Goulart foi posto a serviço dos comunistas.
 

3)      Não havia guerrilha em 1964, e esta só surgiu depois do AI-5, como resistência à ditadura.
Muita gente acreditou isso, mas foi o insuspeito Jacob Gorender quem tratou de desmenti-lo em definitivo, em seu clássico Combate Nas Trevas: os primeiros grupos das Ligas Camponesas foram enviados para fazer curso de guerrilha em 1962, dois anos antes do golpe. É curioso afirmar que os guerrilheiros pós-AI-5 tinham como objetivo restabelecer a democracia, pois nenhum manifesto lançado por eles exigia a restauração da constituição de 1946 ou a volta do ex-presidente Goulart. Mesmo porque, na retórica dos guerrilheiros, o regime que havia aqui antes de 1964 não era democrático, mas tratava-se de uma “democracia burguesa” que devia ser derrubada e substituída por conselhos populares. Dizer como seria o regime instalado pelos guerrilheiros caso fossem vitoriosos é futurologia, mas tudo indica que seria inspirado pelo modelo cubano, que inspirava dez entre dez revolucionários sul-americanos na época. A esquerda só conformou-se à dita democracia burguesa após a anistia.
 

4)      Os revolucionários de 1964 não queriam o poder, mas apenas a restauração da ordem.
É mentira. Havia uma conspiração articulada desde a época do suicídio de Vargas, e esse esquema reunia essencialmente políticos udenistas com militares da ESG. Havia o consenso de que, pela via eleitoral, eles não chegariam ao poder, então aguardavam uma revolução providencial. Antes já haviam tentado impedir a posse de Juscelino e do próprio Goulart. Como se sabe, as coisas não saíram bem como planejado, e a maior parte dos conspiradores da época foi expurgada no momento em que supunham estar chegando ao poder.
 

5)      O dito Milagre Brasileiro foi uma época de extremo sofrimento para os trabalhadores, pois foi conseguido à custa da concentração de renda.
É uma interpretação maliciosa da realidade econômica e social da época, que procura passar a ideia de que os mais ricos enriqueceram à custa de empobrecer os mais pobres, como se estivessem subtraindo a renda destes. Houve de fato um aumento na concentração de renda. Mas a concentração de renda é nada mais que uma estatística que informa qual percentual da população detém qual percentual da renda nacional. A porção mais rica prosperou mais rápido que a porção mais pobre, daí haver aumentado sua participação na renda, em termos relativos. Mas em termos absolutos, tanto a renda dos mais pobres quanto a renda dos mais ricos subiu, e para quem é pobre, evidentemente o que importa não é o relativo, mas o absoluto. A prova disto foi a notória ausência de elementos das classes populares nos movimentos guerrilheiros, que contavam quase que exclusivamente com intelectuais, egressos do movimento estudantil, ex-militares e religiosos. Por este motivo mesmo os grupos guerrilheiros foram incipientes, e a própria dispersão das siglas – VPR, PCR, VAR, COLINA, MR-8, PCO, etc. - é uma evidência disto.
 

6)      Os governos militares foram entreguistas e submissos aos EUA
Uns mais, outros menos. De maneira geral, os militares deram prosseguimento ao modelo do nacional-estatismo que vinha desde os anos trinta, que preconizava forte presença do Estado na economia. Durante os quatro governos militares, a aplicação deste modelo oscilou entre sua vertente nacionalista (Vargas, Geisel) e sua vertente dita entreguista (Kubitschek, Castelo).
 

7)      O regime militar introduziu a tortura no Brasil
Já havia tortura antes, e continuou a existir depois. Mas era tortura a presos comuns, marginaizinhos pé-rapados, e esse fato não despertava comoção. O choque causado pela tortura durante o regime militar deveu-se sobretudo ao fato desta ser aplicada a jovens da classe média, indivíduos que, de acordo com a crença geral, não deveriam sofrer este tratamento.

 
8)      Havia menos corrupção / Havia mais corrupção na época
Os defensores do regime de 1964 afirmam que havia menos corrupção naquele tempo, e os detratores afirmam que havia muito mais, mas a censura não deixava a população saber. É evidente que havia corrupção naquele tempo, mas não é razoável supor que algum grande escândalo tenha permanecido oculto até hoje, tantas décadas após o fim da censura. A verdade é que a própria estrutura autoritária do regime tornava desnecessário maiores barganhas e compras de voto de parlamentares.

sábado, 5 de abril de 2014

Fascismo à brasileira?

Comentando o texto abaixo postado, que me foi enviado por um correspondente, achei que tinha altos e baixos. O autor tem conhecimento exato de alguns fatos históricos referentes ao fascismo, mas insiste em encaixá-los nos chavões mais recorrentes do momento.

Em primeiro lugar, eu concordo que no momento atual, no Brasil, está havendo uma certa aproximação, fenômeno aliás sem precedentes na história recente, de parte das classes média e alta com ideais semelhantes aos que formaram o caldeirão social do fascismo no início do século 20. Isso é notado no aplauso recebido por certar produções como o Tropa de Elite, e no aplauso recebido por certos episódios da vida real, como a ação dos "vigilantes" contra os pivetes e os comentários da Rachel Sheherazade. Vou retomar este tema mais adiante. Primeiro vou falar das colocações que achei errôneas.

Não concordo que historicamente a adesão inicial ao fascismo tenha sido um fenômeno típico das classes dominantes desesperadas e das classes médias empobrecidas. Isso está inclusive em contradição com outras colocações do autor do texto, pois no momento atual, as classes dominantes NÃO estão desesperadas e as classes médias NÃO estão empobrecidas. Quem conhece a História sabe que o fascismo surgiu nas massas e não nas elites, como um contraponto ao comunismo, tanto o primeiro quanto o segundo derivados do positivismo do século 19, que por sua vez foi a primeira doutrina de engenharia social da História. Fascismo e comunismo disputaram o mesmo público de operários, intelectuais e indivíduos desajustados de toda a ordem, enquanto as classes alta e média conservadoras permaneciam alinhadas ao que sobrara dos partidos liberais. O próprio autor do post reconhece isto sub-repticiamente ao comentar a ascensão do nazismo no início dos anos trinta, quando houve um enorme ganho de votos para o partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Esta virada ocorreu porque os eleitores comunistas começaram a migrar em massa para o partido nazista, desequilibrando a balança e tornando o partido social-democrata minoritário. A adesão das classes alta e média se deu posteriormente, uma vez que esses indivíduos constataram a falência dos partidos liberais, e de fato preferiam o fascismo ao comunismo. Isto porque o fascismo, ao menos, não abolia formalmente a propriedade privada dos meios de produção, embora invertesse a relação antes prevalente entre política e capital: nos antigos regimes liberais, os burgueses comandavam o governo; sob o regime fascista, é o governo que comanda a burguesia (na realidade, o fascismo cria uma burguesia para seu uso, favorecendo os empresários amigos e enriquecendo os seus próceres, ao mesmo tempo em que persegue e expropria os burgueses não cooptados).

Mas concordo com o autor quando ele lembra que a adesão ao fascismo da parte de indivíduos antes não seduzidos por esta doutrina é causada pelo desencanto com a situação presente e a constatação de que os governos em exercício são incapazes de superar as crises. Isso está efetivamente ocorrendo no Brasil. A classe média tinha grandes esperanças no PT, julgando que este partido moralizaria a política brasileira, e experimentou grande desilusão ao ver o PT protagonizar escândalos de corrupção e aliar-se a políticos notoriamente reacionários e corruptos. Decepcionou-se igualmente ao ver que o PT não dava prioridade à educação nem à segurança pública, ao contrário, cortejava ignorantes e marginais, estes apresentados como emblemáticos da autenticidade popular contraposta à elite arrogante supostamente encarnada pela classe média. Sobretudo o problema da segurança é especialmente sensível para a classe média, assustada pelo crime e cansada de ver as ilegalidades cometidas pelos favelados sendo toleradas por governantes e urbanistas. São esta as efetivas causas da aproximação da classe média com ideologias de ruptura, e não o sentimento pueril de "declassément" só porque os pobres agora são vistos circulando em ambientes antes exclusivos aos ricos.

Texto sobre o fascismo

Volta e meia volta a onda de que o Brasil estaria entrando em um processo de "fascistização", seja lá o que for o que isto quer dizer. Um correspondente me enviou o texto abaixo, que reproduzo antes de comentá-lo na postagem acima:


Fascismo à Brasileira


Parece crescente e cada vez mais evidente no Brasil que importantes setores da classe média e classe alta simpatizam com ideais semelhantes aos que formaram o caldeirão social do fascismo


Historicamente a adesão inicial ao fascismo foi um fenômeno típico das classes dominantes desesperadas e das classes médias empobrecidas e apenas pontualmente conquistou os estratos mais baixos da sociedade, ideologicamente dominados pelo trabalhismo social-democrata ou pelo comunismo. Nos mais diversos cantos do mundo, dos nazistas na Alemanha e camisas-negras na Itália, aos integralistas brasileiros e caudilhistas espanhóis seguidores de Franco, as classes médias, empobrecidas pelas sucessivas crises do pós-guerra (1921 e especialmente 1929), formaram o núcleo duro dos movimentos fascistas.

Esse alinhamento ao fascismo teve como fundo principal uma profunda descrença na política, no jogo de alianças e negociatas da democracia liberal e na sua incapacidade de solucionar as crises agudas que seguiam ao longo dos anos 1910, 20 e 30. Enquanto as democracias liberais estavam estáveis e em situação econômica favorável, com certo nível de emprego e renda, os movimentos fascistas foram minguados e pontuais, muito fracos em termos de adesão se comparados aos movimentos comunistas da mesma época. Porém, uma vez que a democracia liberal e sua ortodoxia econômica mostraram uma gritante fraqueza e falta de decisão diante do aprofundamento da crise econômica nos anos 1920 e 30, a população se radicalizou e clamou por mudanças e ação.

Lembremos que, quando os nazistas foram eleitos em 1932, a votação foi bastante radical se comparada aos pleitos anteriores; 85% dos votos dos eleitores alemães foram para partidos até então considerados mais radicais, a saber, Socialistas (social-democracia), Comunistas e Nazistas (nacional-socialistas), os dois primeiros à esquerda e o último à direita. Os conservadores ortodoxos, anteriormente no poder, estavam perdidos em seu continuísmo e indecisão, sem saber o que fazer da economia e às vezes até piorando a situação, como foi o caso da Áustria até 1938, completamente estagnada e sem soluções para sair da crise e do desemprego, refém da ortodoxia de pensadores da escola austríaca, tornando-se terreno fértil para o radicalismo nazista (que havia fracassado em 1934).

Além disso, o fascismo se apresentava como profundamente anticomunista, o que, do ponto de vista das classes dominantes mais abastadas e classes médias mais estáveis (proprietárias) menos afetadas pelas crises, era uma salvaguarda ideológica, pois o “Perigo Vermelho”, isto é, o medo de que os comunistas poderiam de fato tomar o poder, era um temor bastante real que a democracia liberal parecia incapaz de “resolver” pelos seus tradicionais métodos, especialmente após a crise de 1929. O fascismo desta maneira se apresentou como último refúgio dos conservadores (sejam de classe média ou da elite) contra o socialismo. Os intelectuais que influenciavam os setores sociais menos simpáticos ao fascismo, o viam como um mal menor “temporário” para proteger a “boa sociedade” das “barbáries socialistas”, como o guru liberal Ludwig von Mises colocou, reconhecendo a fraqueza da democracia liberal face ao “problema comunista”:

 

Não pode ser negado que o Fascismo e movimentos similares que miram no estabelecimento de ditaduras estão cheios das melhores intenções e que suas intervenções, no momento, salvaram a civilização européia. O mérito que o Fascismo ganhou por isso viverá eternamente na história. Mas apesar de sua política ter trazido salvação para o momento, não é do tipo que pode trazer sucesso contínuo. Fascismo é uma mudança de emergência. Ver como algo mais que isso, seria um erro fatal. (L. von Mises, Liberalism, 1985[1927], Cap. 1, p. 47)

Além da descrença na política tradicional e do temor do perigo vermelho num cenário de crise, houve ainda uma razão fundamental para as classes médias adentrarem as fileiras do fascismo: o medo do empobrecimento e a perda do status social.

Esse sentimento – chamado de declassemént ou declassê no aportuguesado, algo como ”deixar de ser alguém de classe” – remetia ao medo de se proletarizar e viver a vida miserável que os trabalhadores, maior parte da população, viviam naquela época. Geralmente associava-se ao receio de que o prestígio social ou o reconhecimento social por sua posição econômica esmorecessem, mesmo para pequenos proprietários e profissionais liberais sem títulos de nobreza (ver Norbet Elias, Os Alemães). Esse medo entra ainda no contexto de uma evidente rejeição republicana, uma reação conservadora do etos nobiliárquico que dominava as classes altas e parte das classes médias urbanas nos países fascistas, à consolidação dos ideais liberais (mais igualitários) na estrutura social de poder e de privilégios, isto é, na tradição social aristocrática. Não foi por acaso que o fascismo foi uma força política exatamente onde os ideais liberais jamais haviam se arraigado, como Itália, Espanha, Portugal, Alemanha e Brasil.

Por fim, cumpre lembrar que os fascistas apelam à violência como forma de ação política. Como disse Mussolini: “Apenas a guerra eleva a energia humana a sua mais alta tensão e coloca o selo de nobreza nas pessoas que têm a coragem de fazê-la” (Doutrina do Fascismo, 1932, p. 7). A perseguição sem julgamento, campos de trabalho e autoritarismo não só vieram na prática muito antes do genocídio e da guerra, mas também já estavam em suas palavras muito antes de acontecerem. No discurso e na prática, a sociedade é (ou destina-se) apenas para aqueles que o fascista identifica como adequados; há um evidente elitismo e senso de pertencimento “correto” e “verdadeiro”, seja uma concepção de nação ou de identidade de raça ou grupo. E essa identidade “verdadeira” será estabelecida à força se preciso.

Mas porque estamos falando disso?

Parece crescente e cada vez mais evidente no Brasil que importantes setores da classe média e classe alta simpatizam com ideais semelhantes  aos que formaram o caldeirão social do fascismo?

rolezinho shopping facismo brasil

Vimos em texto recente que a sociedade brasileira, em particular a classe média tradicional e a elite, carrega fortes sentimentos anti-republicanos (ou anticonstitucionais), herdados de nossa sucessão de classes dominantes sem conflito e mudança estrutural, sem qualquer alteração substancial de sua posição material e política, perpetuando suas crenças e cultura de Antigo Regime. Privilégios conquistados por herança ou “na amizade”, contatos pessoais, indicações, nepotismos, fiscalização seletiva e personalista; são todas marcas tradicionais de nossa cultura política. A lei aqui “não pega”, do mesmo jeito que para nazistas a palavra pessoal era mais importante que a lei. Há um paralelo assustador entre a teoria do fuhrerprinzip e a prática da pequena autoridade coronelista, à revelia da lei escrita, presente no Brasil.

Talvez por isso, também tenhamos, como a base social do fascismo de antigamente, uma profunda descrença na política e nos políticos. Enojada pelo jogo sujo da política tradicional, das trocas de favores entre empresas e políticos, como o caso do Trensalão ou entre políticos e políticos, como os casos dos mensalões nos mais variados partidos, a classe média tradicional brasileira se ilude com aventuras políticas onde a política parece ausente, como no governo militar ou na tecnocracia de governos de técnicos administrativos neoliberais. Ambos altamente políticos, com sua agenda definida, seus interesses de classe e poder, igualmente corruptos e escusos, mas suficientemente mascarados em discursos apolíticos e propaganda, seja pelo tecnicismo neoliberal ou pelo nacionalismo vazio dos protofascistas de 1964, levando incautos e ingênuos a segui-los como “nova política” messiânica que vai limpar tudo que havia de ruim anteriormente

 

 

 

Por sua vez, como terceiro ponto em comum, partes das classes médias tradicionais e a elite tem um ódio encarnado de “comunistas”, e basta ler os “bastiões intelectuais” da elite brasileira, como Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino ou Olavo de Carvalho ou mesmo porta-vozes do soft power do neoconservadorismo brasileiro, como Lobão e Rachel Sherazade. É curioso que o mais radical deles, Olavo de Carvalho, enxergue “marxismo cultural” em gente como George Soros (mega-especulador capitalista), associando-o ao movimento comunista internacional para subjugar o mundo cristão ocidental. Esse argumento em essência é basicamente o mesmo de Adolf Hitler: o marxismo e o capital financeiro internacional estão combinados para destruir a nação alemã (Mein Kampf, 2001[1925], p. 160, 176 e 181).

A violência fascista, por sua vez, é apresentada na escalada de repressão punitivista e repressora do Estado, apesar de – ainda – ser menos brutal que o culto à guerra dos fascistas dos anos 1920 e 30. Antes restritos apenas aos programas sensacionalistas de tv sobre violência urbana e aos apologistas da ditadura como Jair Bolsonaro, o discurso violento proto-fascista “bandido bom é bandido morto”, que clama por uma escalada de repressão punitiva, sai do campo tradicionalmente duro da extrema direita e se alinha ao pensamento de economistas liberais neoconservadores que consideram que “o criminoso faz um cálculo antes de cometer seu crime, então é o caso de elevar constantemente o preço do crime (penas intermináveis, assédio, execuções), na esperança de levar aqueles que sentirem tentados à conclusão de que o crime já não compensa” (Serge Hamili, 2013). Assim, a apologia repressora se alinha à lógica do punitivismo mercantil de apologistas do mercado, mimetizando um Chile de Pinochet onde um duríssimo estado repressor, anticomunista, está alinhado com o discurso  neoliberal mais radical.

Rachel Sheherazade direita classe média

Rachel Sheherazade

 

 

E, ainda, somam-se a isso tudo o classismo e o racismo elitista evidentes de nossa “alta” sociedade. Da “gente diferenciada” que não pode frequentar Higienópolis, passando pelo humor rasteiro de um Gentili, ou o explícito e constrangedor classismo de Rachel Sherazade, que se assemelha à “pioneira revolta” de Luiz Carlos Prates ao constatar que “qualquer miserável pode ter um carro”, culminando com o mais vergonhoso atraso de Rodrigo Constantino em sua recente coluna, mostrando que nossos liberais estão mais inspirados por Arthur de Gobineau e Herbert Spencer do que Adam Smith ou Thomas Jefferson. A elite e a classe média tradicional (que segue o etos da primeira), não têm mais vergonha de expor sua crença no direito natural de governar e dominar os pobres, no “mandato histórico” da aristocracia sobre a patuléia brasileira. O darwinismo social vai deixando o submundo envergonhado da extrema direita para entrar nos nossos televisores diariamente.

Assim, com uma profunda descrença na política tradicional e no parlamento, somada a um anti-republicanismo dos privilégios de classe e herança, temperados por um anticomunismo irracional sob auspícios de um darwinismo social histórico e latente, aliado a uma escalada punitivista alinhada a “ciência” econômica neoliberal, temos uma receita perigosa para um neofascismo à brasileira. Porém, antes que corramos para as montanhas, falta um elemento fundamental para que esse caldeirão social desemboque em prática neofascista real: crise econômica profunda.

Apesar do terrorismo midiático, nossa sociedade não está em crise econômica grave que justifique esta radicalização filo-fascista recente. Pela primeira vez em décadas, o país vive certo otimismo econômico e, enquanto no final dos anos 1990, um em cada cinco brasileiros estava abaixo da linha da pobreza, hoje este número é um em cada 11. A Petrobrás não só não vai quebrar como captou bilhões recentemente. A classe média nunca viajou, gastou no exterior e comprou tanto quanto hoje, nem mesmo no auge insano do Real valendo 0,52 centavos de dólar. O otimismo brasileiro está muito acima da média mundial, mesmo que abaixo das taxas dos anos anteriores.

No entanto, apesar de tudo isso, parte das antigas classes médias e elites continuam se radicalizando à extrema direita, dando seguidos exemplos de racismo, intolerância, elitismo, suporte ao punitivismo sanguinário das polícias militares, aplaudindo a repressão a manifestações e indiferentes a pobres sendo presos por serem pobres e negros em shopping centers. Isso tudo com aquela saudade da ditadura permeando todo o discurso. Se não há o evidente declassmént, o empobrecimento econômico, ou mesmo um medo real do mesmo, como explicar esta radicalização protofascista?

Não é possível que apenas o tradicional anti-republicanismo, o conservadorismo anti-esquerdista e o senso de superioridade de nossas elites e classes médias tradicionais sejam suficientes para esta radicalização, pois estes fatores já existiam antes e não desencadeavam tamanha excrescência fascistóide pública.

Não.

O Brasil vive um fenômeno estranho. As classes médias tradicionais e elite estão gradualmente se radicalizando à extrema direita muito mais por uma sensação de declassmént do que por uma proletarização de fato, causada por alguma crise econômica. Esta sensação vem, não do empobrecimento das classes médias tradicionais (longe disso), mas por uma ascensão econômica das classes historicamente subalternas. Uma ascensão visível.

Seja quando pobres compram carros com prestações a perder de vista; frequentam universidades antes dominadas majoritariamente por ricos brancos; ou jovens “diferenciados” e barulhentos frequentam shoppings de classe média, mesmo que seja para olhar a “ostentação”; ou ainda famílias antes excluídas lotando aeroportos para visitar parentes em toda parte.

Nossa elite e antiga classe média cultivaram por tanto tempo a sua pretensa superioridade cultural e evidente superioridade econômica, seu sangue-azul e posição social histórica; a sua situação material foi por tanto tão sem paralelo num dos mais desiguais países do mundo, que a mera percepção de que um anteriormente pobre pode ter hábitos de consumo e culturais similares aos dela, gera um asco e uma rejeição tremenda. Estes setores tradicionais, tão conservadores que são, tão elitistas e mal acostumados que são, rejeitam em tal grau as classes historicamente humilhadas e excluídas, “a gente diferenciada” que deveria ter como destino apenas à resignação subalterna (“o seu lugar”), que a ascensão destes “inferiores” faz aflorar todo o ranço elitista que permanecia oculto ou disfarçado em anti-esquerdismo ou em valores familiares conservadores. Não há mais máscara, a elite e a classe média tradicional estão mais e mais fazendo coro com os históricos setores neofascistas, racistas e pró-ditadura. Elas temem não o seu empobrecimento de fato, mas a perda de sua posição social histórica e, talvez no fundo, a antiga classe média teme constatar que sempre foi pobre em relação à elite que bajula, e enquanto havia miseráveis a perder de vista, sua impotência política e vazio social, eram ao menos suportáveis.

*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico. (riorevolta@gmail.com)

Texto revisado por Carolina Dias

REFERÊNCIAS GERAIS:

ELIAS, Norbert. Os Alemães. Rio de Janeiro: Zahar, 1996

HAMILI, Serge. O laissez faire é libertário?. IN: Le Monde Diplomatique Brasil, número 71, 2013.

HITLER, Adolf. Mein Kampf. São Paulo: Centauro, 1925

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Cia das Letras,1996

MISES, Ludwig von. Liberalism.Irvington.The Foundation for Economic Education, 1985

MUSSOLINI, Benito. Doctrine of Fascism. Online World Future Fund. 1932

POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. Porto: Portucalense, 1972

SCHMIT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006

 

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Em referência ao 31 de março...

Nestes 50 anos do golpe (ou revolução) de 1964, com tanto eco na mídia, na mídia e nos forums, tanto bate-boca e tão poucas conclusões, resolvi também dar meu pitaco. Aí ao lado está um novo ensaio, intitulado Golpe Ou Revolução, onde eu procuro sobretudo entender o que aconteceu naquele distante ano de 1964, sem repetir opiniões que já dei. Comentários serão bem-vindos. Grande abraço a todos!