sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Colonialismo Britânico e Ibérico

Uma das teses mais repetidas em minha geração foi a explicação da diferença econômica entre a América do Sul e a América do Norte: eles foram uma "colônia de povoamento", e nós fomos uma "colônia de exploração". Penso que todo o mundo que estudou comigo já ouviu isso de professores de história e geografia, e provavelmente aceitou como verdade cristalina.

As definições são autoexplicativas. Nós somos pobres porque o projeto do colonizador era apenas explorar, e não construir. Já nas colônias do norte, o propósito era povoar e construir países. Ponto. Mas o caráter raso dessas definições também fica evidente à mínima abordagem. Se não houve povoamento aqui, então de onde veio a nossa população?

Colocado assim, fica parecendo que o Brasil foi como a Índia colonizada por britânicos, ou a Indonésia colonizada por holandeses, onde já havia uma população autóctone e a presença do colonizador deu-se apenas na forma de um pequeno estrato de funcionários governamentais, técnicos e homens de negócio, que não fixaram residência definitiva. Mas é óbvio que esse não é o nosso caso. A grande maioria de nossa população descende de povoadores vindos de várias partes. Não eram apenas fidalgos que chegaram para tomar posse de cargos públicos ou sesmaria, junto deles vieram milhares de colonos despossuídos; fomos, sim, também uma colônia de povoamento. Então, se hoje somos pobres e eles são ricos, a explicação deve ser outra.

Um outro paradigma, então, foi urdido: teria havido um projeto colonial "bom", o britânico, que foi bem sucedido, e um projeto colonial "mau", o ibérico, que fracassou. O projeto ibérico era baseado em trabalho escravo, religiosidade obscurantista e governo absolutista, o projeto britânico era baseado em um ideal de liberdade e empreendorismo. Assim, o continente americano foi dividido entre os herdeiros de um projeto bem sucedido e um projeto fracassado. A dicotomia Norte X Sul aprofundou-se a ponto de implantar no imaginário coletivo a noção de duas civilizações distintas e descorrelatadas, sendo que apenas a América do Norte pertenceria ao Mundo Ocidental, e dentro dela os EUA ocuparia um papel a parte em razão de seu excepcionalismo e características únicas. A crença nesse excepcionalismo americano é arraigada tanto dentro quanto fora dos EUA, e um bom exemplo pode ser encontrado nesse artigo, onde um comentarista observa: "Os EUA foram a única nação fundada sobre um credo". Uma abordagem racial dessa dicotomia também implantou no imaginário coletivo a visão dos EUA como um mundo branco, enquanto o sul seria um mundo negro-latino, aqui entendido "latino" como a definição de uma raça sul-americana supostamente autóctone.
Mas quais são os limites deste modelo entre uma realidade política, econômica e antropológica, e aquilo que os americanos chamam um "wishful thinking", uma ideia que é agradável considerar verdade?

Penso que nunca houve, de fato, um projeto colonial "britânico" e outro "ibérico", pois de fato ambos coexistiram em várias regiões do Novo Mundo, praticados por várias potências colonialistas. O projeto "ibérico", baseado em trabalho escravo para monoculturas e mineração, é característico do sistema econômico denominado mercantilismo, que predominou entre os séculos 15 e 18, antes de ser substituído pelo capitalismo moderno (que aliás ensejaria um novo projeto colonial da parte das potências industriais, já no século 19, mas deste não fizemos parte). Foi praticado por Portugal e Espanha em todos os seus domínios, mas não só por eles. Também foi praticado pelos ingleses no sul dos EUA e em algumas regiões do Caribe, onde também foram estabelecidas colônias francesas e holandesas praticantes do mesmo sistema escravocrata. O sul dos EUA, após uma guerra que forçou sua reinclusão na União, também teve forçada sua inclusão no modelo econômico industrial e desenvolvido, mas acaso são países desenvolvidos hoje Haiti, Belize, Jamaica, Guiana Francesa e as ex-Guianas Inglesa e Holandesa?

Se a explicação não está no modelo econômico do colonialismo, então deve estar na sua qualidade. Os países hoje desenvolvidos foram povoados por colonos brancos puritanos, que traziam consigo um ideal e valores que favoreciam a liberdade e o progresso; os países do sul tiveram povoadores não-brancos e católicos, que traziam uma mentalidade de autocracia e obscurantismo religioso. Essa tese é endossada por numerosos comentaristas, tanto lá quanto aqui. Mas de novo faz-se a pergunta: até que ponto isso também é "wishful thinking"?

Mas pensando bem, o Brasil também recebeu uma boa quantidade desses povoadores brancos e protestantes, e eles de fato fizeram prosperar as regiões onde se estabeleceram. Mas os imigrantes católicos vindos de Portugal, Itália e Polônia, sem falar nos japoneses, exibiram uma ética de trabalho notavelmente semelhante. Penso, então, que esse afã de prosperar tem sua origem na condição específica do imigrante, alguém que sabe que só pode contar com seu trabalho, e não de uma raça ou religião. Os primeiros povoadores dos EUA são muito reverenciados por seu credo em fundar uma terra de livres, mas não se distinguiram particularmente pelo progresso material, mesmo porque foram prejudicados neste aspecto por suas próprias crenças utópicas. A grande maioria dos povoadores dos EUA não desembarcou lá movida por um credo, mas pelo desejo de fugir da pobreza em sua terra natal, tal como os imigrantes que aportaram aqui. Foram esses indivíduos materialistas e pragmáticos os maiores responsáveis pela prosperidade.

Do mesmo modo, também os EUA receberam escravos africanos, e sempre existiu ali uma população autóctone, seja de nativos ou de hispânicos que ali já residiam quando os estados do sul e do oeste foram tomados aos mexicanos. A dicotomia Norte Branco Protestante X Sul Mestiço Católico, a meu ver, é mesmo um "wishful thinking" construído para sustentar a crença no excepcionalismo americano. Não corresponde à realidade histórica e demográfica. Negros, hispânicos e católicos sempre existiram na América do Norte, também. Brancos e protestantes sempre existiram na América do Sul, também.

Analogamente, a dicotomia Colônia de Povoamento X Colônia de Exploração é, entre nós, uma armadilha mental para justificar nosso atraso de uma forma peremptória e inexorável. O colonialismo "bom" e o colonialismo "mau" não são peculiares de regiões geográficas específicas, mas de fato se encontram esparsos por todo o continente americano, de norte a sul, com maior ou menor concentração aqui e ali. A explicação racional para o nosso atraso é a incidência menor do colonialismo "bom", que no entanto nunca deixou de existir aqui e acolá, embora desprovido de mitos fundadores que o glorifiquem.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Laurentino Gomes e a Escravidão

Soube que Laurentino Gomes vai lançar mais um livro, na verdade uma trilogia. Desta vez o tema será o tráfico negreiro, e o escritor tem a pretensão de determinar, no histórico da escravidão, as marcas deixadas na sociedade brasileira até os dias de hoje.

"A escravidão e suas consequências ainda estão no DNA do Brasil"

Não é uma ideia nova. Joaquim Nabuco já afirmava, no final do século 19, que a escravidão ainda seria por longos anos a marca distintiva do Brasil. Não sei se o autor, que até agora distinguiu-se pelo tom leve e jornalístico em suas obras anteriores, terá sucesso nessa empreitada que exige o trabalho de um historiógrafo de raiz. Meu receio é que caia no mesmismo de outra vertente de ensaios, esta da lavra de autores mais casuais, que aponta na sociedade brasileira uma alegoria da escravidão. Esse artigo é um bom exemplo.

Os argumentos são repetitivos. O membro da classe dominante brasileira é apresentado como uma caricatura de senhor de escravo, supostamente mantendo até hoje uma mentalidade escravocrata, o que explicaria ao alto índice de desigualdade social no Brasil e a falta de empreendorismo de nossa elite empresarial. Mas como toda estereotipação caricatural, é fácil de reconhecer mas difícil de identificar. Até onde essa imagem corresponde à realidade?

O membro da "classe dominante" citada, presumivelmente é o grande capitalista. Mas enumerando os nomes de grandes empresários brasileiros da atualidade, há muitos descendentes de senhores de escravos?

Não, não há. A classe patronal brasileira é formada, em sua maioria, por descendentes de imigrantes europeus, árabes e orientais chegados aqui nos estertores finais da escravidão ou logo após a abolição. É óbvio que o sucesso que esses pioneiros tiveram estava relacionado às transformações econômicas que sucederam o fim da escravidão, sem o qual não teriam sequer mão-de-obra para suas fábricas. Esses personagens são, de fato, o oposto do senhor de escravos, atores de um cenário sócio-econômico incompatível com a escravidão.

O desfavorecimento dos descendentes de escravos em nosso quadro social é autoevidente. Mas passados mais de cem anos da abolição, até que ponto esse desfavor ainda pode ser atribuído ao passado escravocrata?

Observando nossos vizinhos que tiveram muito menos escravidão e a aboliram muito antes de nós, vê-se que o quadro social ali não é muito diferente. As diferenças sociais são marcantes e os descendentes de europeus estão em uma posição muito superior. Mas se isso não é consequência da escravidão, será consequência do racismo inerente à mesma?

Até certo ponto, sim. O racismo existe e é perceptível em várias situações da vida social e profissional dos indivíduos, aqui e em nossos vizinhos. Mas um equívoco que tenho observado muito persistente é atribuir ao racismo a diferença social entre brancos e pretos. Em um processo de seleção para um cargo bem pago, é possível que um candidato negro seja preterido em favor de um branco. Mas na maioria dos processos de seleção para cargos bem pagos, só há candidatos brancos. Os negros não chegam lá porque em geral não puderam frequentar boas escolas. Mas um branco pobre teria a mesma dificuldade.

É também frequentemente apontada a predominância de jovens negros entre as vítimas de homicídio e a população carcerária. Mas em geral os assassinos de negros também são negros, e assim como a maioria das vítimas de marginais negros. Penso que esse discurso é um esforço dar um viés racial à luta de classes marxista. Tem fundamento? Eu nunca vi jovens favelados saírem pelas ruas a agredir brancos. O envolvimento de negros com a marginalidade está obviamente relacionado ao passado escravocrata, que fez a população negra predominante nas áreas de alta criminalidade. Entretanto não é o racismo o motor dessa criminalidade, mas principalmente o tráfico de drogas.

Acredito que a falta de capilaridade social consequente da pouca eficiência de nossa economia é a verdadeira causa da alta diferença social entre brancos e negros. Uma explicação puramente econômica, que pode ocorrer em vários lugares independente de haver ou não uma grande herança da escravidão. E penso, também, que se nossos empresários são pouco empreendedores, tal não se deve à mentalidade escravagista, mas ao vício de depender do estado para fomentos, subsídios e protecionismo - este sim um traço cultural que pode ser rastreado na História, mas cuja origem não é a escravidão, mas o sistema econômico conhecido como mercantilismo, que vigorou no país até a abertura dos portos em 1808. Muitos empresários brasileiros ainda estão esperando um alvará régio que lhes conceda o monopólio em uma determinada área para atuarem, tal como acontecia nos tempos de colônias.

Falta de capitalismo.