sábado, 28 de novembro de 2020

De Novo o Racismo

O recente episódio de um homem negro morto após ser agredido por seguranças de um supermercado reacendeu um debate que já estava quente: o racismo entre nós. Quem é da minha geração não deixa de encarar este tema com certa perplexidade. Então nós somos racistas? No meu tempo, racismo era um assunto meio fora de lugar. Dizia-se que era um problema dos EUA; nosso problema aqui era a desigualdade social. Ponto. Mas agora afirma-se em alto e bom tom que somos tão racistas quanto s norte-americanos, sendo a principal prova disso a distância social entre negros e brancos, maior que a verificada nos EUA.

Pelo que verifico, o racismo tem sido escancarado entre nós porque os grupos militantes negros têm expandido a própria definição do termo, agora conceituado como todo e qualquer fator histórico, social ou econômico que implique uma desvantagem para os não-brancos. Assim, apresentam estatísticas que mostram que os negros ganham muito menos que os brancos, e são muito mais sujeitos a assassinatos do que os brancos. Esses números são corretos e parecem ser uma prova cabal. Mas comparações só fazem sentido se são comparadas categorias equivalentes - ou como diz o vulgo, não faz sentido comparar laranja com banana. Contrapor a massa salarial de pretos e brancos não diz grande coisa, se uns têm empregos pouco qualificados e outros têm empregos mais qualificados. A comparação seria conclusiva se fossem comparados salários de brancos e pretos que executam estritamente a mesma função. Aí com certeza os salários dos negros continuariam a ser menores, mas não em um percentual tão alto quanto o obtido comparando-se a massa salarial de todas as ocupações juntas; todavia, teria-se nesse número a medida exata do racismo. O mesmo ocorre com o número total de assassinatos: a comparação não é conclusiva se não se entra no mérito do motivo do assassinato. Quantos podem ser atribuídos ao racismo? Quantos são apenas o reflexo de comunidades de alta criminalidade habitadas majoritariamente por negros?

É óbvio que existe o racismo por aqui - é tolice negar. Mas quem compara o racismo brasileiro com o racismo norte-americano não sabe o que está dizendo. A começar pela feição histórica do racismo norte-americano, que sempre foi institucional - as famigeradas leis Jim Crow - enquanto o nosso racismo sempre foi ex-forma. Uma diferença tão fundamental denota um desvio de origem. O racismo norte-americano surgiu como uma reação à possibilidade dos negros libertos da escravidão fazerem concorrência aos brancos, e assim ameaçarem sua preponderância política e econômica. Por este motivo, procurou-se sobretudo vedar o ingresso dos negros na política, por negar seu direito a voto, bem como o ingresso dos negros no mercado de trabalho qualificado, a fim de preservar o padrão de vida dos trabalhadores brancos, e isso foi feito mediante a segregação escolar.

O mesmo não se aplica ao Brasil do século 19, época da abolição da escravatura. Tínhamos, é certo, uma elite política e econômica que tampouco desejava perder sua posição de comando, mas o pretexto invocado para justificar a posição de comando desta elite nunca foi a supremacia racial, nem faria sentido se o fizesse, mesmo porque esta elite não era racialmente pura - desde os primórdios da colonização houve uniões com mulheres índias a fim de estabelecer alianças com as tribos. O país só "embranqueceu" efetivamente com a chegada de imigrantes europeus, a maioria após o fim da escravidão. O próprio caráter mestiço da população em geral, dificultando assim uma identificação clara de brancos e negros, já tornava o racismo, no mínimo, mais difuso.

E tampouco houve receio da concorrência dos negros libertos com uma classe trabalhadora branca, porque a própria falta de capilaridade social característica de nossa economia limitava tal possibilidade. Ao contrário do que acontecia nos EUA, onde o dinamismo muito maior da economia colocava negros e imigrantes europeus concorrendo pelos mesmos empregos, no Brasil a maioria dos ex-escravos libertos permanecia no campo, enquanto os operários da fábricas eram sobretudo imigrantes italianos. Em suma, aquela massa de ex-escravos despossuídos, que juntou-se aos igualmente despossuídos caipiras e caboclos, nunca foi uma classe perigosa a ser combatida pela elite de fazendeiros, mas sim uma massa de manobra a serviço destes, formando seus contingentes de eleitores de cabresto, trabalhadores e jagunços. Não por acaso, até hoje nos EUA o racismo é mais vicioso entre as classes trabalhadoras, enquanto que no Brasil o racismo sempre foi mais pronunciado entre os ricos, sendo atenuado ou quase inexistente entre os mais pobres.

Mas nada disso importa se além do conceito de racismo, o próprio conceito de negritude tem sido reformulado pelos militantes do movimento negro, deixando de ser um fato natural para adquirir uma acepção política: negros, agora, são todos os indivíduos que consideram-se não brancos e desprivilegiados em razão de sua raça. Com esta redefinição, pode-se até afirmar que o Brasil é um país de maioria negra. Para evitar dúvidas quando a esta classificação, o termo mulato tem sido desqualificado, acusado de ser ofensivo por se tratar de comparação com um animal de carga, a mula. Mas em suas origens no século 15, o termo não era ofensivo: tratava-se de mera metáfora para indicar hibridismo (a mula é um híbrido de cavalo e asno). Chamava-se "mulato" a tudo o que era híbrido de coisas diferentes, não apenas pessoas.

Quanto a mim, vejo o efeito deste arrazoado com uma cortina de fumaça que impede ver o real motivo da diferença social entre negros e brancos. Com certeza há racismo nos processos seletivos para empregos, privilegiando-se candidatos brancos. Mas na grande maioria dos processos seletivos para cargos de bom nível, só há candidatos brandos. Isso porque a maioria dos negros cursou escolas públicas ruins. Nesse ponto, culpar o racismo é uma desculpa providencial para quem não quer melhorar o ensino público com mais investimentos.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

O Refluxo da Religião

 A derrota do bispo Crivella nas eleições para prefeito no Rio de Janeiro parece sinalizar que um fenômeno que tomou conta do país começa seu refluxo. Refiro-me à virada para a religião, que fez (e ainda faz) pipocar uma igreja evangélica em cada esquina de cada comunidade, e elegeu dezenas de candidatos pastores.

A virada para a religião não é um fenômeno alvissareiro. Denota um desalento com a situação geral. Nos termos da doutrina hindu das quatro castas, mencionada em um artigo que publiquei, representa um retorno ao governo brâmane, com a suposta restauração dos valores abandonados. Por aqui observamos, de fato, uma corrida rumo ao conservadorismo, que não deixa de passar um sentimento de derrota: se voltamos atrás, é porque estávamos em um caminho errado.

Assim, se o fenômeno começa de fato a refluir, é sinal de que o otimismo em geral começa a voltar. Mas cabe aqui uma reflexão. Por que a religião continua a exercer um fascínio tão grande sobre as populações, fascínio esse que se transforma em poder? Como uma mensagem escrita para povos de séculos atrás continua tão atual?

Refiro-me, é claro, às religiões monoteístas (ou abraâmicas) - cristianismo, judaísmo e islamismo. A primeira delas a surgir, o judaísmo, trazia uma novidade inédita para o mundo de então: um deus que não se limitava a conceder graças em troca de oferendas, mas também exigia um comportamento ético da parte de seus seguidores. No caso do Brasil, deve ser destacado o cristianismo que emergiu na matriz do mundo ocidental, a civilização greco-romana de dois mil anos atrás. Os deuses então disponíveis para adoração não preenchiam todos os anseios da população. De fato, portavam-se, e inclusive pareciam-se fisicamente, com qualquer patrono do qual uma pessoa comum do povo pudesse se tornar cliente, apenas acrescidos de poderes sobrenaturais, mas de resto mantendo todas a fraquezas e falhas de caráter dos patronos de carne e osso.

Não espanta que tais deuses tivesse um aspecto por vezes caricato e não fossem levados muito a sério, exceto na esfera do folclore e das crendices populares. Os romanos e gregos cultos preferiam a filosofia à religião. E de fato a filosofia proporcionava muito mais respostas a seus anseios cognitivos e angústias espirituais, na forma de explicações lógicas. Mas havia um problema. A instrução era acessível somente aos ricos, as massas ficavam alheias ao saber.

Nesse contexto surgiu uma religião que tinha uma mensagem profética e doutrinária que era acessível tanto aos cultos quanto aos incultos - não precisava entender, bastava crer. O que leva milhões de indivíduos a crer em uma mensagem que lhes é fornecida sem discussão? A resposta é: o atendimento a seus anseios. Os deuses antigos, tal como os patronos dos quais eram clientes, eram tão inconstantes e temíveis quanto estes patronos, podendo como estes ser ora aliados, ora inimigos, ora benfeitores, ora malfeitores. O deus dos cristãos tinha um compromisso com seus seguidores, e sua lealdade era assegurada desde que suas diretivas fossem cumpridas. Acenava com uma melhoria das condições sociais da maioria da população, tanto que os primeiros cristão foram sobretudo escravos e mulheres. Aos escravos, afirmava que o reino dos céus pertencia aos humildes, e que os ricos e egoístas seriam punidos. Às mulheres, acenava com a proibição da poligamia e do divórcio, algo interessante para um tempo em que a maioria das sociedades permitia aos homens terem mais de uma esposa, bem como delas se divorciar sem lhes dar nada. Por isso o cristianismo triunfou sobre os antigos deuses.

Mas tais promessas não seriam coisa datada, que só faziam sentido no mundo de dois mil anos atrás? Com certeza. Se fosse baseado apenas em agrados à população pobre e oprimida, o cristianismo teria sido somente uma moda passageira, tal como o discurso dos políticos populistas da época atual. O que dá substância ao cristianismo, e lhe tem permitido estar presente século após século, é justamente algo que, em princípio, ele teria tornado desnecessário: uma filosofia, que é complexa, e portanto acessível somente aos estudiosos, mas cujo desconhecimento não impede que indivíduos incultos sigam os preceitos cristão, desde que assessorados por sacerdotes, padres ou pastores. Ao longo dos séculos o cristianismo tem agregado uma refinada elite intelectual, e esta elite forma a espinha dorsal, sustentáculo da doutrina, inclusive capaz de atualizá-la conforme a época, passando por vezes ao protagonismo na cena política, fenômeno observado recentemente no país, outras vezes voltando às sombras, mas sempre influente na cena intelectual. Este é o"pulo do gato" do cristianismo.