quarta-feira, 23 de junho de 2021

Brasileiros Vem das Selvas

Causou celeuma a afirmação recente do presidente argentino Alberto Fernández de que “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós os argentinos, chegamos de barcos". Pegou mal, e ele próprio tratou de dar uma explicação, destacando a origem miscigenada dos argentinos. Na verdade ele estava parafraseando um músico argentino chamado Litto Nebbia, que incluiu essa frase em sua canção "Llegamos de Los Barcos". Igualmente parafraseava o autor mexicano Octávio Paz, que escreveu “os mexicanos descendem dos astecas, os peruanos dos incas e os argentinos, dos navios” (Octávio Paz não mencionou os brasileiros).

Nota-se na versão do argentino uma distinção entre os nativos brasileiros e os astecas e incas - segundo é dito, apenas esses últimos seriam "índios", enquanto os brasileiros são "selvagens". Ironicamente, as estatísticas mostram que o Brasil recebeu mais imigrantes europeus do que a própria Argentina, embora a presença destes seja menos notável aqui, por ter havido maior mistura. Entretanto, a identificação do povo brasileiro com a selva não é um preconceito lançado por argentinos. A rejeição de uma imagem eurocêntrica do Brasil é tão antiga quanto a aceitação de uma imagem eurocêntrica da Argentina, inclusive no exterior, onde o Brasil é normalmente identificado com a região amazônica, ao passo que toda a metade inferior do subcontinente sul-americano é referida vagamente como "Argentina", porção que inclui o sul do Brasil. Enfim, não vale a demografia nem as estatísticas da imigração, mas a ideia estabelecida de como cada um "deve ser".

É fato que nós mesmos, brasileiros, temos historicamente procurado difundir um mito fundador do Brasil ligado aos índios, daí advindo um orgulho patético, tal como os argentinos se orgulham de ser descendentes de europeus. Desde a época da Semana de Arte Moderna, intelectuais brasileiros têm se esforçado para resgatar uma suposta autenticidade nacional derivada dos índios, e taxar a herança cultural do colonizador como imitação subserviente. Antes disso já era moda nomes próprios de origem indígena. Antigas famílias brasileiras se orgulham de ter antepassados índios, fato que confere uma autenticidade simbólica ao direito dessas famílias à terra, além de terem os índios a fama de guerreiros valorosos. Mas se encontramos motivo para ter orgulho de sermos descendentes de índios, será que o mundo tem a mesma percepção?

Na concepção do presidente argentino, que apenas ecoa um senso comum mais geral, os índios brasileiros sequer são denominados índios - esta classificação vai apenas para astecas e incas. Os brasileiros, disse, vieram da selva, de onde se conclui que os índios brasileiros seriam tão-somente selvagens, criaturas sem cultura, conforme o entendimento daquilo que é "selvagem". Os antigos patriarcas das famílias quatrocentonas podiam se orgulhar de ter ancestrais índios, mas isso não significava que tolerariam a presença de índios em suas fazendas. Na verdade, mesmo a mais de cem anos atrás, pouquíssimos brasileiros já haviam visto um índio ou sabiam como era um índio, dai ser tão fácil romantizar uma figura meramente imaginada.

Mas na minha opinião, tudo não passa de um grande mal entendido. Essa busca por uma autenticidade nativista parece-me uma revolta pueril contra o antigo colonizador - queremos crer que o país já existia aqui em 1500, quando supostamente foi invadido pelos europeus. Mas o que existia aqui não era um país, e sim uma região geográfica habitada por numerosas tribos que não obedeciam a uma liderança central, nem tinham territórios demarcados por fronteiras. O conceito de estado-nação foi trazido pelo colonizador, e só a partir dele pode-se falar de um país como entidade política, étnica ou cultural. Bom ou mau, feio ou bonito, o Brasil é uma criação do colonizador, e não do índio. Não obstante, esse brasileiro que veio da selva está pronto para ser reconhecido internacionalmente, posto que atende às utopias que os europeus têm nutrido sobre nós desde o século 16: a terra onde não há pecado, habitada pelas índias nuas e pelo bom selvagem de Rousseau. Modernamente, a utopia se reciclou na figura do índio ecologicamente consciente, que quer preservar as florestas invadidas pelo homem branco, e assim o planeta será salvo, ficando os brasileiros na selva e os europeus mantendo seus padrões de consumo sem pôr em risco a camada de ozônio.

Os argentinos se orgulham se ser descendentes de europeus. Não sei se os europeus se orgulham de ter os argentinos como descendentes, mas parece-me que decididamente não se orgulham de ter os brasileiros como seus descendentes, ou sequer têm ciência disto.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Escravidão, Racismo e Desigualdade

 Joaquim Nabuco, militante abolicionista, afirmava que por muitos anos a escravidão ainda seria o traço definidor do Brasil. Não falta quem atribua a ela a origem de todos os males nacionais, não sem alguma dose de razão. Recebi recentemente um email de um propagandista do Movimento Negro, endossando essa tese.

"Não se entende o Brasil sem compreender a função do racismo 'racial' entre nós. Não existe preconceito mais importante entre nós, já que ele tem o poder de definir e articular as relações entre todas as classes sociais no nosso país. É este preconceito que comanda a continuidade da escravidão com outros meios. Como esse mecanismo funciona na realidade cotidiana? Minha tese é a de que a escravidão, tanto no seu sentido econômico de exploração do trabalho alheio como no seu sentido moral e político de produção de distinções sociais, se manteve 'na prática' inalterado desde a abolição da escravatura"

"O ex-escravo é afastado do mercado de trabalho competitivo e passa a desempenhar as mesmas funções humilhantes e indignas que exercia antes. Seja tanto as funções de trabalho sujo, pesado e perigoso, para os homens, quanto as funções domésticas do antigo 'escravo doméstico', para as mulheres, as quais reproduzem todas as vicissitudes da antiga relação senhor/escravo. Faz parte do âmago desta relação não só a exploração do trabalho vendido a preço vil, mas também a humilhação cotidiana transformada em prazer sádico para o gozo frequente e para a sensação de superioridade e a 'distinção social' das classes média e alta"

Existe de fato uma analogia óbvia entre o escravo e o trabalhador mal qualificado que está na base da pirâmide social. Mas até que ponto há uma relação causa-efeito entre o primeiro e o segundo? É sabido que a grande maioria dos ex-escravos brasileiros veio a compor o extrato mais baixo de nosso proletariado. Entretanto, uma divisão social semelhante pode ser vista em nossos vizinhos sul-americanos que tiveram no passado muito pouca escravidão, e a aboliram muito antes de nós.

Eu penso, então, que a desigualdade social característica do mundo subdesenvolvido decorre de fatores puramente econômicos e impessoais - a falta de um dinamismo na economia que faz com que pouca riqueza seja produzida à custa de muito trabalho, e por conseguinte, o trabalho tenha pouco valor agregado. Chamar isso de escravidão moderna pode servir como metáfora, mas se levada em seu sentido literal, conduz a uma armadilha psicológica - o cidadão desfavorecido economicamente crê ser um escravo, vítima de manipulação maldosa da parte de uma "classe dominante" abstrata. Nesse contexto, a escravidão do passado atua como um trauma: seja ou não descendente de escravos, o desfavorecido enxerga escravidão aonde quer que olhe. 

Acrescente-se que analisados em seu substrato sócio-econômico, o escravo e o proletário assalariado não são a mesma coisa. Em termos de condições materiais, podem até assemelhar-se, mas o escravo é um bem de raiz de seu proprietário, enquanto que o proletário é parte de um exército de reserva. O escravo compõe o capital de seu dono; pode ser comprado, vendido, alugado e herdado, mesmo que em determinado momento não esteja produzindo nada. O trabalhador assalariado não compõe o capital de seu patrão, que por conseguinte não se dispõe a mantê-lo caso por algum motivo ele não esteja produzindo. O trabalhador deve ser parte de um exército de reserva pronto a colocar-se a serviço de seu patrão quando for necessário, e pronto a ser dispensado quando não for necessário. Por aí entende-se facilmente porque escravidão e capitalismo são sistemas mutuamente incompatíveis e antagônicos: não é possível haver capitalismo se toda ou quase toda a força de trabalho se encontra imobilizada como bem de raiz de alguém. O capitalismo, longe de ser uma versão atualizada da velha escravidão, entrou em rota de colisão contra esta, impondo-lhe a condição: ou deixa de existir, ou será suprimida pela força. A guerra da secessão norte-americana, opondo o norte industrial ao sul escravocrata, foi o mais bem acabado exemplo histórico do conflito entre capitalismo e escravidão.

"É importante notar que, paralelamente à condenação do negro à exclusão, o país passa a implementar a política abertamente racista da importação de imigrantes europeus brancos, na imensa maioria italiano (...) Uma parte considerável destes 'neobrasileiros' ascende rapidamente, alguns inclusive à elite de proprietários e de novos industriais, mas boa parte irá constituir a classe média branca de grandes cidades como São Paulo. Nas outras grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Recife, os portugueses exerceriam o mesmo papel do italiano em São Paulo"

"O imigrante branco, na maioria o italiano ou o português, irá constituir no Brasil, ao mesmo tempo em aliança e a serviço da elite de proprietários, uma espécie de 'bolsão racista e classista' contra os negros e pobres que constituem a maior parte do povo. Para a elite, isso significa a oportunidade de criminalizar e estigmatizar a soberania popular no nascedouro com a cumplicidade das classes médias (...) Muitos imigrantes não conseguiram ascender à classe média verdadeira nem à elite. Boa parte vai constituir uma zona cinza que inclui a classe trabalhadora precária e o que poderíamos chamar de 'baixa classe média'. O cotidiano de muitos destes não difere muito da vida do negro e do pobre brasileiro. Moram eventualmente no mesmo bairro e passam privações materiais. É precisamente nesta faixa social que o preconceito de raça é ainda mais importante. Afinal, a única distinção positiva [reconhecível socialmente] que este pessoal tem na vida é a 'brancura' da cor da pele para exibir contra o negro (...) Enfatizar uma distância social quase inexistente do ponto de vista econômico exige um racismo 'racial' turbinado e levado às últimas consequências"

No Brasil, contudo, a substituição do escravo negro pelo imigrante branco não foi parte de um projeto para implantar o capitalismo, mas ironicamente, de um projeto para dar sobrevida à escravatura, posto que a importação de novos escravos da África fora proibida, e novas frentes agrícolas estavam se abrindo. A implantação do capitalismo no Brasil por parte desses imigrantes e seus descendentes, que se tornaram empresários e trabalhadores, foi um fenômeno marginal e não-planejado, pois o que se esperava originalmente deles é que fossem os novos escravos (e de fato, muitos foram tratados com escravos). Esses imigrantes eram em geral camponeses que viviam uma situação de miséria na Europa da Revolução Industrial, frequentemente enganados por promessas não cumpridas da parte do governo brasileiro e lesados pelas companhias que patrocinavam suas viagens.

A ascensão social deste grupo pode ser explicada porque, ao contrário dos negros ex-escravos, eles já tinham experiência em trabalho fabril e pequenos empreendimentos em seus países de origem, bem como de pequena agricultura. Infelizmente também traziam o racismo de seus países de origem, que em geral eram impérios com colônias onde os nativos eram vistos como uma raça inferior. É irônico constatar que eram mais racistas do que os antigos fazendeiros escravocratas, os quais não viam os brancos pobres como superiores aos negros, mas como equivalentes a esses.

"Este é também precisamente o caso dos brancos americanos, das classes sociais mais ou menos, baixas e médias, que são convencionalmente - e depreciativamente - referidos como 'white trash', e que ajudaram a eleger Trump, o objeto do desejo e de imitação de Bolsonaro. Os brancos do Sul dos EUA, inferiores social e economicamente aos brancos do Norte, são, por conta disso, como uma espécie de 'compensação' da riqueza inexistente, os racistas mais ferozes e ativistas de uma 'Ku Klux Klan' que assassinava e linchava negros indiscriminadamente. Esta parece ser a aspiração do Bolsonarismo e de seus seguidores no Brasil, também"

Sabe-se que no Brasil, Bolsonaro foi eleito embalado por uma nuvem de ressentimento anti-petista. Faz algum sentido, portanto, a comparação da "white trash" norte-americana com a baixa classe média brasileira. Mas o papel que cada uma teve no fenômeno não é o mesmo. Deve ser lembrado que nos EUA, os brancos e a classe média são maioria, enquanto que no Brasil a maioria da população tem raça indefinida, e a classe média é minoritária. Portanto, quem quiser explicar a ascensão de Bolsonaro, deve se ater ao que dele pensam as massas, e não a classe média. A meu ver, este apoio deveu-se ao anseio que o povo das periferias tem por valores tradicionais e combate ao crime, mesmo motivo que leva este mesmo povo a correr para as igrejas evangélicas. Bolsonaro foi o único que prometeu algum endurecimento contra a bandidagem.

O que mostra que, ao contrário dos bairros pobres de negros e imigrantes nos EUA, o povo de nossas periferias não vê uma dicotomia Negros X Brancos no fenômeno da criminalidade que assola seus bairros. Este é um discurso importado, que não corresponde à nossa idiossincrasia.