sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A Rebelião dos Barriga Cheia

Quem está de barriga cheia faz rebelião?

Os eventos da História só podem ser corretamente interpretados em seu significado após um conveniente distanciamento no tempo, que permita apreciar os antecedentes e as consequências. Alguns demoram mais a serem entendidos. Isso se aplica às manifestações de junho de 2013, que contaram com a participação de vários ativistas de esquerda, mas que hoje são vistas como um movimento de direita para derrubar o governo petista. Alguns daqueles personagens que ganharam destaque naqueles dias, como a ativista Elisa Quadros, mais conhecida como Sininho, agora tentam se livrar da pecha de traidores ou ingênuos que ajudaram a pavimentar o caminho para a tomada do poder pela direita, como consta neste artigo de autoria de Elisa Quadros.

Quando eclodiram as manifestações de 2013, o pretexto inicial foi reclamar contra o aumento de poucos centavos nas passagens de ônibus, mas logo se viu que o fenômeno era mais amplo. Os manifestantes não tinham um perfil nítido, tampouco suas reivindicações; parecia mais a exibição de um descontentamento difuso, contra "tudo isso que está aí", frase lançada naquela época. O governo petista foi pego totalmente de surpresa. Vinha de uma longa sequência de sucessos desde o primeiro mandato de Lula, que incrementou o padrão de vida de milhões aproveitando o contexto econômico favorável, e a presidente Dilma esbanjava popularidade. De um momento para outro tudo mudou: a popularidade de Dilma despencou, e as manifestações contra o governo aumentaram até o seu melancólico fim.

Como foi possível? Um governo popular pode ser alvo de massivas manifestações contrárias? Quem está com as panelas cheias sai batendo panela?

A verdade é que não foi um fenômeno isolado, a rebelião dos barriga cheia já aconteceu ouras vezes na História da humanidade. O evento mais notável foi o maio de 1968 com suas manifestações estudantis que começaram em Paris contra a proibição do ingresso dos estudantes masculinos no dormitório feminino, e se espalharam apelo mundo afora, também "contra tudo isso que está aí", sem uma agenda política clara além do bordão de que é proibido proibir. Não causaram nenhuma mudança política, mas foram um marco na revolução dos costumes. Mas quem fazia aquelas manifestações? Basicamente estudantes universitários membros da classe média, e não trabalhadores. Eram o produto da onda de prosperidade que se seguiu ao fim da segunda guerra, a qual multiplicou o número de estudantes universitários e permitiu o protagonismo destes.

Do mesmo modo, as jornadas de 2013 no Brasil seguiram-se a um período de prosperidade e crescimento da classe média. Inserem-se, portanto, na fenomenologia da rebelião dos barriga cheia, que deve ser vista como um fenômeno mais psico-social do que puramente político. Sempre que um grande número de indivíduos ascende à classe média e passa a ter consciência, tempo e disposição para abordar assuntos políticos, segue-se uma onda de insatisfação e turbulência muito semelhante à típica rebeldia que acomete os indivíduos quando chegam à adolescência. São pessoas que vem escutando promessas e tendo suas aspirações atendidas, então sempre querem mais e mais. A população brasileira vinha experimentando melhoras em seu padrão de vida desde meados dos anos 2000, em razão da conjuntura econômica favorável, e o número de estudantes universitários aumentou consideravelmente neste período. Quando o governo Dilma começou a ratear em 2013 e surgiram os primeiros sinais da corrupção desenfreada, essa multidão embalada por promessas suspeitou de um engodo, e a reação foi violenta.

Por vezes essa inquietação de uma nova camada da população que ganha súbito protagonismo revolve sentimentos ocultos lá no fundo, que sobem à tona. Por este motivo que essas rebeliões de barriga cheia ganham por vezes um inesperado tom conservador. O exemplo mais notório aconteceu na Tailândia em outubro de 1976, conhecido como o Massacre da Universidade Thammasat. Os antecedentes foram semelhantes. No início dos anos 60 a Tailândia experimentou um surto de prosperidade, que fez crescer enormemente o número de estudantes universitários. Esses estudantes começaram a participar de manifestações contra o regime, que em 1973 provocaram a queda de um governo ditatorial.

Mas as esperanças de que a ascensão dessa nova camada da população inaugurasse um período democrático logo se desfizeram. A classe média ascendente era monarquista e visceralmente anticomunista. O novo governo foi marcado por caos e instabilidade. Quando em outubro de 1976 os estudantes ocuparam a universidade Thammasat para protestar contra o retorno dos ditadores exilados, foram massacrados, e muitos dos que participaram do massacre foram outros estudantes universitários, colegas dos que foram mortos.

Ao menos aqui no Brasil a guinada conservadora foi bem mais benigna. Mas igualmente mostra como são imprevisíveis os acontecimentos quando uma nova camada social ascende ao cenário político. Quem dava importância aos pastores da periferia 20 anos atrás?

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