quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Nosso Passado Não Resolvido

Quando penso no futuro, não esqueço do passado, diz a letra da música. Quem estuda a História sob uma perspectiva neutra, pensa no passado, e não no futuro. Mas quando o afã de pensar no futuro nos leva invariavelmente ao passado, temos aí o sintoma de um passado não resolvido. Recentemente descobri esse artigo instigante do jornalista e historiador Marcos Guterman, intitulado O País Enfrenta Superabundância de Passado Não Resolvido.
Como toda tentativa de repetição da História, há na aventura bolsonarista, nostálgica do regime militar, um tanto de farsa. O próprio presidente Jair Bolsonaro não foi exatamente um exemplo de bom militar e seria preciso um grande esforço para vê-lo como líder de uma retomada dos ideais que moveram os generais que governaram o Brasil entre 1964 e 1985
Qualquer um que tenha acompanhado a trajetória de Bolsonaro sabe que ele não foi um personagem do regime de 1964, mesmo porque não tinha idade para ter sido. E o modo como agiu destoa, aliás, dos ditames daquele regime. O então capitão foi preso por indisciplina ao reclamar dos baixos soldos da tropa, e entrou na carreira política como uma espécie de líder sindical portando as reivindicações dos oficiais de baixa patente, uma posição que pode ser classificada como de esquerda, e não de direita. Tornado presidente, sua política econômica liberal e privatista nada tem a ver com o nacional-estatismo do regime dos generais.
 
Diante destas constatações, o autor do artigo deduz que o ponto não resolvido do passado, ao contrário do que se supõe, não se localiza em 1964, mas em 1985, marco inicial da "Nova República".
 
De fato, o regime iniciado em 1964 e encerrado em 1985 não possui mais conexões com o presente. Subversivos armados são personagens extintos, como extinto está o modelo econômico desenvolvimentista de substituição de importações, iniciado por Vargas nos anos 30, levado pelos militares ao auge nos anos 70, e ao esgotamento nos anos 80. O malogro econômico do regime pôs fim ao mito de que os militares seriam governantes mais competentes que os civis, e desde então não se ouviram mais clamores pela volta dos militares ao poder, exceto em época recente, mas já em indisfarçável tom de saudosismo. Todos sabem que o regime de 1964 é incompatível com o tempo histórico atual, começando pelos militares que ora fazem parte do governo.
 
Mas não foi apenas o sonho desenvolvimentista autoritário dos generais que se esboroou naquele ano de 1985. A utopia socialista dos opositores do regime também já vinha em adiantada decomposição, o que foi confirmado ao final da década pela queda dos regimes socialistas do leste. Bem observou o autor do artigo, não foram apenas os bolsonaristas os inconformados em 1985. Naquele mesmo ano o PT proibiu seus oito parlamentares de participar do processo de escolha do presidente no colégio eleitoral e chegou a afastar os três que contrariaram a ordem e votaram em Tancredo Neves. Depois seus deputados negaram-se a assinar a constituição de 1988, deixando claro que não a reconheciam por considerá-la uma farsa da democracia burguesa. Ao mesmo tempo em que participavam de eleições e embrenhavam-se cada vez mais nos meandros da democracia burguesa que diziam não reconhecer, os petistas conservavam o discurso sectário, presos a um passado não resolvido que prometiam obsessivamente retomar em algum momento no futuro. A corda se esticou, e se rompeu em 2016, sinalizando a ruptura entre a prisão no passado e o futuro que não conseguiam alcançar. Conclui o autor do artigo:
É nesse ponto que o petismo e o bolsonarismo se encontram: no desconforto sobre o desfecho do regime militar. Para os bolsonaristas, a Nova República serviu para franquear a máquina estatal a parasitas do dinheiro público e a minorias moralmente abjetas, alimentando saudades da ditadura, supostamente incorruptível e a salvo da perversão comunista. Para os petistas, a Nova República foi o modo que as elites encontraram para proteger seu modelo hegemônico das demandas crescentes de inclusão social e participação política desde os estertores da ditadura
A sensação que fica é a de quem pegou um atalho errado, e deparando-se como fim da trilha, quer voltar ao ponto de partida. O clima é de saudosismo, farsa e desalento. O país do futuro perdeu seu norte em 1985. E agora vive do passado. Até quando?

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